quarta-feira, 26 de agosto de 2020
Brasil, Eichmann e as categorias privilegiadas
"(...) 'Ninguém veio até mim e me censurou por nada no desempenho de meus deveres, nem o pastor Grüber disse uma coisa dessas', ele repetiu. E acrescentou: 'Ele veio até mim e pediu alívio para o sofrimento, mas não objetou de fato ao desempenho de meus deveres enquanto tais'. Pelo depoimento do pastor Grüber parecia que ele buscava não tanto o 'alívio do sofrimento' quanto a isenção para algumas categorias bem estabelecidas anteriormente pelos nazistas. Essas categorias haviam sido aceitas sem protestos pelo judaísmo alemão desde o começo. E a aceitação de categorias privilegiadas - judeus alemães acima de judeus poloneses, judeus veteranos de guerra e condecorados acima de judeus comuns, famílias cujos ancestrais eram nascidos na Alemanha acima de cidadãos naturalizados recentemente etc. - fora o começo do colapso moral da respeitável sociedade judaica..." (ARENDT, 2019, p. 148)
Refeição Cultural
Categorias privilegiadas... Colapso moral da respeitável sociedade...
Muito do que já li sobre o comportamento dos alemães durante o período nazista, ou seja, durante o regime do 3º Reich, sob a liderança de Adolf Hitler, nos passa a descrição do clima cotidiano que se vivia à época, entre 1933 e 1945, tempo de duração do regime que pensava que duraria mil anos.
O filólogo judeu alemão Victor Klemperer, sobrevivente dos campos de concentração, descreve o cotidiano da Alemanha nazista em seus diários, depois transformados no livro LTI - A linguagem do Terceiro Reich (de 1947). O nazifascismo normalizou a banalidade do mal. Transformou em algo normal e corriqueiro aquilo que jamais seria aceito por qualquer ser humano em qualquer sociedade considerada civilizada.
Ao ler o relato de Hannah Arendt sobre o julgamento de Adolf Eichmann, já no início dos anos sessenta, e me encontrar no Brasil do ano de 2020 sob um novo regime de Estado, um regime que se estabeleceu após um processo de golpe de Estado que envolveu praticamente todas as instituições da velha república que havia, é impossível não identificar semelhanças entre os dois períodos: o do nazismo da Alemanha dos anos trinta e quarenta e o nosso mundo, tomado pelo mal de forma institucional e banalizada no cotidiano das gentes.
É por achar semelhanças entre os períodos de ascensão do mal em forma de governo que insisto em registrar algumas coisas, poucas, bobas, para quase ninguém, mas que devem ser registradas. Eu já escrevo neste blog há pelo menos 13 anos. O ideal inclusive seria imprimir e guardar os textos, distribuir cópias para alguns conhecidos, porque uma coisa virtual é mais frágil que uma vida humana. Uma ação qualquer de um terceiro e a coisa não existe mais (como a vida).
As categorias privilegiadas... colapso moral da respeitável sociedade...
Ao organizar o novo golpe de Estado contra a frágil e parca democracia brasileira, as elites privilegiadas desta ex-colônia de impérios não mediram as consequências e não avaliaram os riscos para tirarem do poder um Partido dos Trabalhadores que vinha melhorando a vida do povo "de forma lenta e gradual" e ao mesmo tempo vinha conciliando com essa mesma elite para que o país se desenvolvesse e distribuísse um pouquinho de benefícios aos milhões de brasileiros à margem da cidadania.
E a consequência do golpe foi o que temos hoje. O crime organizado ascendeu ao poder de verdade. O que há de pior na sociedade ascendeu ao poder. Temos hoje como "normalidade" as coisas mais grotescas que se poderiam imaginar. Coisas que jamais seriam aceitas por qualquer sociedade considerada civilizada. Vivemos a mais dramática banalidade do mal na forma de governo, de Estado, e através de suas instituições. E nada acontece em relação a termos uma reação da sociedade civil. Nada!
As mentiras criadas (fake news e lawfare) para se destruir um partido e suas lideranças, um segmento da sociedade, um governo eleito democraticamente em 2002, 2006, 2010 e 2014, foram sendo repetidas e sustentadas por instituições da sociedade como mídia corporativa, ministérios públicos, órgãos de justiça, dentre outras instituições da sociedade, e agora vivemos o abismo, o colapso total. As vítimas não encontram justiça porque as instituições foram todas envolvidas e para se desfazer uma injustiça seria necessário rever todas as injustiças e mentiras mantidas pelas próprias instituições...
E com isso tudo que descrevi acima, normalizou-se as mentiras, o lawfare, a banalidade do mal, o privilégio das categorias privilegiadas. Estamos todos por nossa própria conta. Sozinhos. Milhões de pessoas que não fazem parte dos que apoiam ou pertencem aos grupos que ascenderam ao poder totalitário do Estado, e não sabemos o que fazer nesta situação.
Não temos mais instituições republicanas funcionando minimamente. Não temos mais leis para todos. O clima estimulado pelas classes dominantes no novo regime é o do ódio, da ignorância, o da carteirada... vivemos sob um novo regime totalitário. Se você não for adesista, se não for um deles, tudo pode contra você e os seus. E não adianta buscar justiça, porque ela é somente para os adesistas.
E teremos que sobreviver no meio disso tudo, e com ética, solidariedade e caráter, dimensões praticamente extintas pelo novo regime.
William
Bibliografia:
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém - Um relato sobre a banalidade do mal. Companhia das Letras, São Paulo, 2019.
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