terça-feira, 26 de março de 2024

Leitura (I): Fundamentos, regulação e desafios da Saúde Supl. no Brasil - Sandro L. Alves



Refeição Cultural

Leitura de livros - anotações e comentários


A leitura do livro Fundamentos, regulação e desafios da Saúde Suplementar no Brasil, de Sandro Leal Alves, lançado em 2015, foi motivada pela necessidade de me atualizar no tema já que havia sido convidado a participar de um planejamento estratégico de uma operadora de saúde na modalidade de autogestão e eu seria uma das pessoas responsáveis por compartilhar a experiência em gestão de uma das maiores operadoras de autogestão em saúde no país, a Cassi dos funcionários do Banco do Brasil.

O convite para compartilhar a experiência e os conhecimentos que adquiri ao ter sido gestor eleito de saúde da Cassi foi feito pela Unafisco Saúde, a autogestão do Sindifisco Nacional, Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil. Fui contatado pelo Diretor de Plano de Saúde do Sindifisco Nacional, Adriano Lima Correa, e prontamente me coloquei à disposição para compartilhar o que sei sobre o tema. Desde já, agradeço ao Adriano e ao Isac Falcão, presidente do Sindifisco Nacional, o convite, a acolhida e a troca de experiências que tivemos durante o evento da Unifisco Saúde. Desejo sucesso no alcance dos objetivos traçados no planejamento.

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ANOTAÇÕES E COMENTÁRIOS

O livro de Sandro Leal Alves é muito bem escrito, o que facilita bastante a leitura de um livro técnico. E os conceitos sobre o setor de saúde suplementar estão bem explicados.

Eu tenho divergência à forma como o direito humano à saúde é tratado no livro, mas compreendo como os liberais tratam a questão. No capitalismo tudo é mercadoria e a saúde não seria diferente. Aproveitemos, então, os ensinamentos técnicos do livro, e façamos o debate de ideias sobre as diversas formas de pensar o mundo.

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MUTUALISMO

Gostei da explicação que o autor dá sobre o tema mutualismo. Vejamos:

"O mutualismo foi o termo pinçado da biologia pela literatura securitária para definir a cooperação entre indivíduos mediante a agregação de seus riscos. Na Biologia, quando a interação entre duas espécies proporciona ganhos recíprocos decorrentes da associação entre elas, há mutualismo." (p. 42)

Em seguida, Sandro traz o conceito para a área da seguridade:

"O seguro fornece, nestes termos, uma possibilidade mutuamente benéfica ao reduzir o custo do risco para os segurados que se dispõem a contribuir para um fundo comum em troca da garantia de acesso a estes recursos na eventual ocorrência de infortúnios individuais. Se a troca é voluntária, como ensinam os manuais de Economia, a realização do comércio é um jogo de soma positiva em que todos os agentes envolvidos ganham, melhorando sua situação. O seguro contribuiu para a alocação dos riscos da sociedade permitindo que um agente avesso ao risco consiga transferi-lo, mediante o pagamento de um prêmio de risco, para um agente comprador de riscos que é a seguradora." (p. 42)

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PLANO DE SAÚDE É SEGURO

Achei interessante essa explicação sucinta da questão. O autor esclarece que as regulações são diferentes, mas que as regras estatísticas e atuariais são as mesmas. Eu tenho pontos de observação sobre isso, quando penso o modelo assistencial da Cassi, mas depois comento a respeito.

Vou citar a frase inteira para comentar o que penso em seguida:

"Uma primeira observação importante é notar que as regras estatísticas e atuariais que permitem a existência de um plano de saúde são as mesmas do seguro. O fato de terem regulações diferentes não muda um aspecto essencial de sua natureza: o risco. O elemento de agregação dos riscos é exatamente o mesmo, independentemente se o seguro é realizado para a proteção do patrimônio, de um automóvel ou de riscos associados ao adoecimento. A diferença aqui, evidentemente, é que no caso da saúde não se pode repor a saúde como se faz no caso de um bem, mas é possível oferecer indenização ou acesso aos serviços de saúde como forma de tratamento ou mitigação dos danos aos indivíduos.

O que se segura não é a saúde em si, pois não é possível, mas a diagnose e o tratamento, que frequentemente geram despesas médicas, laboratoriais e hospitalares que poderiam ser proibitivamente elevadas ou levar uma família a situações financeiras bastante desconfortáveis por pagamento direto." (p. 42/43)

COMENTÁRIO

Nesta explicação do autor, é possível apontar algumas leituras a partir de minha experiência ao conhecer o modelo de saúde que a Cassi vem tentando implantar desde a reforma estatutária de 1996. 

Por 5 décadas (1944 a 1995), a Caixa de Assistência dos Funcionários do BB teve uma lógica que se encaixava no conceito acima. Era um fundo mútuo de recursos para cobrir o acesso a serviços de saúde após a realização dos riscos comuns aos participantes do sistema.

Ou seja, o foco do uso do recurso daquele fundo mútuo era no reparo ou mitigação do dano realizado e não na prevenção ao dano.

E aí eu reforço que os custos nesta área, saúde, são impagáveis, e não só "desconfortáveis" por uma questão essencial do mercado capitalista: lucro máximo possível. Quem vende serviços de saúde visa lucro e a outra ponta, quem consome, deve estar precisando ou sendo convencida a precisar dos serviços... óbvio que a conta não fecha.

CASSI APÓS 1996

O objetivo pretendido pelos patrocinadores do fundo mútuo da Cassi a partir de 1996 (trabalhadores e BB) era outro, era utilizar de forma distinta os recursos financeiros da Caixa de Assistência, era passar a cuidar da saúde de seus assistidos ao longo de décadas, passando assim a usar melhor os mesmos recursos ao precisar ir ao mercado que visa lucro comprar serviços de saúde. Era outra lógica do uso dos recursos.

Para isso, após 5 anos de experimentos de modelos (1996-2001), a Cassi optou pela Estratégia de Saúde da Família (ESF), um tipo de Atenção Primária à Saúde (APS), com estruturas próprias de atendimento primário (CliniCassi), para organizar um sistema de saúde privado com mais controle no uso dos recursos e com bons resultados em prevenir doenças crônicas e seus agravamentos ao longo do tempo para aquela população assistida e fidelizada ao modelo.

Durante a nossa gestão (2014-2018), desenvolvemos estudos que comprovaram pela 1ª vez a eficiência do modelo ESF/CliniCassi na Caixa de Assistência, com estrutura própria - que faz toda a diferença - com profissionais assalariados em equipes de família e gestão em saúde e rede credenciada. Não eram "parceiros" do mercado que saem do projeto assim que recebem propostas melhores para ganharem mais em suas clínicas-empresas. Uma CliniCassi própria não visa lucro, uma CliniCassi "parceira" terceirizada visa lucro.

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RISCO MITIGADO - Ou seja, os riscos daquela população assistida por aquele recurso mútuo poderiam ser alterados, mitigados, ao longo do tempo. E nós provamos isso. Os estudos que fizemos demonstraram que uma parte da população vinculada ao modelo ESF tinha um uso melhor dos recursos do fundo após 3 anos ou mais de permanência no modelo de Estratégia de Saúde da Família (ESF)

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É POSSÍVEL EVITAR DOENÇAS (RISCOS)

Uma questão fundamental para diferenciar as explicações do autor nesta parte do livro e a experiência que ganhei ao estudar e gerir o modelo assistencial da Caixa de Assistência por 4 anos é que os estudos da estatística e dos cálculos de riscos trabalham com dados realizados e um modelo preventivo em saúde tem dificuldades em dar números a despesas evitadas, não realizadas.

O livro de Sandro cita Cechin e afirma:

"Como explica Cechin, 'contrair doenças é um evento futuro e imprevisível para cada indivíduo. Mas a incidência de doenças em uma população pode ser estatisticamente estimada com boa precisão para cada patologia. A estatística nos informa quantos, mas não poderá identificar quem'."

É e não é exatamente assim, na minha opinião. 

Tanto é que no final desse trecho do livro, escrevi um comentário por me lembrar de minhas divergências técnicas com os atuários e os setores na Cassi que só se debruçavam em números e pouca atenção davam ao modelo ESF na Caixa de Assistência. 

Eu insistia que a base de dados para os cálculos deveria ser melhor calibrada considerando a população que já era vinculada (fidelizada) ao modelo ESF porque o comportamento do risco dessa população e o uso do recurso do sistema eram diferentes da base de dados padrão que se baseava em parâmetros gerais de uma população que não estava em um sistema preventivo como a ESF.

A DIFERENÇA DA CASSI COM ESF EM RELAÇÃO AOS OUTROS

Esta afirmação abaixo - regra genérica - não se aplicaria à população Cassi vinculada (fidelizada) à Estratégia de Saúde da Família há mais de 3 anos.

"O plano de saúde ou o seguro saúde não evita que o segurado adoeça, mas se adoecer ele terá garantido o serviço de diagnóstico e recuperação ou será indenizado pelas despesas incorridas, conforme dispuser o contrato." (p. 44)

Aqui está a questão que o Dr. Vecina fala na reportagem da revista CartaCapital nº 1294, que citei no artigo que fiz a respeito do tema (ver aqui). Os planos e seguros de saúde vendem a promessa de redes credenciadas e não "saúde", esse e o ponto central. E eu reafirmo o que é claro para quem consegue ver: não há dinheiro que pague tudo o que o "mercado" ofereça porque o objetivo é lucro com a doença e não saúde.

Meu comentário final sobre essa parte dos fundamentos técnicos sobre mutualismo foi feito no livro após o box nº 2 (p. 45), que fala sobre "A lei de grandes números e a saúde suplementar". A essência do texto é para reafirmar os dados estatísticos sobre riscos de saúde realizados.

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"A lei dos grandes números só funciona se os eventos forem independentes, ou seja, se a chance de adoecimento de um indivíduo deve ser independente da chance de adoecimento dos demais. Por isso, as operadoras procurar "espalhar" os riscos. A operadora, com base na agregação de riscos e na Lei dos Grandes Números, pode ofertar planos de saúde a custo relativamente baixo. Quanto maior for a carteira segurada de riscos similares, maior será a estabilidade de resultados de eventos que uma operadora pode esperar e maior será a precisão do cálculo atuarial, ou seja, menor será o desvio em torno da média."
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Só que eu estou afirmando que se há um sistema onde os riscos são mitigados por anos a fio, em populações que ficam décadas no sistema, os dados genéricos exteriores a esse sistema não são a melhor base comparativa para se calcular riscos desse sistema preventivo e mitigador dos riscos que geram o uso dos recursos.

MEU COMENTÁRIO A RESPEITO: Pelos motivos apresentados no Box 2, que mostram que os cálculos e estatísticas são baseados na premissa de que a população do grupo vai adoecer conforme os dados existentes na sociedade é que eu, diretor de saúde da Cassi à época, afirmava que era possível precificar com valores menores a sustentabilidade do Plano de Associados e Cassi Família 2, cujas populações com maiores riscos fossem fidelizadas ao modelo ESF (e parte já estava cadastradas e vinculada ao modelo ESF como provamos), porque o adoecimento e uso dos recursos seriam menores do que os dados de mercado tradicional usados nas estatísticas.

Explico melhor: à época (entre 2015 e 2017), tínhamos um sistema com mais de 500 mil participantes, no qual 180 mil estavam cadastrados num modelo de saúde preventivo e que monitorava os assistidos e que atuava para melhor uso da rede, e dentro desses cadastrados perto de 50 mil já eram vinculados (fidelizados) demonstrando comportamento melhor do que os demais participantes do sistema. Essas informações não poderiam jamais serem desconsideradas nos cálculos atuariais da Cassi.

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CONCLUO ESSE PRIMEIRO COMENTÁRIO SOBRE A LEITURA DO LIVRO

Enfim, esses são alguns comentários a partir da leitura do livro sobre saúde suplementar.

Outros pontos podem vir em outras postagens sobre a leitura.

William Mendes


Bibliografia:

ALVES, Sandro Leal. Fundamentos, regulação e desafios da Saúde Suplementar no Brasil. Rio de Janeiro: Funenseg, 2015.


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