FRAGMENTO 1 - A JANGADA DE PEDRA
Personagens:
“Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar...”
Joana está em Portugal e os cães que começam a ladrar estão na França.
“Por estes mesmos dias, talvez antes, talvez depois de ter Joana Carda riscado o chão com a vara de negrilho, andava um homem a passear na praia... e esse homem, que mais tarde dirá chamar-se Joaquim Sassa, ia caminhando acima da linha da maré que distingue as areias secas da areia molhada... Joaquim Sassa atirou a pedra...”
Ao mesmo tempo em que Joaquim Sassa estava atirando a pedra ao mar, Pedro Orce pisava o chão na Espanha...
“Diria Pedro Orce, se tanto ousasse, que a causa de tremer a terra foi ter batido com os pés no chão quando se levantou da cadeira, forte presunção a sua, se não nossa, que levianamente estamos duvidando, se cada pessoa deixa no mundo ao menos um sinal, este poderia ser o de Pedro Orce, por isso, declara, Pus os pés no chão e a terra tremeu...”
Estorninho - fonte wikipédia |
“No dia seguinte, um homem atravessava uma planície inculta, de mato e ervaçais alagadiços... este homem não poderia ter escolhido maior solidão e mais subido céu, e por cima dele, voando com inaudito estrépito, acompanhava-o um bando de estorninhos, tantos que faziam uma nuvem escura e enorme, como de tempestade... Recomeçava a andar José Anaiço, era este o seu nome, e os estorninhos levantavam-se de rompão, todos ao mesmo tempo, vruuuuuuuuuu.”
Revoada de estorninhos - foto do Daily Mirror |
Quem são os personagens?
“E também não perguntemos já a José Anaiço quem é e o que faz na vida, donde veio e para onde vai, o que dele houver de saber-se só por ele se saberá, e esta discrição, esta parcimônia informativa, deverão igualmente contemplar Joana Carda e a sua vara de negrilho, Joaquim Sassa e a pedra que atirou ao mar, Pedro Orce e a cadeira donde se levantou, as vidas não começam quando as pessoas nascem, se assim fosse, cada dia era um dia ganho, as vidas principiam mais tarde, quantas vezes tarde de mais, para não falar daquelas que mal tendo começado já se acabaram, por isso é que o outro gritou, Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido.”
“E agora esta mulher, Maria Guavaira lhe chamam... que subiu ao sótão da casa e encontrou um pé-de-meia velho... e achando-o vazio pôs-se a desfazer-lhe as malhas, por desfastio de quem não tem outra coisa em que ocupar as mãos. Passou uma hora e outra e outra, e o longo fio de lã azul não pára de cair, porém o pé-de-meia parece não diminuir de tamanho, não bastavam os quatro enigmas já falados, este nos demonstra que, ao menos uma vez, o conteúdo pôde ser maior que o continente. A esta casa silenciosa não chega o rumor das ondas do mar, de passarem aves a sombra não escurece a janela, cães haverá mas não ladram, a terra, se tremeu, não treme. Aos pés da desenredadeira o fio é a montanha que vai crescendo. Maria Guavaira não se chama Ariadne, com este fio não sairemos do labirinto, acaso com ele conseguiremos enfim perder-nos. A ponta, onde está.
Bibliografia
SARAMAGO, José. A jangada de pedra. Companhia de Bolso. Edição 2010. (livro de 1986)
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