sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Tempo (XIV)



Refeição Cultural

Estou relendo o conto de Julio Cortázar, "O perseguidor", do livro As armas secretas (1959) e o personagem principal, Johnny, fala sobre a questão do tempo. Ele acha incrível o fato de poder pensar em ações e acontecimentos que duram muito mais tempo do que o tempo físico e cronológico. O caso que ele conta é sobre ver em seus pensamentos sua mãe fazer uma oração enorme, pessoas tocarem músicas de vários minutos e tudo isso acontecer num curto espaço de tempo real, do relógio, entre uma estação e outra do metrô, coisa de um minuto e meio. Ele considera o metrô como um relógio e as estações os minutos.

"- Um minuto e meio, nada mais, pela sua conta, pela conta do tempo dessa aí - disse rancorosamente Johnny. - E também pelo do metrô e pelo do meu relógio, malditos. Então, como pode ser que eu tenha pensado durante quinze minutos, hein, Bruno? Como se pode pensar um quarto de hora em um minuto e meio? Juro que naquele dia eu não havia fumado nem um pedacinho, nem uma folhinha - acrescenta, como um menino que pede desculpas. - E depois tornou a me acontecer, agora começa a me acontecer em todos os lugares. Mas - acrescenta astutamente - só no metrô posso perceber porque viajar no metrô é como estar metido num relógio. As estações são os minutos, você entende?, é esse o tempo de vocês, de agora; mas eu sei que existe outro e andei pensando pensando..." (CORTÁZAR, p. 87)

Essa parte do conto de Cortázar me lembrou o conto de Jorge Luis Borges, "O milagre secreto", que também já lemos no programa da disciplina de Literatura Comparada II, com a professora Viviana Bosi. Nele, o personagem no corredor da morte pede a Deus mais tempo para terminar seu romance inacabado. De alguma forma, o personagem recebe esse tempo extra que precisava e consegue terminar sua obra, apesar do tempo físico seguir nos segundos do relógio dos nazistas e do pelotão de fuzilamento. A passagem é muito bonita para nós leitores que soubemos do acontecimento, porque os leitores do mundo ficcional do enredo nunca souberam que Hladik conseguira terminar a obra de sua vida, "Os inimigos". Veja abaixo seu pedido de tempo:

"Pensou que ainda lhe faltavam dois atos e que em breve ia morrer. Falou com Deus na escuridão. 'Se de algum modo existo, se não sou uma de tuas repetições e erratas, existo como autor de Os Inimigos. Para levar a termo esse drama, que pode justificar-me e justificar-te, requeiro mais um ano. Outorga-me esses dias, Tu de Quem são os séculos e o tempo.' Era a última noite, a mais atroz, mas dez minutos depois o sono o inundou como água escura." (BORGES, p. 570)

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A releitura do final do conto de Borges, o drama de Hladik, me comoveu intensamente. Lágrimas! E o ano extra que ele teve para concluir sua obra lhe foi concedido... e tudo durou uma certa quantidade de segundos no tempo do relógio nazista... aff! Que dureza!

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Reflexão após leituras

Todos esses estudos ligados à questão do tempo e das "configurações do tempo em diversas formas de narrativa e poesia" - nome que a professora Viviana Bosi deu à disciplina que estamos fazendo - tem feito com que eu reflita muito e sobre muitas coisas. Sobre a vida, sobre a sociedade, sobre o tempo em tempos de pandemia mundial de Covid-19. Sobre sentidos e busca de sentidos nas coisas. Sobre a história.

Meu curso caminha para seu fim. O fim de um tempo em minha vida. Ao mesmo tempo, o contexto mundial faz com que tenhamos a sensação que muitas coisas caminham para o fim também. O fim de uma época, de uma era. Um ciclo histórico, talvez. E com muitas incertezas sobre o futuro (é claro!); futuro que poderia ser um reflexo distorcido do passado, já que entendo que o passado não se repete, apesar das concepções ideológicas que tentam negar o presente histórico com a tese de buscar no futuro o passado, aliás um passado mítico, inventado, que nunca existiu.

Enfim, vamos seguir lendo e estudando. Tenho que encontrar sentidos mesmo sabendo que não há sentidos a encontrar. A gente cria sentido para as coisas para justificar a existência de algo ou de alguém.

William


Bibliografia:

BORGES, Jorge Luis. Obras completas, Volume 1, 1923-1949. Editora Globo.

CORTÁZAR, Julio. As armas secretas. Tradução de Eric Nepumoceno. 2ª edição, José Olympio Editora.


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