domingo, 24 de março de 2024

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Refeição Cultural

Osasco, 24 de março de 2024. Domingo.

Opinião


O ÚLTIMO DE NÓS

Duelam dentro de mim, dois sentimentos humanos: a esperança e o pessimismo. Os sentimentos podem nos levar a comportamentos e atitudes humanas irracionais, já que somos animais movidos pelas paixões, apesar de nos classificarmos como animais racionais - de cálculos cerebrais - somos na prática o inverso, estamos o tempo todo agindo por instinto e por paixão e não por razão. Essa é uma das grandes contradições do animal humano.

O episódio três "Long, long time" da série The Last Of Us, série baseada no aclamado jogo de mesmo nome, me deixou mais pensativo do que já ando nesta fase atual de minha existência. Para onde caminha a humanidade? Até que ponto estamos engajados em evitar realmente o fim do mundo?

Neste momento da história humana, já não vivemos mais utopias - idealizações de sociedades justas e com cidadanias plenas a todos -, já fomos todos engolidos pelas agendas que normalizam as distopias - a vida será pior ou inviável para a maioria e foda-se isso.

Como disse o professor Belluzzo em artigo recente, vivemos num "Estado de mal-estar social", inverso do que se almejava após a 2ª Guerra Mundial.

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DETERMINISMO GERA INAÇÃO

Avalio que fui uma pessoa que se baseou nas ideias deterministas de mundo durante décadas, inclusive durante uma parte do período no qual já era dirigente da classe trabalhadora após os trinta anos de idade, pois a formação política e intelectual de um militante de esquerda não se dá da noite para o dia, e ela pode nem ocorrer caso não haja um processo formativo pessoal e coletivo naquela organização onde o militante está atuando. 

Não se politiza pessoas só com desejo ou com retóricas, se politiza pessoas com método, com processos formativos adequados. Se educa e politiza seres humanos com planejamento, com objetivos, estratégias e táticas ao longo do tempo.

Avalio que a ampla maioria das pessoas no mundo está inserida em bolhas de leitura determinista de mundo. E aí é mais fácil apertar o botão do foda-se do que pensar em como mudar a realidade e a tendência de futuro. (já que o mundo vai acabar mesmo, quero mais é aproveitar o tempo que resta com as minhas questões e prazeres pessoais)

Com uma leitura e comportamento deterministas de mundo, de fim de mundo (leitura escatológica), de naturalização da realidade construída por uma parte dos agentes humanos que estão no mundo, a profecia pode tornar-se realidade por absoluta inação das pessoas, aceitação da tendência atual sem realizar ações que mudem a tendência do momento que direciona a sociedade, a natureza, os seres humanos e seres vivos para o esgotamento e fim da condição da vida.

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ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

Talvez o livro de ficção mais representativo da sociedade humana dos últimos séculos seja o livro do escritor português José Saramago, Ensaio sobre a cegueira. É um dos livros que mais se encaixam como uma carta coringa em qualquer cenário que envolva a sociedade humana e seus absurdos não vistos e se vistos ignorados por todos os agentes envolvidos na questão.

A criação por nós animais humanos das atuais tecnologias de comunicação virtuais e instantâneas poderia nos colocar em outro patamar da história humana em termos de ampliação do conhecimento humano, salto evolutivo só alcançado milênios atrás quando inventamos a escrita, os símbolos linguísticos que passaram a permitir a transmissão de saberes individuais para as outras pessoas após a morte daqueles que acumulavam saberes e culturas.

A internet e as redes sociais poderiam dar esse salto ao conhecimento humano... mas foram capturadas por poucos humanos em um mundo dominado pela lógica do capitalismo e do imperialismo, formas de organização da sociedade humana onde as pessoas e as conquistas tecnológicas para a melhoria geral da vida da espécie foram transformadas em mercadorias e não importam mais os valores intrínsecos às coisas. A própria espécie humana virou uma coisa, uma mercadoria. 

E nos tornamos cegos, cegos que vendo não veem mais nada.

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SOLUÇÕES COLETIVAS SEM COLETIVOS?

Durante as etapas formativas em minha convivência com o movimento sindical bancário ouvia com frequência frases de efeito e com grandes conceitos vindas de meus representantes sindicais, pois fui trabalhador sindicalizado desde meus 19 anos e só fui virar dirigente eleito aos 33 anos de idade.

- As soluções são sempre coletivas; 

- A prática como critério da verdade; 

- A saída é sempre pela esquerda; 

- Vamos construir o consenso progressivo, evitando-se votar logo de cara; 

- Construir a unidade na diversidade...

A história deveria ser sempre uma referência para as gerações seguintes saberem as consequências das ideias e ações do passado e pensar novas ideias e ações para as novas realidades da sociedade humana. A história não se repete porque os contextos sempre são outros. É aquela ideia da pessoa no rio, nem a pessoa é a mesma quando volta ao rio, nem o rio é o mesmo... (Heráclito)

Será que vamos construir soluções coletivas no Brasil e no mundo no campo "progressista" como chamamos a esquerda com o fim da possibilidade de divergência de ideias e opiniões nos sindicatos, partidos e movimentos organizados da classe trabalhadora?

Sem a volta de fóruns formativos e politizadores como assembleias presenciais, reuniões com grupos divergentes e unidades de fato na esquerda com plataformas que unifiquem o campo da esquerda seremos insignificantes enquanto grupos contrários ao domínio capitalista que nos conduz para um fim de verdade das possibilidades de vida na terra.

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O MEIO É A MENSAGEM

"A expressão 'o meio é a mensagem' foi criada pelo filósofo canadense Marshall McLuhan. Tal expressão surgiu a partir do momento em que McLuhan se propôs a analisar e explicar os fenômenos dos meios de comunicação e sua relação com a sociedade.

McLuhan, em sua obra Os Meios de Comunicação como Extensão do Homem, preocupou-se em mostrar que o meio é um elemento importante da comunicação e não somente um canal de passagem ou um veículo de transmissão. Este foi o ponto que gerou maior controvérsia em sua obra, pois até então era comum se estudar o efeito do meio quanto ao conteúdo, sem que se atentasse para as diferenças evidenciadas por cada suporte midiático (jornal, rádio, televisão, cinema, etc.). Cada meio de difusão tem as suas características próprias, e por conseguinte, os seus efeitos específicos. Qualquer transformação do meio é mais determinante do que uma alteração no conteúdo. Para McLuhan, portanto, o mais importante não é o conteúdo da mensagem, mas o veículo através do qual a mensagem é transmitida, isto é, o meio, que independente da sua utilidade, afeta a sociedade de algum modo além da finalidade para a qual foi criado. Diante disso, McLuhan ressalta a ideia de que o conteúdo de um meio será sempre outro meio. Paulo Serra em seu livro Manual de Teoria da comunicação, exemplifica que, os que estão preocupados com o conteúdo da mensagem e com os seus “efeitos”, deixando de lado o próprio meio, fazem lembrar um médico que se preocupa com a “doença”, mas esquece do doente.
 (Fonte: Wikipedia. O sublinhado é meu)

As redes sociais e os algoritmos são as ferramentas utilizadas pelos donos dos meios (corporações donas das mídias) para conhecer primeiro bilhões de usuários e depois utilizar esse conhecimento para manipular o comportamento desses bilhões de usuários da internet e das redes sociais. Depois de umas duas décadas de experimentos feitos conosco, agora somos vítimas de um sistema de controle global do comportamento humano, pautando o cotidiano das sociedades de uma forma nunca imaginado pela espécie humana.

Ou seja, por que vocês acham que a China decidiu criar as suas próprias mídias (meios) para enfrentar a hegemonia das mídias das empresas sediadas nos Estados Unidos? Por que vocês acham que o império do norte quer acabar com o Tiktok em seu território? Os norte-americanos não querem que uma big tech de fora faça em seu mercado (e domínio geográfico) o que as big techs deles fazem com as pessoas do mundo inteiro.

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GOVERNO LULA MELHOROU OU PIOROU A VIDA DO POVO?

Falei dessa questão do meio ser a mensagem para lembrar aos amig@s leitores que sem lidarmos com essa questão de criarmos os nossos próprios meios (mídias) não temos chances de fazer eleitores brasileiros perceberem a melhora da vida no governo Lula... sem chances. 

Caminhamos para um domínio tão grande da mente das pessoas, do sentimento e do comportamento das pessoas, que se o governo Lula entregar uma Suécia para os brasileiros eles vão achar que vivem no Haiti porque é assim que funcionam os seres humanos! A forma como sentimos o mundo é a forma como nossa mente percebe a realidade, ou cria a realidade!

Os dados da realidade econômica e social dos 15 meses de governo Lula demonstram melhoras na vida material do povo brasileiro. No entanto, a cada dia que passa, dominado pelos meios que influenciam comportamentos, pode ser que mais pessoas avaliem que a "vida" piorou. Uma das formas de pós-verdade!

Os meios por onde elas sentem o mundo são pessoais - as informações chegam só para elas em seus aparelhos - e essa informações (desinformações) se somam às desinformações abertas, as da mídia da casa-grande e do capital, que já conhecíamos e que transformam pessoas em monstros também...

"Uma imprensa cínica, mercenária, demagógica vai formar, com o tempo, leitores tão baixos quanto ela própria" (Pulitzer)

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RESPOSTAS DEVEM SER COLETIVAS DE FATO, SEM VETOS AOS DIVERGENTES

Minha reflexão já ficou longa para o domingo, mas venho falando e escrevendo sobre isso com frequência em meus textos.

Para onde caminha a humanidade? Até que ponto estamos engajados em evitar realmente o fim do mundo? O capitalismo e os caras no controle do capitalismo não estão nem um pouco preocupados em evitar o fim do mundo ou alterar a tendência disso.

Eu não tenho respostas para essas questões. Nem o presidente Lula tem. Nem Noam Chomsky tem. Quero dizer que as respostas não serão desenvolvidas da cabeça de uma pessoa. Mas podem fluir da cabeça de diversas pessoas que se preocupem com isso.

Sem ser determinista, basta abrir os olhos e ver, e vendo, perceber que se não alterarmos rapidamente a tendência das coisas na sociedade humana, caminhamos para a destruição das possibilidades de uma vida melhor no único planeta habitável para as mais diversas espécies de vida que conhecemos hoje no mundo, inclusive a da nossa espécie.

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TEMOS QUE CONSTRUIR UM MUNDO QUE FAÇA A VIDA VALER A PENA

Fico pensando naquele mundo do The Last Of Us, um cenário já não propício à vida em paz pelo ser humano e outras espécies, e fico pensando em Bill e Frank do 3º episódio da série, ou mesmo em Joel e Ellie, e não gostaria que a vida só valesse a pena enquanto temos uma ou algumas pessoas de nossa relação para querermos cuidar e viver.

A sociedade humana precisa ser boa o suficiente para que eu queira continuar vivendo mesmo que morram as pessoas de minha relação de amor mais próxima. Entendem isso? 

Está claro que esta ideia de mundo bom não é a sociedade hegemonizada pelo capitalismo, onde tudo é mercadoria e tem preço e na qual nem os seres humanos valem a graça da vida humana.

Se a motivação da vida humana for só uma ou algumas pessoas próximas e não as possibilidades amplas do viver - cultura, arte, beleza, conhecimento, solidariedade, um novo amor e amizade etc -, nossa sociedade estará no fim e realmente o mundo será esse cenário apocalíptico das ficções de terror que inventamos desde os primórdios.

William


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