quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Tempo (X)



Refeição Cultural

"(...) o fato essencial é que em toda parte existe uma concepção de final e de começo de um período de tempo, baseada na observação dos ritmos cósmicos e que faz parte de um sistema mais abrangente - o sistema de purificações periódicas (cf. expurgos, jejum, confissão dos pecados, etc.) e de regeneração periódica da vida. Essa necessidade de uma regeneração periódica nos parece ser de considerável significado em si mesma." (ELIADE, 1992, p. 57)

Dias, meses, anos. Primavera, verão, outono, inverno. Aniversário. Ano Novo. A passagem do tempo está marcada em tudo em nossas vidas. Passado, presente, futuro. Horas de trabalho, de descanso, de lazer, de estudo. Pensar um futuro baseado no passado. Imaginar um passado que sequer é comprovável e ele ser a referência do futuro. Avançar no futuro rumo ao passado mitológico, inventado. As religiões. A história.

O animal humano é incrível na capacidade de inventar coisas. Deuses que criaram isso ou aquilo. O paraíso ou os tempos de ouro. Mundos e universos sobrenaturais. O salvador que vai voltar para purificar tudo, separar e salvar alguns e castigar os outros. Vidas que continuam após a morte. Vidas que voltam depois da morte. Mortos que voltam à vida. A vida eterna. Somos realmente diferentes dos demais seres vivos. 

Nós temos a linguagem. Nos comunicamos. Narramos e contamos estórias. Nossos cérebros inventam seres, coisas, criam narrativas que passam a ser mais reais que a própria realidade material e natural. E assim estamos no mundo há tempos. Assim podemos seguir no mundo ou desaparecer enquanto espécie. Somos muito recentes no planeta a se considerar o tempo que já duram o Universo, os planetas e os seres vivos na Terra. Somos muito recentes. Pense um réptil como o crocodilo, por exemplo, e imagine quão recente somos por aqui.

Cinco décadas de existência. Um nada perto do tempo das coisas terrenas. Um nada. No entanto, em cinco décadas, tanta coisa vista, tanta coisa feita. E ao mesmo tempo, tanta coisa que não foi feita, por falta de tempo. Talvez por falta de prioridade na escolha do gasto do tempo. Reflexão quase boba: até parece que temos tantas escolhas assim no uso do tempo... quando se é proletário, pobre, sem posses, sem poderes de sobrevivência a não ser vender seu corpo, o uso de seu corpo, sua força de trabalho, escravizando-se para um desgraçado qualquer.

Cinco décadas e não li os volumes de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido. Não li sequer As viagens de Gulliver, não li Moby Dick, não li Robinson Crusoe. Que fiz nessas cinco décadas?... trabalhei, usei meu corpo como forma de sustento, vendendo ele para uso alheio.

Durante essas cinco décadas, cri em tudo quanto foi teoria imaginativa dos mundos sobrenaturais inventados pelos homo sapiens sapiens. Deus, deuses, demônios, espíritos, Céu, Inferno, Paraíso, Umbral, seres extraterrestres, blá blá blá. 

Hoje sei que a realidade material é meu corpo, meu cérebro, o que fiz, o que sou, o que ainda posso fazer. E só. O amanhã não trará nenhum passado mitológico. Minha existência é essa. A história não se repete. O passado não volta. O futuro é a história humana. A história humana é a criação e a destruição das coisas.

William


Bibliografia:

ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. Trad. José Antonio Ceschin. São Paulo: Mercuryo, 1992.


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