sexta-feira, 22 de março de 2024

Esquerda e Direita - Por Alexandre Lemos



Refeição Cultural

Apresentação do texto:

Dias atrás, numa série de postagens que venho fazendo em redes sociais por causa da minha frustração pessoal ao ver o veto presidencial à memória dos 60 anos do golpe de Estado de 31 de março de 1964, postei um texto da jornalista Milly Lacombe sobre o tema - "Lula prova que a esquerda está morta (20/3/24)" - e fiz uma brincadeira perguntando quem ou o que seria de esquerda na atualidade. Ainda prometi um picolé de limão para quem me ajudasse a entender o mistério.

Num tempo relativamente curto, a companheira Ana Paula, amiga de longa data - militamos juntos no movimento sindical bancário - postou um texto que me encantou na hora. Adorei a simplicidade e a capacidade de síntese de ideias e conceitos complexos abordados no texto apresentado. Me lembrei na hora dos debates filosóficos que fazíamos aos finais dos dias de trabalho e em eventos nos quais nos reuníamos. Aquele período de militância sindical foi de grande aprendizagem na minha vida.

Ana me disse que o texto era do companheiro dela, Alexandre Lemos, e eu perguntei se poderia publicar aqui no blog. Vale a pena a leitura! É daqueles textos que voltarei a ele quando estiver refletindo sobre essa tão complexa e contraditória temática do que é e não é ser de esquerda.

Quando estava me formando politicamente no período de representação sindical lia muitos textos a respeito, muitos. Sigo lendo, até porque somos seres incompletos como li recentemente no livro Pedagogia da autonomia, do mestre Paulo Freire, e a cada dia vou tentando diminuir minha incompletude.

Vamos ao texto sobre ser de esquerda (e de direita), vocês vão se surpreender com a clareza do autor.

William Mendes

---

ESQUERDA E DIREITA

Por: Alexandre Lemos

Perdi a conta do quanto já ouvi que esquerda e direita são conceitos antiquados.

Vou tentar palpitar sobre o tema, ainda que saiba que são grandes as chances de não servir pra muita coisa. Vou deixar pros enxugadores de gelo a perda de tempo em explicar a origem das definições. O que interessa agora é o que elas significam nos tempos em estamos vivendo.

Ser de esquerda significa compreender a história como um processo dialético que se encaminha para a emancipação do ser humano com a retomada do controle do produto de seu trabalho, ou seja, da produção de riqueza. Assim, luta-se para que se chegue logo a esse momento e se reduza a extensão no tempo e no espaço da exploração do trabalho pelas classes dominantes.

A emancipação das massas trabalhadoras só pode se dar pela socialização da posse dos meios de produção. Tudo o que produz riqueza deve ser propriedade de quem trabalha nesta produção. Terras, fábricas, serviços, tudo o que produz riqueza deve ser compartilhado por todos, partindo do princípio em que numa sociedade assim ninguém é patrão, ninguém vive de renda, ninguém expropria o trabalho de ninguém e todos trabalham.

A partir daí fica fácil compreender que, basicamente, são de esquerda os comunistas e os anarquistas. E é só. Claro que outros tipos de movimentos sociais já surgiram com o pleito da propriedade coletiva em contraponto à lógica burguesa de produção e consumo. Os hippies foram, ou talvez ainda sejam, um bom exemplo disso. Acontece, porém, que o movimento hippie nunca conseguiu ir além da perspectiva comunitária, não oferecendo, portanto, uma alternativa concreta que solucione a complexidade que uma economia precisa ter para manter vivos e saudáveis 7 bilhões de seres humanos.

Dentro da esquerda, por assim dizer, não há um só modo de pensar ou lutar pela emancipação que se almeja. Numa metáfora que era moda nos meus tempos de movimento estudantil, há nuances e matizes diversos que diferenciam comunistas e anarquistas e, além disso, produzem distinções dentro do comunismo e dentro do anarquismo. Pra exemplificar, cito uma diferença bem conhecida dentro do comunismo: os reformistas, que acreditam na emancipação através de sucessivas modificações do modo de produção até que se chegue ao comunismo, e os revolucionários, que propõe a derrubada violenta do capitalismo.

Do outro lado, a direita também se divide em diversas tendências. Dos fascistas aos progressistas, há muita diferença nas práticas e nos conceitos. O que os une? Todos acreditam que é certo e justo que os meios de produção de riqueza sejam propriedade privada. O que varia entre eles? O que eles chamam de certo e de justo.

---------------------
Se você acredita que é possível ser um bom patrão, um patrão justo que pague bem a seus funcionários e lhes dê boas condições de trabalho, se você acredita nisso então você não é de esquerda. A seu favor poderá se dizer, por exemplo, que você está à esquerda dos neoliberais ou dos fascistas, mas estar à esquerda de alguém não significa, necessariamente, ser de esquerda.
---------------------

Isso se explica a partir da compreensão de que justiça social não se resume a uma boa casa ou um bom salário. Claro que num país como o nosso, esses direitos são tão raros que se fazem urgentes. Mas é importante entender que o trabalho alienado, ou seja, o trabalho vendido ao dono da terra ou da fábrica, pode até garantir o sustento “digno” de uma pessoa, mas a levará obrigatoriamente a uma vida esvaziada de sentido e perspectiva, cuja única fonte possível de “satisfação” se concentra no consumo e na alienação cotidiana da própria realidade, serviço pra lá de bem-feito pelas redes sociais e pelos veículos de comunicação de massa.

Quem é da classe média, num simples exame da própria vida, percebe de qual vazio estou falando. Não é à toa que vivemos a era das drogas lícitas, criadas e prescritas pra que todos sigam produzindo e consumindo regularmente, sem grandes reclamações. Sob o reinado do Rivotril e seus congêneres, fica evidente que uma boa casa ou bom salário não bastam pra quem vive dominado e controlado pelo capital.

Por isso o Ciro Gomes não é de esquerda, mesmo estando à esquerda do Paulo Guedes. Por isso o FHC não é de esquerda, mesmo que seu neoliberalismo seja muito mais flexível que o do presidente fascista quando se trata de costumes e comportamento. Por isso o desenvolvimentismo é, quase sempre, um projeto de direita, ainda que implementado pelo PT.

A maior parte dos movimentos ambientalistas é de direita, mesmo quando assume posições críticas a certas práticas do capitalismo. Nem todos os militantes de pauta ligada às questões de gênero são de esquerda.

A História segue seu caminho.

---

Nenhum comentário: