Cancelamento
na esquerda é falta de solidariedade de classe
Opinião
CENÁRIO DESAFIADOR PARA A CLASSE TRABALHADORA
As classes exploradas e despossuídas do mundo vivem um
cenário pra lá de desafiador neste momento da história humana, século 21, ano
de 2024. Ao invés de utopias, as tendências são distópicas (o futuro caminha
para ser pior, não melhor). Desemprego de nosso lado, concentração de riqueza e
poder maior ainda do lado dos ricos; carências de tudo no lado do povo:
alimentação, saúde, educação, moradia, segurança, cultura. Destruição do
planeta pelo capitalismo. Belluzzo escreveu nestes dias: caminhamos para um “Estado
de mal-estar social”.
Além do drama da emergência climática, cujo efeito é parecido
ao de bombas atômicas porque os países ricos e hegemônicos fazem as merdas e as
consequências extrapolam os quintais, já que o efeito radioativo e os efeitos
climáticos se sentem em todo o globo terrestre (pois felizmente ou infelizmente
a Terra não é plana), temos o drama da mudança radical de comportamento humano,
fruto do neoliberalismo e das ferramentas de manipulação das big techs:
o que era uma utopia de liberdade e reencontros de amigos no início do século,
internet e as redes sociais, viraram máquinas de divulgação de ódio e rupturas
de amigos e familiares. Nos transformaram em animais baseados em instintos e paixões,
ninguém tem mais tolerância nem ouvidos para opiniões diferentes.
Sobre as ferramentas que dominaram o mundo e nossas mentes e
comportamentos, ainda temos pessoas que acham que vão vencer os algoritmos dos
donos das big techs. Doce ilusão! (amarga ilusão, pois isso impede ações
para combater os algoritmos desses poucos donos do poder mundial, poder que extrapola
fronteiras de países inteiros: vide o Brexit, todo mundo se ferrou, menos
meia dúzia de articuladores da manipulação do povo)
Enfim, após essa introdução de minha leitura do cenário
desafiador para a classe trabalhadora mundial, para os 99%, em oposição ao 1%,
que pra mim deveria ser identificado claramente como nossos inimigos no mundo
humano, vou registrar o que penso sobre a ferramenta social da atualidade que
podemos denominar “cancelamento”.
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TERÍAMOS AVANÇADO NOS DIREITOS DO POVO SE HOUVESSE
CANCELAMENTOS COMO HOJE NA CONSTRUÇÃO DO NOVO SINDICALISMO?
É óbvio que gostaria de ir direto para o ponto sobre o que penso
dessa ferramenta desumana de cancelar pessoas, mas para poder ao menos pensar a
respeito olhando para trás, eu preciso me perguntar se haveria o Partido dos
Trabalhadores (1980), a Central Única dos Trabalhadores (1983), o Movimento Nacional
dos Trabalhadores Sem-Terra (1984), o movimento pelo fim da ditadura e pela
volta da democracia “Diretas Já” (1985), e se haveria os militantes de esquerda
porretas que contribuíram decisivamente na Constituinte para a Constituição Cidadã
de 1988... acho difícil!
Fico pensando se teríamos uma Central com 17 (dezessete)
correntes e forças políticas como a CUT chegou a ter na sua origem ou mesmo se
teríamos criado a Articulação Sindical como a tendência hegemônica em
congressos e fóruns democráticos, e com isso em diversos sindicatos de
categorias importantes, caso o fenômeno do cancelamento e do banimento de
qualquer voz dissonante fosse a regra naquele período...
Minha opinião: nunca! Até porque a estratégia da Articulação
para se constituir como maioria no movimento sindical foi justamente juntar
pessoas e grupos que já não estavam comprometidos com as correntes do chamado
centralismo democrático: convergência socialista, os comunistas e outras forças
políticas com longa trajetória de lutas no mundo.
Tenho a leitura racional que jamais teria passado a minha
vida contribuindo para as lutas e conquistas da Articulação Sindical se não
fosse a paciência da dirigente sindical Deise Lessa à época que me conheceu
numa agência do Banco do Brasil. A ética sindical daquela geração dela ouvia e
respeitava pessoas que pensam diferente! Não fosse essa ética daquela época da
Articulação e do Novo Sindicalismo, eu teria ficado nos grupos que viviam me
convidando para as reuniões que só falavam mal da diretoria do sindicato.
A prática de se buscar o consenso progressivo de todas as
formas possíveis, antes de simplesmente contar votos e ter vitórias de Pirro no
campo da classe trabalhadora, dividindo forças políticas o tempo todo, não
resistiria a meia dúzia de cancelamentos à época, fazendo de conta que “esqueceram”
de convidar fulano ou cicrana para um fórum importante.
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Na atualidade, não querem minha opinião sequer sobre uma das
temáticas mais complexas do movimento sindical e que sei alguma coisa – gestão de
autogestão em saúde – e outro dia, numa manifestação de rua, conversando com
duas lideranças do meu sindicato de base, me perguntaram se eu havia gravado um
vídeo sobre os 100 anos do Sindicato e ao dizer que ainda não, me disseram que
eu iria ser contatado... pensei comigo no dia: doce ilusão! (provavelmente eu
vá ser lembrado quando morrer... uma lembrança burocrática, talvez)
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A ESQUERDA NÃO DEVERIA ABRIR MÃO DE QUADROS COM HISTÓRIA E
CONHECIMENTO POR CAUSA DE PICUINHAS DA BUROCRACIA
Após uma vida vivida dentro do movimento sindical bancário
brasileiro, desde adulto jovem com 18 anos até os 50 anos de idade, a gente
pode dizer que viu muita coisa no seio do movimento social de nosso país, de
nossa classe trabalhadora. Modéstia à parte, eu vivenciei muitos momentos
importantes e diria até decisivos para a nossa história, senão da classe, mas
também, ao menos da categoria, e com certeza do segmento da categoria chamado
bancários do Banco do Brasil.
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“Não tem que tolerar a religião dos outros, tem que
respeitar” (Frei Betto)
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Antes de terminar esta reflexão, deixo claro algumas coisas:
É evidente que escrevo porque em mim dói alguma coisa
também, mas falar sobre o tema cancelamento é uma necessidade inadiável no
campo da esquerda. Faz tempo que essa “ferramenta” vem enfraquecendo e diluindo
nossas frentes de esquerda nas lutas centrais contra o verdadeiro inimigo de
nossa classe. Isso precisa parar, sem a recuperação da solidariedade e do fazer
político verdadeiro, onde todas as pessoas e grupos sejam ouvidos e os debates
ocorram com a tentativa de construção de unidade, as forças extremistas à
direita, que são vozes ou ferramentas dos donos do poder (1%), e estão sendo
organizadas de forma mundial, vão nos cancelar a todos, a todos.
Eu não sou e não quero ser candidato a mais nada, não quero
representar ninguém, já valeram as duas décadas de representação desde a sindicância
de condomínio até as representações sindicais no movimento dos bancários. Aliás,
nunca me coloquei em disputas de candidaturas a nada, nunca, sempre que fui
representante eleito de algum grupo é porque esses grupos debatiam e me
convidavam, me procuravam para pedir que eu disponibilizasse meu nome para aquela
causa (muitas delas com um sacrifício pessoal imenso).
Então, repito, escrevo sobre cancelamento porque tenho
opinião e experiência de décadas na luta da esquerda, quero o bem de nosso
povo, e afirmo que essa ferramenta vai inviabilizar nossas vitórias nas lutas
de classe. Sozinhos ou de bolha em bolha de gente de ideias idênticas não vamos
a lugar algum na luta de classes.
NÃO SE JOGA FORA CONHECIMENTO E EXPERIÊNCIA
O movimento organizado tem uma característica extraordinária
de criar bons quadros políticos com conhecimentos de mundo formados no dia a
dia das lutas. Os conhecimentos de um dirigente sindical, político, estudantil
ou de outros movimentos específicos – identitários ou por moradia e pela terra
pra plantar etc – são conhecimentos gerais e muitas vezes técnicos que não se
adquirem nos estabelecimentos formais de educação.
Por isso acho um desserviço essa ferramenta do banimento,
cancelamento, esquecimento, invisibilização e retirada do acesso de lideranças
de qualquer movimento aos espaços de organização das próprias lutas em si. É uma
prática pouco inteligente. E isso vem se ampliando exponencialmente ano após
ano, e na última década a coisa chegou aos limites da insanidade.
Por décadas, li e estudei e tomei conhecimento do pensamento
de lideranças e forças políticas diversas da minha porque os via falando, defendendo
as ideias deles, porque tinham direito a escrever teses nos congressos, tinham
espaço para falar nas assembleias, que eram presenciais. Agora é raro, cada dia
mais impossível, ouvir alguém falar algo diferente do que a direção de determinado
sindicato, grupo, movimento pensa. Pior ainda, dentro da mesma força política,
se a pessoa perguntar ou questionar algo e a chefa ou chefe não gostar, adeus àquela
vítima... ela será esquecida e nunca mais terá existido na face da Terra.
(e pensar que a referência negativa na Articulação Sindical
era o chamado stalinismo, com aquele lugar-comum de até apagar fotos de
lideranças que viraram desafetos etc)
Agora não se fazem mais teses, não se fazem mais assembleias
e congressos presenciais (são raros), o que impera são as redes sociais das big
techs, que permitem cancelar e bloquear ideias diferentes e invisibilizar
vozes e pensamentos assim como as big techs fazem com as esquerdas mundo
afora...
NÃO SE ACHAM MILITANTES DE ESQUERDA AOS MONTES POR AÍ (ENTÃO
RESPEITEM OS QUE EXISTEM)
Às vezes, militantes são grandes especialistas em temas e
questões que estudaram e foram acumulando conhecimento anos a fio, são o resultado
das nossas lutas contra os verdadeiros inimigos de nossa classe, mas como têm
opiniões fortes, muitas vezes não concordam com a proposta ou tese que o/a
líder daquele espaço defende, e então são vetados, banidos de qualquer fórum
que vá tratar daquele tema. Quem ganha com isso? O nosso lado da classe?
Digam se isso não acontece no seu espaço de militância hoje
em dia.
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FALTA DE SOLIDARIEDADE E CUMPLICIDADE DAQUELAS PESSOAS QUE
NÃO FAZEM NADA PARA QUE OS CANCELAMENTOS ACABEM NA ESQUERDA
Penso que não adianta ficar chorando o leite derramado,
tivemos na última década muitas divisões em nossa classe trabalhadora, coincidentemente
após aquelas manifestações de junho de 2013 - movimentações sabidas hoje que
não foram “espontâneas” porque eram parte de um processo global de guerras
híbridas.
Temos que retomar os diálogos, a paciência de ouvir, temos
que respeitar as opiniões diferentes, e não “tolerar” como diz Frei Betto,
temos que nos reunir em fóruns de nossa classe e construir consensos que evitem
que as extremas-direitas, o movimento fascista global, nos derrotem, derrubem
ou inviabilizem governos como o do presidente Lula.
Entendo que é uma obrigação ética ter mais solidariedade no
campo da esquerda. Quantas lideranças forjadas em décadas de lutas estão por
aí, apagadas, canceladas, invisibilizadas, por parte das direções dos
movimentos sindicais, partidários, estudantis etc?
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Eu cobro responsabilidade de toda aquela e aquele que não se
posiciona em seu espaço de poder e representação pelo fato dele/a saber que
alguém está cancelado e não fazer nada a respeito. Quando eu fazia a fala
inicial aos novos funcionários do BB explicava a eles que nunca achassem normal
serem assediados, a violência organizacional, a humilhação etc. Não se pode
achar “normal” apagarem da história uma militância e não se questionar
internamente essa atitude... isso está errado na ética política da esquerda,
que quer mudar o mundo hegemonizado pelo capitalismo e por seus agentes.
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A UNIDADE É A MELHOR CHANCE PARA A ESQUERDA
Eu me dirijo aos dirigentes bancários e militantes tanto da
ativa quanto aposentados em relação à luta para que esses cancelamentos deixem
de acontecer em suas bases sindicais.
Por que será que uma liderança local, que contribuiu de
forma importante para a nossa história, nunca mais apareceu em debates e
eventos de seus fóruns? Pode ser que ela tenha decidido descansar mesmo, nada
mais justo, mas pode ser que ela nunca mais tenha sido convidada a contribuir
com seus conhecimentos e experiências para os desafios atuais da direção do
movimento por algum motivo pessoal de alguém ou até sem motivo. Isso é justo, é
legítimo, é ético? Pensem a respeito.
Dias atrás, fui cobrado para me posicionar sobre a eleição
da Cassi, autogestão em saúde dos funcionários do Banco do Brasil. É algo no
mínimo inusitado. Desde as eleições de 2020, fui “esquecido” pelo meu sindicato
de base na hora dos debates dos fóruns para se debater os temas. Isso se
repetiu em 2022, esqueceram de mim na primeira semana de dezembro de 2021. E estamos
com eleições em 2024. O que penso sobre isso?
Como ninguém quis ouvir o que eu pensava sobre o tema, e eu
conheço alguma coisa sobre a Cassi e autogestões e modelo de saúde, e como eu teria
contribuições a fazer, achei descabido me cobrarem posicionamento. Fui cancelado
pelo meu sindicato, praticamente com foto apagada como aquelas da URSS, e
entendi que o melhor seria seguir morto politicamente – CPF cancelado -, apesar
de estar vivo civilmente e biologicamente.
Estive em um fórum de pessoas construindo conhecimentos
sobre autogestão nesta semana e me pareceu que eu tive algo a contribuir,
fiquei feliz e não fiz mais do que me exigiria a ética política de passar
adiante o conhecimento que adquiri nas lutas da classe trabalhadora.
Sempre, sempre estive à disposição de todas as entidades
sindicais, políticas, organizativas e outras para contribuir com o pouco que sei
de alguns temas e assuntos que adquiri saber nas lutas diárias do movimento
sindical. Sigo à disposição no que puder contribuir.
Quanto à eleição da nossa autogestão, eu tenho opinião, como
ser politizado aprendi que é importante se posicionar, estudando o tema antes
se necessário, e achei muito ruim o nosso campo da esquerda se dividir dando
chances à chapa do outro campo. As bases sociais brasileiras estão muito polarizadas.
Acho um risco. Espero que as forças mais à esquerda ganhem e que as chapas 2 e 55
não voltem para a gestão da nossa Caixa de Assistência.
Mas se realmente quisessem minha opinião, poderiam ter me
chamado em qualquer fórum sindical que ajudei a fortalecer nas últimas décadas.
Eu sigo à disposição do movimento sindical.
William Mendes
7 comentários:
Perfeito William. É isso o poder pelo poder. Sucessão de cargos e a base na verdade foi cancelada.
Perfeita essa avaliação. Só complemento com o seguinte: cancelaram a base. Estes são chamados apenas para votar.
Querida companheira Giza, que bom receber um comentário seu! Espero que esteja tudo bem contigo.
Essa observação sua tem sentido. Ao evitar-se fazer assembleias e fóruns decisórios presenciais, de fato estão cancelando a base porque as pessoas deveriam ter o direito de se manifestarem para além de depositarem votos em opção "a" ou "b".
Eu acho isso um desperdício de oportunidade para fazer formação política da base. Já escrevi sobre isso, uma assembleia é um fórum rico de formação política e quando se elimina os fóruns presenciais, contribuem para a despolitização da classe trabalhadora.
Triste demais isso!
Bjos, companheira Giza!
William
Estamos numa sintonia fina. Estou há três dias debatendo sobre cancelamento, inclusive nas igrejas. Já manifestei minha opinião sobre a falta de solidariedade, a maneira como a esquerda descarta os seus dirigentes mais experientes, e enquanto isso, lamentavelmente; vemos na direita e na extrema direita um comportamento diferente do modelo adotado pela esquerda. Pensei que isto acontecesse somente com os "iletrados" da esquerda, mas pelo visto, o mal alcança tambem aos acadêmicos. Quem perde, é a classe trabalhadora, que de tempos em tempos, tem de reiniciar a sua luta do zero. Triste realidade!
https://redegospeloficial.blogspot.com/2024/03/a-pratica-da-cultura-do-cancelamento.html
Giza, fantástica!
Prezado Marcos Benedito, que bom receber sua reflexão aqui.
Eu tenho essa leitura também, esses processos de cancelamentos de pessoas só trazem prejuízos às nossas causas da classe trabalhadora. Além de ser falta de solidariedade. Imagino que isso esteja ocorrendo em todos os segmentos e temáticas dos grupos sociais. Temos que debater essa questão e lutar para que ela deixe de ocorrer.
Fraterno abraço! Gostei da abordagem que desenvolveu no seu blog.
William
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