terça-feira, 14 de setembro de 2021

Superman: entre a foice e o martelo



Refeição Cultural

Ganhei de meu filho um belo presente de Dia dos Pais, um HQ muito interessante: Superman: entre a foice e o martelo, criação de Mark Millar, com ilustrações de Dave Johnson, Kilian Plunkett, Andrew Robinson e Walden Wong. A edição colorida e com capa dura foi lançada pela Panini em 2017, mas a obra é do início dos anos dois mil, pelo que se vê na introdução de Tom DeSanto, de outubro de 2003.

A postagem não será uma sinopse a respeito da obra como se costuma fazer. É provável que haja boas matérias sobre as qualidades e críticas desse roteiro de Mark Millar. Meu filho mesmo me enviou um vídeo muito bom sobre esse HQ, feito pelo youtuber Elba. Vale a pena assistir. Aliás, a edição que Elba usa para comentar não é a que tenho, que é mais recente, de capa dura. 

Após ler durante vários dias a estória, reli hoje de uma só vez. A segunda leitura foi bem melhor que a primeira, isso posso dizer. As ilustrações são muito legais. O roteiro deve ter efeitos diferentes de acordo com o conhecimento de cada leitor. Como não conheço o mundo dos HQ e dos super-heróis, perco referências na narrativa. Mas isso não atrapalhou o entendimento da estória.

O que mais fiquei pensando a partir da ideia de Superman: entre a foice e o martelo foi a respeito da ideologia, uma das abstrações humanas que sempre pesaram na definição da história das sociedades e que hoje voltou a ser determinante no século XXI nessa nova guerra estúpida que vivemos no seio do capitalismo mundial. A ideologia da classe dominante, o chamado 1%, está destruindo o planeta Terra e as chances de vida para as mais diversas espécies que existem até o momento.

De forma simples, a estória é a seguinte: a nave com o bebê extraterrestre sobrevivente do planeta Kripton não caiu em uma fazenda em Smallville, no Kansas, EUA. Caiu em uma fazenda de produção coletiva na Ucrânia, URSS. Anos trinta. E daí a estória se desenvolve. Superman é o herói e líder da União Soviética de Stalin e pós Stalin e não um herói norte-americano na luta contra os comunistas no auge da guerra fria. 

O quadrinho tem 3 capítulos: "Amanhecer", "Zênite" e "Poente". Na primeira parte conhecemos Superman e seu mundo soviético. Conhecemos os Estados Unidos do cientista Lex Luthor, casado com a jornalista Lois Lane Luthor. Na segunda parte temos as lutas entre os dois lados e na terceira o desfecho da estória. Tem de tudo na trama, tem o Batman, tem um tal Brainiac, que pesquisei depois para saber que é um dos inimigos de Superman assim como Luthor. Enfim, como a narrativa é uma inversão do que conhecemos, todos têm papéis trocados ao que se conhecem deles.

Resumi bastante, porém quero falar meu sentimento em relação à questão da ideologia.

IDEOLOGIA E DOMINAÇÃO CULTURAL

A primeira coisa que fiquei pensando durante e após a leitura do quadrinho foi a respeito de ideologia. Ideologia é tudo no mundo da sociedade humana. Ela está por trás de tudo. Ideologia é até a ferramenta básica para manipular as pessoas contra a questão da "ideologia". 

E penso mais: vamos nos acabar em nome das ideologias. Quem sabe outras formas de vida sigam adiante no planeta Terra se nós mamíferos humanos nos acabarmos logo, antes de inviabilizarmos de vez qualquer forma de vida neste "Pálido Ponto Azul" no universo, como dizia Carl Sagan.

DESDE CRIANÇA, TORCEMOS PELOS INVASORES

Quando eu era criança, no final dos anos setenta, eu acreditei por um momento no Superman. Sério! Eu achava que aquilo que vi de alguma forma na TV era uma informação do mundo para nós que víamos deslumbrados aquilo: havia um super-homem que voava, que tinha poderes incríveis e ele era um extraterrestre criado numa fazenda no interior dos Estados Unidos da América. E ele nos salvava dos criminosos e dos malvados do mundo.

A vida seguiu. Eu me tornei adulto. Fui entendendo como a vida funcionava desde que me mudei de São Paulo para Minas Gerais, aos dez anos de idade. Passei a ver o mundo de forma muito mais real e dura. Já de volta a São Paulo, com quase 18 anos, me politizei e vivi parte substancial da minha vida nos movimentos de lutas da classe trabalhadora, nos movimentos estudantis e no movimento sindical.

Nos anos dois mil, no século XXI, eu devia ter talvez uns quarenta anos de idade quando vi um vídeo do nosso fantástico Ariano Suassuna fazendo uma palestra e falando sobre a sutileza da ideologia e da dominação cultural dos impérios capitalistas, o inglês e o americano. Ele explicava ao público que o via sobre a importância de a gente defender a cultura local em relação às culturas imperialistas. Vale a pena vocês assistirem ao vídeo na internet, é fácil de achar.

Amig@s leitores, a ideologia é uma coisa tão forte, tão profunda, que a gente nem percebe a ideologia funcionando no processo de dominação cultural em nós mesmos. No vídeo de Suassuna, ele fala da dominação inglesa em relação aos indianos citando um filme de época e, de forma mais rápida, ele fala do Indiana Jones... sim, o arqueólogo norte-americano que quase todos nós conhecemos e "torcemos" por ele. É o poder da indústria cultural de Hollywood, nos faz torcer pelos ladrões e invasores.

É demais a explicação de Ariano Suassuna: o personagem é um ladrão, rouba artefatos culturais e históricos das mais diversas partes do mundo, e nós telespectadores torcemos por ele! (tanto os do Norte, beneficiários, como nós os invadidos há séculos). É incrível! E como não torcer por ele - e pelo que ele significa, o império norte-americano - da forma como o filme é feito? Tem arte naquilo, tem técnica! A gente se vê adulto, achando até que é politizado e, no fundo, estamos no cinema ou em casa torcendo pelo Indiana Jones... é foda!

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"SUPERMAN: ENTRE A FOICE E O MARTELO" ME FEZ PENSAR SOBRE IDEOLOGIA

Por que essa lembrança do super-homem quando vi a questão com os olhos de uma criança com menos de dez anos e depois, ao levar um "puxão de orelha" de Ariano Suassuna já estando com mais de quarenta anos?

Para lembrar do poder da ideologia! Ela está nos valores e na cultura cotidianamente. Ela está na pauta cotidiana das pessoas e na agenda diária em nossas vidas, queiramos ou não, façamos de conta que não percebemos isso ou tendo consciência disso.

Foi por essa abstração humana, essa técnica de fazer as pessoas se engajarem em ideias e valores, que chegamos até aqui na sociedade humana. É pela ideologia que o animal humano está destruindo aceleradamente as condições de vida neste único planeta do universo com possibilidades de vidas, como disse Carl Sagan em seu "Pálido Ponto Azul".

É isso, me alonguei. Mas é um registro, uma reflexão. Ideologia é muito muito mais que razão, que racionalidade; é contradição porque é algo do animal humano, classificado como racional, sapiens, mas completamente alheia à razão.

Em cinco décadas de vida, já alternei crenças antagônicas sobre os seres humanos. Ora achei que a história é feita por heróis e líderes que definiram épocas e mundos, ora achei que a história foi feita por indivíduos na multidão, de forma caótica e anárquica, sem organização e lideranças, com eventos nas esquinas que crescem e mudam tudo.

Ainda estou avaliando se é uma das coisas ou as duas ou nenhuma delas. 

William


Bibliografia:

Superman: entre a foice e o martelo. Roteiro por Mark Millar; arte por Dave Johnson; tradução por Jotapê Martins. - Barueri, SP: Panini Brasil, 2017.


segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Tajá e sua gente - José J. Veiga



Refeição Cultural

"Tajá ficou penalizado. Imagine um agricultor formado ficar perdendo tempo numa atividade tão diferente. Devia ser por isso que seu Oscar às vezes tinha aquele olhar triste e distante. Deve ser triste uma pessoa ter aprendido tantas coisas e não poder aproveitar o que aprendeu." (VEIGA, 2008, p. 43)


Após leituras difíceis porque mais engajadas, que exigem mais do leitor, peguei um pequeno livro do grande mestre José J. Veiga e li nesta manhã de segunda-feira.

Que estória linda! A estória de Tajá e sua gente (1986) nos deixa pensando que o mundo da sociedade humana poderia ter jeito. Penso que literatura também tem esse papel na vida das pessoas: sonhar, acreditar em coisas melhores.

Tajá é um garoto muito inteligente. Um certo dia, inventa uma forma de melhorar sua condição especial, e vai atrás de seu sonho de se locomover com mais facilidade. Deu certo! E a vida seguiu.

Em um momento da vida, o jovem Tajá descobre a leitura de livros e os conhecimentos gerais, saberes enciclopédicos. Fica deslumbrado com tanta coisa que aprende. Ele estava se tornando um "homem cultivado" para usar uma expressão de Mircea Eliade.

"Quando leu mais sobre a Terra no espaço, Tajá chegou a ficar assustado, depois incrédulo. Quanta coisa acontecendo o tempo todo, e ele sem saber! Quando é que podia ter imaginado que além de girar em volta do Sol a 107.000 quilômetros por hora a Terra ainda acompanha o Sol e outros planetas em torno do centro da Via Láctea a 770.000 quilômetros por hora, acompanha a Via Láctea numa viagem em torno do centro de um conjunto de 2.500 galáxias outras a 2.100.000 quilômetros por hora, e com todos os corpos celestes se afasta de um ponto no espaço, onde se supõe que todos nasceram de uma explosão, a 580.000 quilômetros por hora." (p. 36)

Em outro momento, percebe que os saberes novos não têm aplicação em sua vida cotidiana, ninguém liga para os novos conhecimentos que ele quer compartilhar. Papel aceita tudo, lhe diria seu amigo Dito, duvidando dos livros e da ciência.

"Das Dores continuava calado, indiferente à discussão. O problema dele era saber quando a chuva ia passar para ele voltar a vender biscoitos. Saber quantos milhares ou quantos milhões de léguas a Terra andava enquanto ele dizia José Maria das Dores Teixeira Gomes, se é que andava mesmo, não melhorava a situação dele, que não estava ganhando nada ultimamente." (p. 38)

A parte do romance na qual o jovem Tajá não sabe o que fazer com seu conhecimento porque a realidade das pessoas exige algo muito mais concreto e imediato que o saber enciclopédico dele me fez pensar na fala de um jovem negro num texto de Esther Solano e no contexto em que vivemos. O artigo "Democracia concreta", na edição 1171 de Carta Capital, de 28/08/21, me deixou cabisbaixo, me deixou descabriado. Senti um desacorçoo grande com a realidade do rapaz, que é o símbolo de sua gente.

"Dias depois de Bolsonaro ganhar as eleições, ainda na nossa profunda depressão coletiva, fiz entrevistas numa região periférica de São Paulo. Lembro até hoje, talvez vá lembrar para sempre, da frase pronunciada por um jovem negro no transcurso de uma das conversas. Era uma dessas frases que resumem a vida em alguns segundos, lapidária, a impor-se sem deixar espaço para réplicas: 'Professora, agora que Bolsonaro ganhou, vocês, brancos de classe média, estão preocupados com a democracia? Nós, jovens pretos, continuamos preocupados em não morrer'. Julguem como quiserem, mas, nesse momento, a democracia, um conceito que sempre me pareceu enorme e digno, se apequenou imensamente diante desse jovem." (p. 27)

Difícil, heim!

Enfim, o romance de José J. Veiga tem um final feliz, utópico, mas possível, porque as personagens podem representar qualquer um de nós humanos.

Até pouco tempo, uns cinco anos, nunca tinha lido nenhuma obra de Veiga. Invoquei com a questão e fui atrás dos livros dele. Acho que comprei todos em sebos e livrarias por aí. Estou quase acabando a leitura de sua obra completa. O autor é muito, mas muito bom!

William


Bibliografia:

VEIGA, José Jacinto. Tajá e sua gente. Ilustrações Raul Fernandes. 3ª ed. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008

Revista Carta Capital, edição 1171, de 28 de agosto de 2021.


domingo, 12 de setembro de 2021

Ulysses - Eumeu (O Abrigo)



Refeição Cultural

"Olhava de lado de modo amistoso para o lado do rosto de Stephen, a cara da mãe, o que não era bem a mesma coisa que o tipinho bonito traiçoeiro de sempre que elas inquestionavelmente procuravam de forma insaciável já que ele talvez não fosse desse jeito mesmo." (p. 938)


Foram necessários três dias para ler o capítulo 16 do Ulysses. Já estou cansado da leitura. Cada capítulo é do tamanho de um livro. Aliás, o anterior, que se passa no prostíbulo em meio a alucinações, teve duzentas páginas (ler postagem aqui). Já estou louco pra acabar a leitura, mas ainda tenho cem páginas do penúltimo capítulo e umas setenta do clássico monólogo interior de Molly Bloom.

Neste capítulo, eu diria que temos a representação de Ulisses e Telêmaco, personagens da Odisseia grega.

Já passa da meia-noite na Dublin de 1904 - 17 de junho -, Bloom não quis deixar Stephen sozinho, já embriagado após sua passagem pelo prostíbulo. Eles vão juntos a um abrigo onde ficam os cocheiros das carruagens-táxi da cidade. Bloom dá um jeito de fazer o rapaz comer alguma coisa e tomar um café para passar a embriaguez.

Na Odisseia homérica, Eumeu é o porqueiro de Ulisses (Odisseu), que o recebe em sua casa quando volta a Ítaca disfarçado de velho, uma magia da deusa Palas Atena. Ali no abrigo, pai e filho se encontram e planejam a forma de retomar a propriedade invadida pelos pretendentes de Penélope.

A BEBIDA ALCOÓLICA E A EXPOSIÇÃO AOS RISCOS DIVERSOS

Num certo momento, me lembrei de nossos jovens, bebendo mais do que seria o "beber socialmente", um conceito próximo a beber sem ficar alcoolizado, perder o estado de alerta e a consciência do que está fazendo. Bloom está com Stephen um pouco por causa disso, ele está meio fora de si e pode acontecer algo de ruim a ele. Tanto é que ele se envolveu em uma briga e levou um soco que o deixou prostrado no chão.

COMENTÁRIO - O ideal seria que as pessoas bebessem e parassem antes de se embriagarem e ficarem expostas aos riscos mais diversos que a bebedeira causa, riscos a si, aos outros e a eventos trágicos e sem volta. É o que eu diria às pessoas que gosto, após meu meio século de vida. Bebam, mas parem antes de perderem a consciência e ficarem expostos aos outros.

"(...) ainda assim jamais além de um certo ponto onde invariavelmente traçava um limite na medida em que isso simplesmente criava problemas de toda espécie para nada dizer de você ficar exposto à mercê dos outros praticamente." (p. 871)

A MISÉRIA DA CLASSE TRABALHADORA

Neste capítulo tem alguns momentos de clara referência à miséria em que se encontra a classe trabalhadora. Como disse em postagens anteriores, desde o início da obra vemos como pano de fundo do romance a miséria e a falta de dinheiro e recursos básicos da gente comum retratada num dia comum de um homem comum, o publicitário Leopold Bloom. Além, é claro, das críticas de Joyce às crendices de sua sociedade.

"(...) Eu bem que topava carregar uma placassanduíche só que a menina do escritório me disse que eles estão lotados pelas próximas três semanas, amigo (...) Eu não estou nem aí desde que eu consiga trabalho, até de varredor de rua." (p. 875)

É o capitalismo inglês e mundial... aos proletários, mesmo que educados, só a miséria!

"(...) A pobreza mais violenta tinha mesmo esse efeito e ele mais que conjecturava que, conquanto possuidor de grandes habilidades educacionais, ele tivesse não pouca dificuldade em pagar as contas." (p. 879)

COMENTÁRIO - O que vemos no Brasil no século XXI após um golpe de Estado que destruiu completamente a economia do país e as oportunidades da classe trabalhadora? A mesma situação dos trabalhadores do cenário de Os miseráveis do século XIX e dos trabalhadores do Ulysses, do século XX.

PATRIOTISMO: DISTRIBUIR MELHOR A RIQUEZA ENTRE OS CIDADÃOS

"(...) quero ver todos eles, concluía ele, todos os credos e raças pro rata com uma renda confortável de bom tamanho, sem nada de avaro não, coisa na casa de £300 por ano. Esse é o ponto vital em questão e é factível e ocasionaria relações mais amigáveis entre os homens. Pelo menos é essa a minha ideia, boa ou má. Eu chamo isso de patriotismo. Ubi patria, como nós aprendemos uns fumos nos nossos dias clássicos em Alma mater, vita bene. Onde você pode viver bem, é o sentido, se você trabalhar." (p. 912)

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LEITURA DOS CLÁSSICOS

Enfim, lido mais um capítulo de Ulysses. Caminhamos para o fim, para os dois últimos capítulos, mais umas duzentas páginas.

Não há que se discutir a qualidade das inovações desenvolvidas por James Joyce neste romance - são fantásticas -, mas ao ler algum romance de linguagem prosaica mais regular, a gente acaba se perguntando sobre um dos papeis da literatura, que é o prazer. 

A maior parte do romance Ulysses, com suas diversas técnicas narrativas a cada capítulo, não foi prazerosa; foi curiosa, foi desafiadora, mas pouco prazerosa.

Ler os clássicos vale a pena, repito sempre, porque a leitura tem consequências diversas em nosso ser: além do ponto de vista cultural, evoluímos do ponto de vista cerebral, físico. 

Saímos de um clássico diferentes, mesmo quando não gostamos da obra, o que não é o caso aqui. Eu gosto de Ulysses.

William


Bibliografia:

JOYCE, James. Ulysses. Tradução de Caetano W. Galindo. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.

sábado, 11 de setembro de 2021

Happiness only real when shared



Refeição Cultural

Em maio de 1990, eu fui demitido do Unibanco. Eu estava meio de saco cheio daquele trabalho e daquele lugar. Mandei meu chefe à merda após ele mandar eu me mudar de mesa de trabalho. Achei que era implicância dele e me neguei a mudar de lugar. Zé Fernandes era gente boa, um cara humilde, me demitiu todo sem jeito porque eu exagerei na situação. Eu tinha 21 anos. Hoje eu tenho essa leitura, era um trabalhador assim como eu.

Em setembro de 1992, eu tomei posse de minha vaga concursada no Banco do Brasil. Depois de um período de incertezas, eu me tornava um trabalhador de empresa pública e passava a vislumbrar uma vida um pouco mais estável. Um ano antes, eu havia passado no concurso e após comemorar a conquista, o concurso foi cancelado por fraude de uns filhinhos de papai em Brasília. Só seria bancário do BB se passasse de novo no concurso com um milhão de inscritos. Deu certo. Passei de novo. Eu tinha 23 anos.

Entre a adolescência e a suposta estabilidade do emprego em empresa pública, foram anos de incertezas, revoltas, desilusões na vida. Aprendi inglês pensando em ir embora do país. Pensei o que todo jovem pensava na época, ir para o Japão, trabalhar em outro país. Tentei até trabalhar na construtora Mendes Júnior, na época, e quase fui pro Iraque, mas só tinha vagas de motoristas de caminhão. A família Bush iria bombardear o país tempos depois. Os anos oitenta e noventa foram foda para a classe trabalhadora brasileira.

Essa introdução na forma de lembranças foi para situar coisas que pensei quando conheci a história de Chris McCandless após 2007. A história social dele não tem nada a ver com a minha. Ele era filho de classe média nos Estados Unidos. Tinha caminho aberto para seguir os padrões de sucesso da sociedade capitalista. Mas era jovem contestador e queria outra forma de vida, não o acúmulo de coisas do modelo capitalista.

Um dia a companheira Deise Recoaro, do movimento sindical, me sugeriu assistir ao filme sobre o jovem americano. Quando vi o filme Na natureza selvagem (2007), dirigido por Sean Penn, quando li em seguida o livro de Jon Krakauer - Na natureza selvagem (1996) - e quando passei meses ouvindo as músicas da trilha sonora do filme, produzida por Eddie Vedder, fiquei bolado, fiquei mals, fiquei muito tempo impactado pela história do jovem andarilho Alex Supertramp. 

Ao ler o livro reportagem, me lembrei de minha busca por um lugar ao sol, um lugar na sociedade daqueles anos. McCandless estava justamente fazendo isso entre maio de 1990 e agosto de 1992, quando descobriu e escreveu num livro que "Happiness only real when shared" (a felicidade só é verdadeira/real quando compartilhada). Eu fiquei muito tempo pensando nessa mensagem de McCandless, uma mensagem refletida no meio da solidão do Alasca, preso pelas condições climáticas e sem poder voltar para a sociedade, para as pessoas.

Olhei minha vida em retrospectiva e fiquei pensando sobre os momentos felizes que a gente tem nessa vida dura e normalmente difícil ao longo da maior parte do cotidiano. Apesar de ser apaixonado pela natureza, por montanhas, rios, mato e acampamento, percebi que McCandless tinha razão. Os momentos mais felizes de minha vida tiveram pessoas ao meu lado. Não foram de solidão, não foram. 

Estou pensando muita coisa nesse instante. Revi hoje o filme. Estou emotivo, olhos úmidos. Não devo escrever a outra parte dessa refeição cultural. Ela tem sentimentos de amor, filho, família, amigos, companheirismo de lutas e trabalho. Mas são muito pessoais. 

Mas realmente a mensagem do jovem McCandless - Alex Supertramp - é uma mensagem de sabedoria. Hoje tenho isso claro. 

Felicidade mesmo só é alcançada, só é verdadeira e real quando é compartilhada, até porque somos humanos.

William


quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Cancelado



Quinta-feira, 9 de setembro do 2º ano da pandemia do novo coronavírus. Brasil de Bolsonaro.

O governo do Estado de São Paulo mandou uma mensagem pra mim informando que meu agendamento para tomar a 2ª dose da vacina contra o vírus Sars-Cov-2 nesta sexta-feira 10 foi cancelado. Não tem vacina.

Até hoje, morreram no Brasil de Bolsonaro 585.174 pessoas oficialmente. Vai saber quanta gente morreu por causa da pandemia de Covid-19. O número de brasileiros mortos em 2021 já ultrapassou as estatísticas anuais.

Mortes severinas essas nossas no Brasil de Bolsonaro.

Não tem vacina...

Quero agradecer cada bolsonarista responsável por eu não tomar a 2ª dose de vacina como deveria. Quero agradecer meus familiares bolsonaristas. Quero agradecer meus conhecidos de cotidiano, gente simpática, mas bolsonarista.

Francamente, quero que cada bolsonarista vá pros quintos do inferno! (sei que isso não existe, é força de expressão)

Pra morrer basta estar vivo, mas eu torço muito pra que morram muitos bolsonaristas antes de mim.

William


terça-feira, 7 de setembro de 2021

070921 - Diário e reflexões (III)


Refeição Cultural

Vai terminando o dia 7 de setembro. O genocida miliciano no poder e seus comparsas Brasil afora vão se recolhendo e voltando para seus covis. Que nojo desses animais!

Vendo alguns comentários e análises de veículos de informação, jornalistas e convidados, me pareceu que a maioria avaliou que a montanha pariu um rato. Com toda a grana enfiada nas manifestações para fazer as fotos pró-regime do mal, a quantidade de "povo" do troglodita foi só 5 ou 10% do que pretendiam.

O sujeito ameaçou autoridades do poder judiciário, ameaçou a imprensa, ameaçou as eleições de 2022, ameaçou quem não fala amém pra ele, falou que amanhã vai reunir um conselho não sei de quê pra definir os rumos do país a partir dali etc.

Enquanto isso, ele consegue manter a pauta, a agenda, o foco nele e todos nós seguimos na pauta dele, e a FOME CONSOME mais da metade dos 2015 milhões de brasileiros, que não sabem se vão ter alguma coisa pra comer amanhã cedo, enquanto esse desgraçado decide o que vai fazer com esse pasto continental.

Não li nada de literatura. Li sobre gestão de saúde. Eu tenho um compromisso com o movimento sindical e com a classe trabalhadora à qual pertenço. Se alguma entidade de classe quiser minha opinião sobre os temas que sei alguma coisa, me organizo para dar a minha opinião. Ainda vou ler e reler sobre saúde nos próximos dias.

Lendo documentos técnicos sobre implantação de sistema de atenção integral à saúde numa autogestão de trabalhadores, me vem tanta coisa à memória! Fizemos coisas boas naquele tempo em que atuamos no setor. Exerci em quatro anos tudo que aprendi e defendi como concepção e prática sindical. Enquanto lá estive, nenhum direito foi retirado, a democracia e transparência prevaleceram. Enfrentamos o patrão. Foi uma experiência e tanto!

Aí veio o ódio como ferramenta de manipulação de massas, veio o lawfare como instrumento de destruição de pessoas, veio o golpe de Estado, veio a destruição dos direitos do povo, veio a maldade contra os pobres. Que merda! O povo se f...

Chega por hoje. Só não chega meu desejo de estudar, ler, aprender, refletir, pensar, criar, compartilhar conhecimento. A espécie humana não precisa ser o que são esses bolsonaristas, nazifascistas, essa gente odiosa. A espécie humana pode ser fraterna, solidária, amorosa, gregária.

William


070921 - Diário e reflexões (II)



Refeição Cultural

LULA NÃO É UM "EX-PRESIDIÁRIO", ELE É UM EX-PRESO POLÍTICO

Eu fico pensando o ser humano... o preconceito é um dos piores sentimentos dessa espécie animal


Hoje de manhã eu vi uma postagem na rede social de uma pessoa, com quem trabalhei um tempo, que me deixou triste. Ela estava clamando uma terceira via nas eleições presidenciais brasileiras do ano que vem. Até aí tudo bem. Talvez um terço ou mais da população queira uma "terceira via" nas eleições de 2022. Se as pessoas quiserem mesmo, haverá... é só votarem nessa pessoa 3ª via.

A pessoa aparentava estar indignada com as manifestações políticas do dia 7 de setembro. Indignada, falou do presidente em exercício, de seu desrespeito pela democracia e pela dignidade humana. Aí falou do ex-presidente Lula, e resumiu o que pensa dele dizendo se tratar de um "ex-presidiário"... Pela postagem, sugeriu que ambos são os corruptos de estimação de dois segmentos da sociedade. 

Eu fiquei parado uns segundos pensando nessa pessoa... cara, ela é gente boa, mas essa manifestação reforçou muito o meu sentimento de desânimo em relação ao ser humano. Eu não desisti de viver, de lutar por um mundo melhor, de fazer o bem, de buscar a paz social, de tentar transformar os seres humanos em pessoas melhores e livres através da educação e do conhecimento. Mas estou cansado ou me cansando do ser humano... tem horas que a gente se questiona se o animal humano vale a pena o esforço que a gente faz pela espécie...

A pessoa é estudada, sei disso. Em nenhum segundo, ela considerou a realidade factual. Ela expressou o seu preconceito. Preconceito! O ex-presidente Lula pode até ser um ex-preso político, mas ele não é um "ex-presidiário" no sentido semântico com que a pessoa o denomina. 

Lula sofreu um processo de lawfare conhecido no mundo inteiro, não só no Brasil, a operação Lava Jato foi uma operação de lawfare orquestrada para destruir o Brasil, se apropriar do pré-sal e a Petrobras e transformar a ex-colônia num pasto continental fornecedor de commodities para países desenvolvidos. No entanto, todas as invenções criadas contra ele estão sendo desfeitas, já são 18 acusações falsas revistas pela justiça. 

Poucas pessoas no planeta já foram tão investigadas por décadas como Lula. E nunca provaram que ele tenha roubado uma agulha sequer. Lula é honesto, como bem lhe ensinou dona Lindu, sua mãe. 

E essa pessoa inteligente, gente boa, simpática, chama Lula de corrupto e o compara com o outro sujeito que acumulou milhões de reais e dezenas de imóveis sem renda que justificasse tal fato. Compara Lula com a pessoa que comete crimes e contravenções di-a-ri-a-men-te no exercício de um mandato presidencial. O sujeito que colocaram no poder por fraudes e golpes é uma pessoa do mal, vil, com todos os atributos negativos que um ser humano poderia ter. 

Francamente... o homo sapiens parece estar em risco de extinção mesmo. O professor Nicolelis, no livro sobre o cérebro humano, o Verdadeiro Criador de Tudo, vê com preocupação para onde caminha a espécie homo sapiens. Eu também.

William


070921 - Diário e reflexões



Refeição Cultural

SAÚDE DOS TRABALHADORES DO BB

Ontem e nos últimos dias passei algumas horas estudando e relendo documentos relativos à história da Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil. Mais que isso, passei horas lendo textos sobre sistemas de saúde, modelos existentes e desejáveis, história dos movimentos de saúde, sobre o Sistema Único de Saúde do Brasil etc. É que vou fazer duas palestras sobre saúde nos próximos dias. A leitura é para preparar minhas apresentações. Eu fui gestor de saúde em mandato eletivo e acabei aprendendo sobre o tema.

Ao lidar com isso, a gente pensa tanta coisa, relembra tanta coisa! avalia quantas oportunidades foram perdidas e quantas foram aproveitadas para fazer avançar alguma coisa nos direitos em saúde das pessoas. E depois a gente vê que pequenos avanços são desfeitos como castelos de areia na praia, que não resistem a uma onda que chega e leva tudo, ou mesmo a uma bela pisada de alguém ruim, que destrói aquilo só por maldade ou porque quer tomar aquele espaço pra si, expulsando quem ali convive porque aquele espaço de areia é oportunidade de negócios e o que interessa é ganho, dinheiro, privilégio, poder.

Ao reler documentos que relatam a história da Cassi, a história de luta dos trabalhadores do Banco do Brasil, a gente também vê tanta gente que já não está mais entre nós! E olha que eu sou relativamente novo! Por outro lado, a gente vê também pessoas que estão há décadas envolvidas com as questões de saúde e de lutas por direitos dos trabalhadores. Tem de tudo. Pessoas que consideramos nossas adversárias nas ideias e ideais e pessoas que consideramos companheiras que compartilham da mesma visão de mundo, ou visões parecidas, mais que antagônicas. Tem de tudo.

A cada página que li percebi a Cassi 2021 regredindo no modelo assistencial, seja na leitura do grosso volume que guarda registros de pontos de vista de entidades, pessoas e relatos diversos a respeito da história da reforma estatutária da Cassi em 1996, seja nos documentos formais que descrevem a definição, implantação e objetivos do novo modelo assistencial da Caixa de Assistência, documentos de 2001. A cada parágrafo de leitura, vejo o quanto a Cassi atual está andando para trás, está regredindo, está se inviabilizando enquanto "Caixa de Assistência". É uma coisa incrível! 

A direção atual, a nova onda, está fazendo a Cassi voltar a ser aquela anterior que mudamos após a reforma estatutária de 1996, uma mera pagadora de serviços num modelo médico-curativo, que estimula demandas espontâneas por telemedicina. A direção está terceirizando tudo, achando que isso vai levar a entidade à sustentabilidade. O pior é que ainda faz propaganda como se a estratégia fosse Atenção Primária em Saúde. Que coisa triste! É a nova onda, é a pós-verdade!

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7 DE SETEMBRO

Decidi não ir à manifestação do "Grito dos Excluídos" aqui em São Paulo.

Tenho participado de todas as manifestações populares dos últimos anos, as grandes e as pequenas. Não estou motivado para ir hoje. Vou seguir estudando os textos que separei para falar a respeito de saúde dos trabalhadores do Banco do Brasil.

William


segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Diários com Machado de Assis (VII)



Refeição Cultural


A SENHORA DO GALVÃO

Leitura do conto "A senhora do Galvão", publicado primeiro na Gazeta de Notícias, em 10 de fevereiro de 1884, e depois no livro Histórias sem data, do mesmo ano.

Esse conto me fez pensar na condição das mulheres, ontem e hoje. Sempre? Quem saberia dizer...

A estória é relativamente simples e comum. O narrador onisciente nos conta a vida conjugal de Maria Olímpia e Eduardo Galvão. Ela com 26 anos de idade, casada com um jovem advogado em início de carreira. 

O narrador nos situa no tempo, o ano em que se dão os acontecimentos é o de 1853. Machado usa datas históricas do Brasil para referenciar fatos. O pai de Maria Olímpia era "deputado do tempo da Regência". A viúva amiga do casal teria uns 35 anos, mas depois nos diz que tinha 31 porque "nasceu em 1822, na véspera da independência".

Dois exercícios que tento fazer ao ler textos publicados em outras épocas e lugares é imaginar o mundo da época da enunciação da estória e o que o autor quis dizer e transmitir aos leitores. E sei que romance é ficção. Não esqueçamos disso! Quando Bentinho ou Brás Cubas escrevem suas histórias, elas são ficção, ok?

Então, 1884, Rio de Janeiro, Brasil. A lei do Império que vigora é a da escravidão das pessoas trazidas do continente africano ou seus descendentes. Já há algumas leis de exceção, mas a escravidão de gente é lei. Alguns humanos são propriedade de outros assim como vacas e cavalos - semoventes na hacienda. Machado de Assis é descendente de avós paternos escravos alforriados.

Imaginem as ruas do Rio de Janeiro. Andem por elas em 1884. Imaginem a condição das mulheres também, para além da questão da escravidão. As mulheres eram praticamente propriedades dos homens também. Os pais mandavam nas filhas, negociavam elas. Dureza!

Machado situa o enredo da estória umas décadas antes, em 1853.

Enfim, fiquei pensando nessas questões acima porque é difícil se colocar no lugar de Maria Olímpia. O que eu faria no lugar dela? Eu não sou mulher. Mesmo hoje, século e meio depois da condição em que está Maria Olímpia, o que fariam as mulheres no lugar dela?

Após séculos de ciência e descobertas, a espécie humana contém indivíduos que agem de acordo com os conhecimentos acumulados ao longo da história e contém indivíduos que agem como aqueles que viviam milhares de anos atrás, assustados com raios, trovões, sombras e eclipses, ignorantes em tudo, primitivos e que levam a vida baseada em mitos. 

Séculos depois de descobertas e ciência, temos o bolsonarismo no Brasil, os talebans no Afeganistão, os negacionistas trumpistas.

Pra finalizar mesmo, fico imaginando o que sentia Machado de Assis, um sujeito não branco, apadrinhado de uma pessoa ilustre, o senhor José de Alencar, defensor da manutenção da escravidão no Brasil nos debates públicos (ler aqui). Como se sentiria Machado em relação ao amigo e protetor Alencar? Que situação!

William


Bibliografia:

ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 14ª reimpressão, 2015.

domingo, 5 de setembro de 2021

Brás Cubas - Frases e ideias selecionadas (II)



Refeição Cultural

A decisão de ler e reler mais a obra de Machado de Assis neste momento de minha vida e do país é uma escolha filosófica, de pesquisa e de procura em relação ao Brasil e ao povo brasileiro. 

Tenho visto e ouvido materiais e pessoas que falam a respeito dos intérpretes do Brasil, normalmente citando os ensaístas mais conhecidos dos séculos XIX e XX, mas pouco falando de figuras da literatura como Machado.

Entendo que assim como os ensaístas cânones da interpretação daquilo que seria o Brasil do passado, presente e futuro, Machado de Assis é um desses grandes intérpretes, através de seus personagens e narradores, dos temas desenvolvidos, através do Rio de Janeiro e do Brasil que está no cenário de sua obra, ora como pano de fundo, ora como destaque no texto.

É o que avalio sobre a obra de Machado de Assis.

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AMOR DA GLÓRIA - OS LIKES E SEGUIDORES DE HOJE

"Teme a obscuridade, Brás, foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens." (p. 100)

TUDO SÃO NARRATIVAS, CONSTRUÇÕES DE NARRATIVAS

"(...) Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal* que o homem é um caniço pensante. Não, é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes." (p. 98)

HIPOCRISIA, MENTIRAS... É O QUE SOMOS EM VIDA

"Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo." (p. 90)

*Nota sobre Pascal:

HOMEM, ESPÉCIE FRÁGIL, MAS RACIONAL - Acho importante a nota da edição que tenho, nota de Fátima Mesquita, porque ajuda a explicar a frase e o pensamento de Machado, feito através de Cubas. O homem é um animal frágil em relação aos outros no reino animal, mas é um animal que pensa... esse é o nosso diferencial.

"Blaise Pascal foi um importante filósofo e matemático nascido na França em 1623. A referência aqui é a uma frase que ele publicou no seu livro Pensamentos: 'O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante'. A sentença fala sobre a fragilidade física do ser (um caniço), mas lembra que a nossa espécie se destaca na natureza porque a gente pensa, a gente raciocina..." (p. 98)

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Amigas e amigos leitores, o cara é um visionário, um crítico da sociedade humana da melhor qualidade. Machado nos antecipa comportamentos humanos que já eram comuns em seu tempo, mas que seriam evidenciados absurdamente no século XXI, neste momento das redes sociais, das fake news e da pós-verdade.

Demais! Deem um presente a si mesm@s e leiam Machado de Assis.

William


Bibliografia:

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. 1ª ed. - São Paulo: Panda Books, 2018.


sábado, 4 de setembro de 2021

040921 - Diário e reflexões


Filhos de Palmério e Dirce num momento feliz.

Refeição Cultural

Sábado, 4 de setembro. Segundo ano da pandemia mundial de coronavírus. Quinto ano do golpe de Estado no Brasil. Terceiro ano do regime militar-bolsonarista.

PANDEMIA

A infecção pelo vírus Sars-Cov-2 não é uma gripezinha. Até o momento, já foram infectados no mundo 220 milhões de pessoas, e morreram 4,6 milhões de pessoas. Aqui onde vivemos, o país jabuticaba, morreram 582.670 pessoas, e foram infectadas 20,9 milhões de vítimas. (Johns Hopkins University)

Não há cura para a infecção pelo coronavírus, mas há vacinas. Estudos diversos demonstram que a infecção pelo vírus deixa sequelas em mais de 1/4 das vítimas, que podem passar a ser doentes crônicos. 

A ampla maioria dos vacinados no mundo e no Brasil são os ricos, são os brancos (a distribuição das vacinas é para os países desenvolvidos e nos não desenvolvidos a distribuição é desproporcional, é para segmentos privilegiados). Os mortos são em sua imensa maioria os mais vulneráveis da sociedade humana: pobres e descendentes de povos africanos ou originários em terras colonizadas pelos europeus. Não estamos no mesmo barco... estamos no mesmo mar, alguns de iates e transatlânticos e a maioria em jangadas improvisadas e boiando sem nada.

ANIVERSÁRIOS SOLITÁRIOS

Minha mãe completa hoje 75 anos de vida. Uma vida brasileira, de uma mulher brasileira da base da pirâmide social. Mãe, meus parabéns pelo seu aniversário e desejo que a senhora esteja bem, na medida do possível para os dias que correm, e que continue conosco por muito tempo. Te amo.

Meu pai completou 79 anos de vida no dia 30 de agosto. Uma vida brasileira, de um homem brasileiro da base da pirâmide social. Dei os parabéns ao meu pai também desejando a ele que esteja bem na medida do possível nesses tempos. Te amo pai.

Neste sábado, que seria dia de festas e reunião com as pessoas que amamos, meus pais estão sozinhos em casa. Não haverá festa, não haverá reunião de família. Segue o amor incondicional que sentimos uns pelos outros. 

Minha mãe faz 75 anos e não teremos abraços e confraternização presencial...

Se já não bastassem as duas datas importantes na semana para mim e para nossa família, amanhã, domingo, dia 5 de setembro, é a data de casamento de meus pais. Eles se casaram em 5/9/1964, ou seja, completam 57 anos de casados. E não haverá reunião nem confraternização nenhuma.

Eu fico me perguntando se sou um idiota, se sou um cuzão ou algo parecido por seguir até hoje respeitando as recomendações da ciência em relação à pandemia. Desde que essa peste começou, nunca mais fui ver meus pais, irmã e sobrinhos. Nunca tive medo de morrer. Nunca. Mas temo pela morte das pessoas que amo. Essa abstração "amor" é uma das diversas abstrações do cérebro humano. Se importar com os outros...

Compartilhei com minha irmã e com meu filho e esposa minha angústia por não estar hoje na casa de meus pais e por deixá-los sozinhos nestas datas. Eles me confortaram e disseram que estamos fazendo o correto em não nos unirmos neste momento lá. Pior seria irmos lá, alguém morrer de Covid e depois ficarmos com o peso na consciência para sempre... Sei lá!

Estamos num fim de semana de feriado prolongado. Milhões de pessoas no Brasil estão aglomerando neste exato momento em que escrevo. O sol está forte, as praias estão lotadas, os parques idem, as pessoas estão enchendo a cara, bebendo o que podem e o que não deveriam porque a bebida alcoólica está fodendo a vida e a SAÚDE das pessoas mais que qualquer outra droga chamada de "ilícita", ou seja, droga que não foi definida pelos governos para pagar impostos. Cigarros e álcool, que matam milhões por ano, são drogas "lícitas" e tá liberado geral. Dane-se a saúde do usuário e a saúde da coletividade. 

A pessoa fuma um baseado de maconha e fica alegre ou sonolento. A pessoa ingere bebida alcoólica, fode fígado, rins e diversos sistemas a longo prazo e fica bêbada em algumas horas e causa mortes e acidentes irreversíveis e tudo bem. É uma hipocrisia desgraçada essa sociedade humana!

QUASE TODO MUNDO AGLOMERA (JOGO DE DADOS E PROBABILIDADES)

Estamos num mundo conectado pelas redes sociais e pela internet e redes de comunicação. Em minutos de pesquisas e visualização, vemos que praticamente todas as pessoas que conhecemos, que são nossos contatos, já se reuniram com seus familiares e amigos queridos nesse período de pandemia. 

Os especialistas das áreas que lidam com a ciência e a pandemia explicam os riscos de aglomeração, mesmo estando vacinada parte das pessoas, mesmo usando máscaras, porque as cepas atuais são mais contagiosas pelo ar e ao comerem e beberem juntos (sem máscara, óbvio), multiplica-se exponencialmente o risco de transmissão do vírus. E talvez, agravamento, e talvez morte da pessoa querida. Tudo são cálculos de risco, estatísticas e probabilidades...

É provável que eu e algumas pessoas como eu sejamos uns cuzões em não se encontrarem com as pessoas amadas. Também não estou acusando quem se reúne e aglomera, cada um cada um. Jogo de dados e probabilidades...

Afinal, pode ser que eu e ou as pessoas que amamos morram num segundo qualquer de qualquer coisa, afinal somos tão frágeis como animais, um coração que para, uma artéria ou veia que estoura ou entope, um câncer que nos emperre o funcionamento normal dos sistemas corpóreos. Um vírus de Covid pego mesmo com todos os cuidados que recomendam. Que dirá morrer de um tiro, uma pancada, um acidente qualquer.

RESPONSABILIDADE SOCIAL E COLETIVA 

Eu tive a oportunidade de conhecer pessoas e espaços que me transformaram politicamente. O meio me fez ser o que sou. O mundo do trabalho, o familiar e o estudantil. Meu aculturamento me fez ser o que sou. A consciência política do animal humano que sou hoje me faz ser assim.

Eu poderia ser um troglodita bolsonarista, qualquer um poderia ser um direitista no Brasil porque os ambientes em que vivemos nesta terra escravagista são propícios a isso. Acabei não sendo por acaso um direitista: veredas. 

Me tornei uma pessoa de esquerda. Isso me dá uma responsabilidade social que não tinha até uns vinte e poucos anos.

Chega de reflexões neste registro diário. Feliz aniversário, mãe! Aglomerem-se aqueles que quiserem. No Brasil, não sabemos sequer o que vai acontecer daqui a três dias...

William


sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Brás Cubas - Educação sob o olhar da elite



Refeição Cultural

A leitura de Machado de Assis é sempre um ato de reflexão, de atenção, seja porque cada leitura e releitura é leitura de pesquisa e descoberta de novos sentidos, seja porque o nosso contexto faz com que percebamos que muitas questões que enfrentamos hoje já eram apontadas pelo escritor um século antes, de forma irônica e artística, através da linguagem prosaica ficcional.

A forma como a elite brasileira vê a educação é uma das questões que sempre percebemos através dos romances e contos de Machado de Assis. Dois capítulos do Memórias póstumas de Brás Cubas são simbólicos em relação a isso: os capítulos XIII (Um salto) e o XX (Bacharelo-me).

"Unamos agora os pés e demos um salto por cima da escola, a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las, e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde quer que fosse propício a ociosos." (p. 57)

Vocabulário: cacholetas são cascudos.

No capítulo XIII, os leitores percebem a dureza que era ser professor já naquela época, no Brasil Império. O professor Ludgero Barata sofria na mão dos alunos, mesmo sendo a época da educação repressiva e violenta, dos castigos de palmatória, ajoelhar no milho etc. 

O método educacional é uma coisa que sempre esteve em debate. Já a forma como a burguesia vê a educação é outra coisa. Nesses dois capítulos o defunto autor conta que a educação formal foi uma etapa a se cumprir em sua classe social, mesmo sendo cumprida de forma medíocre por ele.

Após dizer que foi graças ao professor e suas técnicas que aprendeu alguma coisa, mesmo sem esforço, Cubas lembra que o fim do professor foi miserável, sem ninguém, sem ser lembrado e respeitado.

"E fizeste isto durante 23 anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da rua do Piolho, sem enfadar o mundo com a tua mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas trevas, e ninguém te chorou, salvo um preto velho, - ninguém, nem eu, que te devo os rudimentos da escrita." (p. 58)

Cubas conta das maldades que os jovens alunos faziam ao professor por ter o sobrenome "Barata". 

"Duas, três vezes por semana, havia de lhe deixar na algibeira das calças, - umas largas calças de enfiar -, ou na gaveta da mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata morta..." (p. 58)

No capítulo XX, já adulto e estudando em Coimbra, Cubas confessa o quanto foi um acadêmico "estroina" (boêmio) e medíocre. Mas como era filho da elite branca e endinheirada, ele era parte da minoria que o ministro do regime bolsonarista disse dias atrás que deve ter acesso ao ensino superior, os privilegiados.

"A universidade esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel; deram-mo com a solenidade do estilo, após os anos da lei; uma bela festa que me encheu de orgulho e de saudades, - principalmente de saudades. Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um acadêmico estroina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das constituições escritas. No dia em que a universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso." (p. 80/81)

É isso!

O golpe de Estado no Brasil em 2016 veio para restabelecer as coisas para a casa-grande e seus filhos herdeiros, a fina flor, como diz ter sido o defunto autor Brás Cubas.

William


Bibliografia:

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. 1ª ed. - São Paulo: Panda Books, 2018.

030921 - Diário e reflexões (Carta Capital)



Refeição Cultural - Carta Capital 1171


TIO SAM FRACASSOU

Não foi diferente a leitura desta edição da revista Carta Capital em relação á experiência da leitura das outras edições: aprendi coisa novas, senti emoções diferentes - raiva, tristeza, alegria, desilusão e esperança. 

Essa foi a décima edição impressa que li inteira. Fico naquela indecisão se leio ou não leio, depois acabo fincando o pé na determinação e leio. Isso me toma tempo da leitura dos livros que quero ler, mas vejo que ler a revista também é um ato de busca de conhecimento e do novo, como ocorre nos livros.

CULTURA: ÁLBUM "NOTURNO" DE MARIA BETHÂNIA É MARAVILHOSO 

Começo a postagem comentando a leitura da seção "Plural". Amig@s leitores, foi a seção que me trouxe a ideia de experimentar o novo. A matéria falando sobre a nova realidade do teatro, que será presencial e virtual ao mesmo tempo, nos faz pensar no novo mundo pós-pandemia. 

A matéria sobre o álbum novo de Bethânia...

Enquanto preparei e tomei meu café da manhã nesta sexta, ouvi o álbum novo de Maria Bethânia, Noturno. Arrepiei, chorei, prestei atenção nas letras (coisa que não faço sempre). Adorei a experiência! Experimentem!

ARGENTINA: NOVOS DIREITOS SOCIAIS PARA AS MULHERES

A seção "Nosso Mundo" me trouxe uma tristeza profunda com a matéria sobre o Haiti. Difícil, viu! Difícil... 

Em seguida, me veio a esperança ao ler as notícias sobre a Argentina e os avanços nos direitos sociais para mulheres, pessoas LGTBQIA+ e as pessoas da base da pirâmide social. Que alegria saber que as duplas e triplas jornadas das mulheres passam a ser consideradas como tempo para a aposentadoria! Nem tudo está perdido no mundo. 

Enquanto no Brasil temos essa tragédia bolsonarista e nazifascista, temos avanços na vizinha Argentina, com o presidente Alberto Fernández e as lideranças de esquerda do país.

ECONOMIA: LIÇÕES SOBRE FEDERALISMO E POESIA...

Na seção "Economia" aprendi conceitos novos sobre o federalismo, no artigo do governador Flávio Dino. Acho sempre uma seção chata de se ler, porque passei muitos anos mexendo com números e questões financeiras e econômicas até pelas funções que desempenhei na vida laboral.

No entanto, ler um artigo como o de Paulo Nogueira Batista Jr. falando sobre cinema e poesia foi de arrepiar! O artigo "Certa Arte" a respeito do filme Flores Raras, de Bruno Barreto, com Glória Pires, foi de encher os olhos. Ele mesmo traduziu o poema de Elizabeth Bishop "Certa Arte" para nós, leitores. Fala sério!

MINO CARTA FALA DO "ÚLTIMO IMPERADOR"

A matéria de capa com texto de Sergio Lirio e com um editorial de Mino Carta são aulas, lições de história e de mundo. Mino compara Biden ao último imperador romano do Ocidente, Romulo Augustolo, que se rendeu ao rei dos Hérulos de forma miserável. E Lirio nos lembra dos povos do Afeganistão e região, que já derrotaram grandes impérios ao longo da história.

"Após desperdiçar 1 trilhão de dólares dos contribuintes, perder 5 mil soldados, sacrificar 100 mil civis afegãos, associar-se à tortura, abusos e corrupção dos governos aliados e levar duas décadas para descobrir que o país ocupado fazia jus à fama de 'cemitério de impérios' - lição aprendida no passado pela Rússia czarista, o Reino Unido vitoriano e a União Soviética -, os Estados Unidos assistiram petrificados às forças talebans reconquistarem o território em menos de 15 dias e sem resistência dos 300 mil soldados afegãos supostamente bem treinados e armados pelo Pentágono e das autoridades ungidas pela Casa Branca." (p. 12)

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Enfim, que edição educadora, catalisadora de novos conhecimentos!

Valeu a leitura, apesar da preguiça em me informar de forma panorâmica e organizada sobre os acontecimentos do presente trágico.

Amig@s, leiam! O cérebro e a essência do que vocês são serão beneficiados pelo esforço de preservar a inteligência humana e as possibilidades de um amanhã diferente, porque o amanhã depende de nós, seres humanos conscientes e que são contrários às abstrações inventadas por nós mesmos como, por exemplo, o capitalismo, abstrações humanas que estão nos levando ao fim de tudo.

William


quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Artigo: Reginaldo Prandi (2019): sobre o perfil dos bolsonaristas mais fiéis (uns Brás Cubas, diria eu)

Apresentação do blog:

Reproduzo abaixo, com as devidas citações e referências, excelente artigo do professor Brandi, no Jornal da USP, de 13/9/2019, sobre o que seria o perfil de certo segmento de bolsonaristas. Transcorridos dois anos da publicação, entendo que o artigo segue muito atual e compartilho aqui as argumentações muito interessantes de Brandi.

Um dos meus interesses no artigo é o quanto acho o perfil do bolsonarista "heavy" semelhante ao personagem Brás Cubas, criado por Machado de Assis, em 1881. Estou relendo as Memórias e aquele sujeito ficcional é a cara da nossa elite que mantém o clã miliciano no poder neste momento trágico de nossa triste história.

Grupo heavy de bolsonaristas: "É razoável concluir que os heavy de Bolsonaro não retratam o Brasil. Pelo que se viu até aqui, o grupo pode ser representado por um homem branco de idade madura, escolarizado e de estrato social de médio para alto."

Olha aí a semelhança com o nosso Brás Cubas... e não só nas características, mas nas ideias...

William Mendes

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Reginaldo Prandi. Foto: Renato Parada.

Os 12% do presidente – em que lugar da sociedade habita o bolsonarista convicto?

Por Reginaldo Prandi, Professor Emérito da FFLCH-USP e um dos fundadores do Datafolha

Post categoryArtigos
https://jornal.usp.br/?p=272283


13/09/2019 - Publicado há 2 anos - Atualizado: 18/09/2019 as 17:15

Para classificar o grau de afinidade e rejeição dos brasileiros e brasileiras ao presidente, Mauro Paulino e Alessandro Janoni construíram uma escala de seis pontos baseada no voto declarado em Bolsonaro no segundo turno, na avaliação de seu governo e na confiança em suas palavras. O grupo dos mais afinados com Bolsonaro é formado pelos que votaram nele, aprovam seu mandato e concordam com suas declarações. São seus adeptos fiéis, entusiastas fanáticos, para não dizer adoradores em qualquer circunstância. Representam 12% da população com 16 anos ou mais. É o chamado grupo heavy do presidente, aquele núcleo duro de apoiadores irrestritos constituído por bolsonaristas radicais. Outros 30% estão no extremo oposto: não votaram em Bolsonaro, reprovam seu governo e discordam do que ele diz. Sobram 58% que se distribuem pelas categorias intermediárias, ora apoiando, ora rejeitando palavras e medidas do presidente, a depender de cada situação (pesquisa nacional do Datafolha com 2.878 entrevistados em 29 e 30 de agosto, Folha de S. Paulo, 4/7/2019, p. A10).

O grupo dos 12% heavy não se destaca por seu tamanho, mas se sobressai por garantir uma base social concreta que legitima um presidente que afronta princípios da democracia, da cidadania, da solidariedade e do respeito ao próprio cargo que ocupa. Um presidente que trata como lixo o meio ambiente, a educação e a ciência, que não se vexa de se mostrar ignorante, malformado e mal-informado, preconceituoso, useiro e vezeiro de expressões chulas. Aliás, de poucas palavras, argumentação precária e articulação de frases travada.

Um bom cristão tradicional talvez pensasse: não são essas as características do diabo? Mas, enfim, deixa pra lá… O fato é que ele aplaude torturadores, sente saudades da ditadura e trata com desdém as minorias ainda necessitadas da proteção do Estado. Se repito aqui o que já sabemos até as tampas, é apenas para demostrar que não há nada de subjetivo na afirmação de que o presidente Bolsonaro é do mal. Os 12% de apoiadores irrestritos dividem com ele, com certeza, muito disso tudo, aprendendo com seu líder a pôr na conta de um suposto e duvidoso socialismo a ser exterminado o que lhes parece errado e contrário a seu moralismo tosco. É uma parte ruim da população que já existia e que nunca teve quem falasse por ela ao ouvido da nação. Agora tem. Vale a pena descrever um pouco, com dados do Datafolha (PO3997), quem são esses 12% que constituem os pilares do presidente.

O grupo dos 12% é mais masculino que feminino. Estão aí 15% dos entrevistados do gênero masculino e 10% dos do feminino. À medida que a idade sobe, cresce a fileira de seguidores. São 5% na faixa de 16 a 24 anos, 9% na de 25 a 34 anos, 12% na de 35 a 44 anos, 16% na de 45 a 59 anos, e 19% na faixa de 60 anos ou mais. Nada de novo: conservadorismo e medo da mudança usualmente crescem com a idade.

Ainda que pequeno, o grupo dos 12% tem uma força social acima da média brasileira. Não é uma fatia majoritariamente de pobres nem de desinformados, não são ignorantes inocentes. Sua presença aumenta com a renda familiar mensal medida em salários mínimos: na categoria de renda que vai até dois salários, há 5% de entrevistados incluídos no grupo heavy. Essa taxa sobe para 15% no grupo de dois a cinco salários e vai para 23% no de cinco a dez salários, alcançando 25% na categoria que tem renda maior que dez salários mínimos por mês. Outro bom indicador de estratificação social é a escolaridade. No grupo de apoio irrestrito a Bolsonaro, estão incluídos 12% dos que tiveram o ensino fundamental como nível maior de escolaridade, 11% dos de nível médio e 16% dos que tiveram educação superior.

A distribuição por cor é outro indicador que ajuda a entender melhor o grupo. Fazem parte dele 5% dos indígenas, 8% dos pretos e igual número dos amarelos, 11% dos pardos e 17% dos brancos. É razoável concluir que os heavy de Bolsonaro não retratam o Brasil. Pelo que se viu até aqui, o grupo pode ser representado por um homem branco de idade madura, escolarizado e de estrato social de médio para alto.

Em termos ocupacionais, apenas 8% dos assalariados sem carteira e 12% dos assalariados com carteira estão no grupo. O número sobe a 19% entre os trabalhadores autônomos e atinge os 32% entre os empresários. Diferenças brutais. As donas de casa e os desempregados também são menos afeitos aos atrativos do bolsonarismo radical, cada categoria se inserindo com 8%, enquanto se agregam ao grupo 20% dos aposentados, justamente a categoria que o governo Bolsonaro trata com desprezo explícito, como os grandes responsáveis pelas disfunções da economia brasileira. Os estudantes, contudo, salvam a autoestima democrática: apenas 3% deles se deixam seduzir pelo voto em Bolsonaro, seguido da aprovação cega de seu governo e da credibilidade consentida às suas declarações diárias.

Fica confirmada, em termos de anuência à reviravolta bolsonarista retrógrada pela via da direita, a discrepância entre as regiões do País. Enquanto no Sul e no Sudeste 14% dos brasileiros seguem de olhos fechados o presidente do mal, permanecendo outras regiões com contribuições próximas a essa, o Nordeste reduz sua participação à metade, a 7%. Entretanto, o tamanho dos municípios, em qualquer região, não se mostra como diferencial importante; nem o fato de se morar na capital ou no interior.

Daquele hipotético homem branco, de idade mais madura e elevada extração social, podemos dizer também que se trata de um empresário que mora nas regiões mais ricas do País, nos mais diferentes tipos de municípios. Estamos perto de perguntar: é ou não é uma questão de classe social?

Desde que os evangélicos acorreram à política partidária para a defesa de seus interesses na Assembleia Nacional Constituinte de 1987, e nunca mais pararam de crescer como efeito paradoxal da secularização em curso da sociedade brasileira, a religião é outro fator importante para tratar de assuntos eleitorais. Na formação do grupo dos 12% do presidente não poderia ser de outra maneira. Dentre católicos, evangélicos tradicionais e espíritas é de 13% a taxa dos pertencentes aos heavy, número próximo à porcentagem que define nosso grupo. Algumas outras religiões estão perto disso. Mas os neopentecostais e os sem religião, exatamente os dois segmentos que mais crescem no Brasil no âmbito religioso, são os que mais se afastam, e em sentidos opostos, da média geral. Dentre os neopentecostais, são bolsonaristas roxos 23%; dentre os sem religião, 7% apenas.

O que aqui se apresentou ajuda a saber quais grupos sociais estão mais fortemente, ou completamente, afeitos a Bolsonaro, seu governo e suas manifestações nem sempre civilizadas e quase nunca promissoras para um Brasil que se queira afinado com a civilização ocidental e seus avanços. De fato, traça um retrato de um país ruim de se ver e pior ainda de se viver. Mas o bolsonarismo não é só isso. Muitos dos traços inquietantes aqui apresentados são atenuados quando se examinam outras categorias intermediárias geradas pela escala Paulino-Janoni do Datafolha. Nem o Brasil vai assim de tão mal a pior: em oposição aos 12% do presidente, há, do outro lado, 30% de brasileiros que rejeitam completamente o bolsonarismo definido pelas três dimensões aqui analisadas: o voto, o apoio ao governo, a confiança no discurso. E as categorias intermediárias têm muito a dizer. Vale lembrar que os bolsonaristas que fazem alguma crítica ao presidente somam 26%, enquanto os que são contrários a Bolsonaro mas aceitam aspectos de seu governo e seu discurso são 32%. Certamente, pelo que suas atitudes recalcitrantes indicam, é no espelho dos 12% que o presidente prefere ver sua imagem refletida. Com um toque religioso meramente utilitário, quando não interesseiro.

Fonte: Jornal da USP

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Diários com Machado de Assis (VI)



Refeição Cultural

Genoveva, uma mulher livre

No diário anterior (ler aqui), falei de meu contato com a personagem Marcela, a espanhola amante de Brás Cubas - a dos "15 meses e onze contos de réis" -, seu primeiro amor de rapaz de 17 anos. A personagem é muito interessante, é uma mulher que enfrentou do seu jeito as dificuldades de seu gênero naquela sociedade de sua época - patriarcal, patrimonialista, do poder branco, sob os dogmas católicos, misógina e conservadora -, o Brasil de milhares de Brás Cubas em cada casa-grande da ex-colônia portuguesa.

Hoje pela manhã, queria ler algo novo do Bruxo do Cosme Velho, algum texto que eu não conheço ainda. Peguei o livro 50 contos de Machado de Assis, organizado por John Gledson. Li o conto "Noite de almirante", publicado originalmente na Gazeta de Notícias, em 10 de fevereiro de 1884, e depois no livro Histórias sem data.

O conto narra a estória de amor de Deolindo Venta-Grande e Genoveva. Se considerarmos a maneira como se tratam as mulheres no Brasil de 1884 e o Brasil de 2021, podemos dizer que o desenvolvimento da ficção e o final nos surpreende, tanto para a época como para o presente.

Deolindo é marinheiro. Volta do mar depois de dez meses de viagens. Está ansioso para encontrar a moça por quem jurou amores e fidelidade antes de zarpar.

"- Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva..." (p. 289)

Ela, a personagem, uma moça que se enamorou do rapaz, queria fugir com ele para o interior, mas teve que aceitar ele zarpar e retornar um dia para ficarem juntos. Jurou amores e fidelidade também.

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Uma observação: é difícil fazer um comentário sobre um romance ou narrativa sem dar algum tipo de spoiler. O ideal era o leitor(a) já conhecer o conto. Então, faço o seguinte, vou demarcar abaixo a partir de onde tem spoiler e assim a pessoa para de ler, se quiser.

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Genoveva: "caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido" (p. 289)

OS OLHOS - Interessante o quanto Machado caracteriza seus personagens pelos olhos. Em tempos de pandemia de vírus com uso de máscaras que tampam boca e nariz e de burcas pelo mundo afora, é uma caracterização ideal essa de descrever atributos dos olhos das pessoas.

Enfim, nessa estória de amor, vai aparecer uma terceira pessoa, o mascate José Diogo, e veremos então como termina o triângulo amoroso.

COMENTÁRIO (com spoiler)

Antes de mais nada, acho bem legal a forma como se apresentam os narradores de Machado de Assis. Eles fazem diálogos francos com os leitores, fazem ironias, prestam contas de suas ações etc. É legal demais!

O narrador defende Genoveva ao relatar o que ela disse a Deolindo ao se explicar por estar com outro, ao dizer que se apaixonou pelo mascate pela insistência dele e que isso não é culpa de ninguém, é a natureza.

Genoveva:

"- Pode crer que pensei muito e muito em você. Sinhá Inácia que lhe diga se não chorei muito... Mas o coração mudou... Mudou... Conto-lhe tudo isso, como se estivesse diante do padre, concluiu sorrindo." (p. 292)

E o narrador a defende (sublinhado meu pela ironia dele):

"Não sorria de escárnio. A expressão das palavras é que era uma mescla de candura e cinismo, de insolência e simplicidade, que desisto de definir melhor. Creio até que insolência e cinismo são mal aplicados. Genoveva não se defendia de um erro ou de um perjúrio; não se defendia de nada; falava-lhe o padrão moral das ações." 

E o narrador explica o que ela disse da forma mais natural possível. Os sentimentos mudam nas pessoas, oras bolas.

"O que dizia, em resumo, é que era melhor não ter mudado, dava-se bem com a afeição do Deolindo, a prova é que quis fugir com ele; mas, uma vez que o mascate venceu o marujo, a razão era do mascate, e cumpria declará-lo." 

Deolindo, quis matá-la com as próprias mãos, depois quis matar o mascate, e a moça continuou firme e seguiu explicando a ele que as coisas são assim. Ela chegou a diminuir o ímpeto de Deolindo só com os olhos:

"Deolindo chegou a ter um ímpeto; ela fê-lo parar só com a ação dos olhos." 

A jovem Genoveva cita acontecimentos na natureza para explicar a Deolindo que as coisas são assim e que não vale a pena matar por coisas tão normais e naturais.

"Vede que estamos aqui muito próximos da natureza. Que mal lhe fez ele? Que mal lhe fez esta pedra que caiu de cima? Qualquer mestre de física lhe explicaria a queda das pedras." (p. 293)

Enfim, a estória se resolve e não tivemos um feminicídio. Gostei muito da postura de Genoveva e de Deolindo.

Na vida real, fora da ficção, o país que vivemos após o golpe de 2016 e a ascensão do mal é um país de retrocessos de séculos. Mata-se por qualquer coisa, até por uma simples ação da natureza humana, uma mudança de sentimentos, uma ira momentânea.

Essa foi minha reflexão após alguns momentos com Machado de Assis.

William


Bibliografia:

ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 14ª reimpressão, 2015.