domingo, 3 de maio de 2020

Lendo Decamerão (1353), de Giovanni Boccaccio




Refeição Cultural

"Pelo que eu entendo, a gratidão deve ser incluída entre as virtudes; e lamentada a ingratidão. Para não ser ingrato, a mim mesmo propus, agora que posso considerar-me livre, o trabalho de ofertar algum consolo, na medida de minhas possibilidades, em troca do que eu recebi. Se não o presto aos que me auxiliaram e que, por sorte deles, ou por seu bom senso, ou sua boa fortuna, não necessitam dele, pelo menos presto-o àqueles aos quais possa ter valor. Não obstante seja muito ínfimo o alívio, ou o conforto, ou seja lá o que for, aos que necessitam disso, mesmo assim me parece que ele deve ser ofertado àqueles cuja necessidade é maior, ou porque mais bem lhes fará, ou porque, desse modo, mais carinhosamente será entendido." (BOCCACCIO, Decamerão, p. 12)


Uma das coisas que a leitura do Decamerão mais nos faz pensar é como deve ter sido escandaloso o impacto da obra em seu tempo, em seu contexto. As estórias são repletas de sexo, traição e críticas severas aos religiosos. 

Outra faceta do livro que nos chama a atenção é a condição das mulheres, tratadas da pior forma possível em relação aos direitos mais básicos dos seres humanos, e que poderíamos dizer que a condição de ontem segue sendo a condição de hoje, séculos depois. Os homens e as sociedades consideram as mulheres menores, inferiores, às vezes são meros objetos de posse como os demais bens materiais.

"Assim sendo, para que se corrija, para mim, o pecado da Sorte, pretendo narrar cem novelas, ou fábulas, ou parábolas, ou histórias, sejam lá o que forem. A Sorte mostrou-se menos propícia, como vemos, para as frágeis mulheres, e mais avara lhes foi de amparo..." (BOCCACCIO, Decamerão, p.13)

Também nos surpreende sempre o fato de obras da antiguidade terem chegado aos nossos tempos, de uma forma ou de outra. E sabemos que as traduções são verdadeiros problemas porque além de difíceis tarefas a qualquer época, elas podem desfigurar completamente os textos originais - não só para pior, às vezes tradutores até "melhoram" os textos (uma brincadeira que ouvia de professores ao dizerem que alguns originais são tão ruins que só eram viáveis em certas traduções).

Inventei de ler o Decamerão por estarmos vivendo em 2020 um cenário parecido com o cenário de fundo da obra: enfrentamos uma pandemia mundial (vírus Covid-19) como os europeus enfrentaram a Peste em meados do século XIV. Giovanni Boccaccio sobreviveu à pandemia e nos legou um grosso volume de estórias que nos deixam perplexos ao pensar como ele conseguiu fazê-las nas condições em que os sobreviventes se encontravam. É espantoso!

Na atualidade, o mundo parou devido à pandemia do novo coronavírus. Neste momento em que escrevo, já são mais de 3,45 milhões de pessoas infectadas pela Covid-19, sendo mais de 244 mil vítimas fatais. Alguns países vivem cenários semelhantes ao descrito por Boccaccio no início do livro: mortes rápidas e repentinas de várias pessoas, sem atendimento médico, morrem em casa, e se veem nas cidades do mundo corpos amontoados sem condições de velórios e enterros decentes.

Me propus a ler uma novela por dia. Hoje li a 32ª novela ou estória. Estou no início da 4ª jornada das narrativas. Nesta rodada de estórias, as sete moças e os três rapazes devem contar casos de amor com finais tristes, trágicos. A jornada anterior era o inverso, estórias de pessoas que conseguiam o que tanto queriam.

A leitura não é difícil, não é leitura engajada, é leitura de descontração. Algumas narrativas são fraquinhas, outras são mais elaboradas e interessantes.

Uma das coisas que mudaram em relação ao aparecimento desse vírus é que a pandemia e as suas consequências nos colocaram um pouco mais cientes de que somos mortais, somos reles mortais, somos frágeis demais. Hoje estou aqui escrevendo, amanhã tenho tosse, febre e falta de ar, daqui três ou quatro dias estou morto. Acabou! Simples assim.

Nós já éramos esses reles mortais, mas nossa empáfia, nossa arrogância de nos considerarmos os reis e rainhas da natureza animal não nos permite sequer lembrarmos que somos reles mortais. E que se não somos iguais e não estamos no mesmo barco (em relação aos direitos civis, políticos e sociais), estamos ao menos no mesmo oceano, como ouvi dizer o youtuber Henry Bugalho.

O livro é leve, apesar de gigante. Para aqueles que estiverem procurando passatempo através da cultura, vale a pena. Como li certa vez em textos teóricos no curso de Letras da USP, é melhor ler do que não ler os clássicos.

Abraços aos poucos leitores amig@s que virem esta postagem. As demais postagens neste blog sobre a obra em questão podem ser lidas aqui, em ordem cronológica inversa, da mais recente para a mais antiga.

William
Um leitor

Bibliografia:

BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. Imortais da Literatura Universal, Nova Cultural, São Paulo, 1996.


Post Scriptum: mais 2,5 mil mortos pela pandemia

Mortes por Covid-19: quando comecei a fazer este texto, por volta de meio-dia, o número de mortos no mundo pelo novo coronavírus era de cerca de 244 mil vítimas. Ao finalizar o texto agora (18h30), olhei novamente o site da Johns Hopkins University (ver aqui) e, acreditem, morreram mais 2,5 mil pessoas enquanto escrevi este texto. Entendem o que estamos vivendo? Não é uma "gripezinha" como disse o animal que colocaram no governo do país jabuticaba.

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