Refeição Cultural
"Em essência, como um todo, a crença tem o poder de formar e refinar a maioria, senão todo, o conteúdo do ponto de vista próprio do cérebro. Portanto, não é surpresa que os seres humanos sejam extremamente proficientes em criar uma enorme variedade de descrições mitológicas e religiosas, além de uma vasta lista de deuses, divindades, heróis e vilões, em uma tentativa de explicar, sem qualquer outro tipo de informação ou necessidade de validação empírica ou factual, toda sorte de fenômenos naturais que, em uma primeira inspeção superficial, desafiam a nossa compreensão. Seria possível argumentar que é graças ao poder universal e sedutor de crer na existência de causas sobrenaturais que a maioria da humanidade suportou por milênios, com apenas esporádicas manifestações de protesto, condições de vida altamente precárias que lhe foram impostas rotineiramente, quer pela natureza, quer pelos diferentes sistemas econômicos e políticos, bem como um sem-número de religiões." (NICOLELIS, 2020, p. 217)
Manhã de sábado, 24 de abril. Nesta noite dormi melhor. Na sexta, tive mais uma noite com incômodos corporais que me impediram dormir bem. Sou só um animal humano. Uma vida. "Viver é dissipar energia para poder embutir informação na massa orgânica do organismo", nos diz o neurocientista Miguel Nicolelis.
Tenho pensado muito sobre a vida e sobre a morte. As mortes. Muita gente está morrendo. Vivemos um genocídio no país onde sobrevivo. A morte é projeto de governo. O governo é apoiado por milhões de pessoas neste lugar do mundo. Eu conheço diversos humanos que apoiam esse regime de morte, maldade, desgraças.
Quando me sentei para escrever, tinha um monte de coisas na cabeça, as sinapses nos neurônios eram intensas. Mas agora passou o momento.
Dia 23 foi aniversário de minha esposa. Do meu primo. De outros conhecidos. E foi o dia da morte de mais um companheiro do movimento sindical, vítima do vírus do governo genocida. Pinheiro foi uma das 2.914 mortes do dia. Companheiro Pinheiro, presente! Também faleceu a jovem Lorena, que trabalhou conosco na Cassi. Que tristeza! Lorena, presente!
Nesta semana morreram diversos conhecidos de lutas. Agora temos 386.416 mortos oficialmente por Covid-19 no país jabuticaba dos bolsonaros, da casa-grande, do PIG.
Já li oito capítulos do livro do neurocientista Miguel Nicolelis. Se vivo estiver neste fim de semana inteiro, vou terminar a leitura do clássico de Herman Melville.
Embutindo informação na massa orgânica que sou. E num instante qualquer o que era já não serei mais. Tenho claro isso.
Fiquei pensando em muita coisa ao ler Nicolelis. Os humanos registrando nas paredes das cavernas dezenas de milhares de anos atrás. Foram os primeiros registros fora do cérebro daqueles animais, registros de acontecimentos, pensamentos, memórias, desejos, coisas, registros para fora do cérebro dos animais humanos e para a posteridade, para além do indivíduo.
Registrar no blog, uma coisa virtual, guardada de forma digital numa máquina lá num canto do mundo, é um registro frágil demais para permanecer na Terra. Já pensou se as pinturas rupestres estivessem nas nuvens, as tais nuvens digitais?
Eu procuro informações das lutas sindicais dos últimos 20 (vinte) anos e não encontro. Eram virtuais, digitais, e viraram nuvem, se dissiparam... (a seguirmos assim, só vai sobrar a história contada pelos bolsonaros, pela casa-grande, pelo PIG)
Não somos nada. E sem registro, só somos informações acumuladas nessa massa orgânica que somos, que deixa de ser a qualquer instante.
É isso. Deixo nessa nuvem, nesse instante, meus sentimentos sinceros a todas as famílias que perderam seus entes queridos no dia de ontem, nesse período de mortes severinas, mortes temporãs, fora de época, que não deveriam ocorrer.
Ah, sobre a citação de Nicolelis, eu posso dizer das experiências que tive na vivência desse organismo que sou. As crenças religiosas, crenças em coisas sobrenaturais, crenças na luta sindical, nos ideais da esquerda etc. Elas foram a base do que fui até uns trinta anos de idade e do que sou depois disso.
Eu compreendo o estágio em que cada ser humano está (compreender não é aceitar, já dizia Hobsbawm, mas compreendo). Nessas cinco décadas de sobrevivência, foi a fé em alguma abstração mental que me manteve vivo, afinal tudo é abstração mental, deuses, demônios, relações com o mundo externo ao organismo, coisas que chamamos pátria, família, dinheiro, socialismo, amizade, amor...
William
Bibliografia:
NICOLELIS, Miguel. O verdadeiro criador de tudo - Como o cérebro humano esculpiu o universo como nós o conhecemos. São Paulo: Planeta, 2020
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