Refeição Cultural
"Pelo que eu entendo, a gratidão deve ser incluída entre as virtudes; e lamentada a ingratidão. Para não ser ingrato, a mim mesmo propus, agora que posso considerar-me livre, o trabalho de ofertar algum consolo, na medida de minhas possibilidades, em troca do que eu recebi. Se não o presto aos que me auxiliaram e que, por sorte deles, ou por seu bom senso, ou sua boa fortuna, não necessitam dele, pelo menos presto-o àqueles aos quais possa ter valor. Não obstante seja muito ínfimo o alívio, ou o conforto, ou seja lá o que for, aos que necessitam disso, mesmo assim me parece que ele deve ser ofertado àqueles cuja necessidade é maior, ou porque mais bem lhes fará, ou porque, desse modo, mais carinhosamente será entendido." (BOCCACCIO, Decamerão, p. 12)
Uma das coisas que a leitura do Decamerão mais nos faz pensar é como deve ter sido escandaloso o impacto da obra em seu tempo, em seu contexto. As estórias são repletas de sexo, traição e críticas severas aos religiosos.
Outra faceta do livro que nos chama a atenção é a condição das mulheres, tratadas da pior forma possível em relação aos direitos mais básicos dos seres humanos, e que poderíamos dizer que a condição de ontem segue sendo a condição de hoje, séculos depois. Os homens e as sociedades consideram as mulheres menores, inferiores, às vezes são meros objetos de posse como os demais bens materiais.
"Assim sendo, para que se corrija, para mim, o pecado da Sorte, pretendo narrar cem novelas, ou fábulas, ou parábolas, ou histórias, sejam lá o que forem. A Sorte mostrou-se menos propícia, como vemos, para as frágeis mulheres, e mais avara lhes foi de amparo..." (BOCCACCIO, Decamerão, p.13)
Inventei de ler o Decamerão por estarmos vivendo em 2020 um cenário parecido com o cenário de fundo da obra: enfrentamos uma pandemia mundial (vírus Covid-19) como os europeus enfrentaram a Peste em meados do século XIV. Giovanni Boccaccio sobreviveu à pandemia e nos legou um grosso volume de estórias que nos deixam perplexos ao pensar como ele conseguiu fazê-las nas condições em que os sobreviventes se encontravam. É espantoso!
Na atualidade, o mundo parou devido à pandemia do novo coronavírus. Neste momento em que escrevo, já são mais de 3,45 milhões de pessoas infectadas pela Covid-19, sendo mais de 244 mil vítimas fatais. Alguns países vivem cenários semelhantes ao descrito por Boccaccio no início do livro: mortes rápidas e repentinas de várias pessoas, sem atendimento médico, morrem em casa, e se veem nas cidades do mundo corpos amontoados sem condições de velórios e enterros decentes.
Me propus a ler uma novela por dia. Hoje li a 32ª novela ou estória. Estou no início da 4ª jornada das narrativas. Nesta rodada de estórias, as sete moças e os três rapazes devem contar casos de amor com finais tristes, trágicos. A jornada anterior era o inverso, estórias de pessoas que conseguiam o que tanto queriam.
A leitura não é difícil, não é leitura engajada, é leitura de descontração. Algumas narrativas são fraquinhas, outras são mais elaboradas e interessantes.
Uma das coisas que mudaram em relação ao aparecimento desse vírus é que a pandemia e as suas consequências nos colocaram um pouco mais cientes de que somos mortais, somos reles mortais, somos frágeis demais. Hoje estou aqui escrevendo, amanhã tenho tosse, febre e falta de ar, daqui três ou quatro dias estou morto. Acabou! Simples assim.
Nós já éramos esses reles mortais, mas nossa empáfia, nossa arrogância de nos considerarmos os reis e rainhas da natureza animal não nos permite sequer lembrarmos que somos reles mortais. E que se não somos iguais e não estamos no mesmo barco (em relação aos direitos civis, políticos e sociais), estamos ao menos no mesmo oceano, como ouvi dizer o youtuber Henry Bugalho.
O livro é leve, apesar de gigante. Para aqueles que estiverem procurando passatempo através da cultura, vale a pena. Como li certa vez em textos teóricos no curso de Letras da USP, é melhor ler do que não ler os clássicos.
Abraços aos poucos leitores amig@s que virem esta postagem. As demais postagens neste blog sobre a obra em questão podem ser lidas aqui, em ordem cronológica inversa, da mais recente para a mais antiga.
William
Um leitor
Bibliografia:
BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. Imortais da Literatura Universal, Nova Cultural, São Paulo, 1996.
Post Scriptum: mais 2,5 mil mortos pela pandemia
Mortes por Covid-19: quando comecei a fazer este texto, por volta de meio-dia, o número de mortos no mundo pelo novo coronavírus era de cerca de 244 mil vítimas. Ao finalizar o texto agora (18h30), olhei novamente o site da Johns Hopkins University (ver aqui) e, acreditem, morreram mais 2,5 mil pessoas enquanto escrevi este texto. Entendem o que estamos vivendo? Não é uma "gripezinha" como disse o animal que colocaram no governo do país jabuticaba.
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