terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Marx e a religião



Refeição Cultural

"A luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião. A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo. A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que necessita de ilusões. A crítica da religião é, pois, o germe da crítica do vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola. [...] Consequentemente, a tarefa da história, depois que o outro mundo da verdade se desvaneceu, é estabelecer a verdade deste mundo. A tarefa imediata da filosofia, que está a serviço da história, é desmascarar a autoalienação humana nas suas formas não sagradas, agora que ela foi desmascarada na sua forma sagrada. A crítica do céu transforma-se deste modo em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política" (Marx, 2005, p. 145-6. In: NETTO, 2020, p. 535-6, nota nº 48)


Certa vez, estava trabalhando no caixa do Banco do Brasil ao lado de uma colega. Nós dois estávamos atendendo a uma fila enorme de clientes e usuários. Durante o trabalho, a gente ia conversando à medida que o tempo passava. Não me lembro bem qual foi o início da conversa entre nós, mas sei que ela me falou alguma coisa sobre Deus e eu disse a ela que não acreditava em Deus, que era ateu. Pra que!?

Nunca vou me esquecer da cena. Ela me olhou com olhar fixo, paralisado, chocado, vocês sabem como um olhar diz muita coisa... Foi um momento de silêncio e espanto, boca semiaberta e após alguns segundos ela disse:

- Nossa! Eu achava você um cara tão legal!...

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Fui criado em um ambiente religioso, predominantemente católico como a maioria dos ambientes do Brasil dos anos setenta e oitenta do século vinte. Um catolicismo sincrético, lógico. Ao longo de quase três décadas de vida crente, indo às missas aos domingos, a família ia também a um centro de umbanda, e às vezes a sessões espíritas, e sempre éramos benzidos contra qualquer mal; Dona Nenzinha, por exemplo, sempre me tratou a espinhela caída, na infância lá em Uberlândia.

Relembro arrepiado e com lágrimas nos olhos momentos na infância e adolescência e até na fase adulta nos quais eu não sei se teria resistido e suportado se não tivesse me agarrado na fé que tinha para atravessar tantos momentos duríssimos que passei. Os trabalhos braçais, as injustiças que via no meu cotidiano, as diversas formas de sofrimento e miséria que permeiam a nossa vida. Sei que a fé teve o seu papel na minha vida.

Eu fui muito religioso na época em que cria em Deus, em santos e santas, e anjos e arcanjos e demônios, almas e espíritos. A religião me moldou como pessoa até a fase adulta. Com o passar do tempo, os dogmas e as contradições naturais das diversas formas de religião e fé passaram a não se encaixar mais na minha visão de mundo. O processo de crer e não crer em explicações místicas sobre a vida e o mundo foi se dando de forma natural, eu diria.

Agora começo a estudar um pouco sobre Karl Marx e o marxismo. Estou lendo a biografia de Marx feita pelo professor José Paulo Netto. Estou no começo da leitura.

Já passei dos cinquenta anos de idade. A leitura é a leitura de um homem brasileiro vivendo num país destruído por um golpe de Estado e governado por um regime genocida e corrupto colocado no poder pela elite do atraso brasileira, a casa-grande. É a leitura de um ateu que já foi religioso por décadas; é a leitura de um ex-dirigente sindical quando atuou na categoria bancária.

Eu não tenho vergonha de reconhecer minha ignorância em quase tudo na vida. Não sou acomodado. Gosto de estudar e o que não sei ainda é porque não pude conhecer. Confesso que não conheço Marx e o marxismo para me dizer marxista. Eu dizia isso quando era representante da classe trabalhadora. Eu tinha algumas referências sobre o tema porque a leitura básica havia feito, li algumas vezes o Manifesto do Partido Comunista, de 1848. E só.

O excerto acima, copiado da nota nº 48 do livro sobre a biografia de Marx, livro de José Paulo Netto, é uma preciosidade! É uma reflexão profunda de Karl Marx a respeito da religião. Eu me vejo nela nesses anos todos de minha vida.

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"A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma..."

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Os seres humanos são explorados e têm vidas miseráveis. Os seres humanos por serem racionais sabem e sentem a dura realidade da miséria e sabem inclusive que vamos todos morrer, talvez na dor e na miséria. A análise de Marx não é desrespeitosa de forma alguma. Não é.

Quando ouvia só o excerto que dizia que Marx dizia que "A religião é o ópio do povo." sem conhecer a reflexão inteira, me parecia algo agressivo contra a fé das pessoas. Eu sei que temos que respeitar a fé de cada um, assim como eu tive a minha fé religiosa durante quase trinta anos.

A reflexão de onde sai a religião como "ópio do povo" tem uma lógica que avalia a miséria da imensa maioria das pessoas sob o jugo de algum explorador ou manipulador local.

É isso. É isso. Tenho respeito pelo momento de cada pessoa, pela forma que cada um tem de dar sentido ao seu viver, e sigo buscando sentidos, procurando saber e compreender o que ainda não sei e não compreendo. 

Andei, andei, andei e ainda vejo sentido no refrão da música do U2 que diz "I Still Haven't Found What I'm Looking For". Por ironia da vida, tenho há décadas essa música como um tema de minha vida... pura ironia da Providência... talvez.

William


Post Scriptum: e pra finalizar o post, tentando me concentrar na releitura por causa dos barulhos ao redor, coloquei a música "One Of Us", de Joan Osborne, outra música gospel... rsrs.


Bibliografia:

NETTO, José Paulo. Karl Marx: uma biografia. 1ª ed. - São Paulo: Boitempo, 2020.

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