(Atualização em 11/10/19)
Refeição Cultural
Estou lendo esta obra referência de Margo Glantz como parte das leituras de uma disciplina que estou cursando na Faculdade de Letras da USP - "Poéticas de autor en la literatura hispanoamericana" -, ministrada pela professora Adriana Kanzepolsky.
A autora conta a história de sua família, a partir da história de seus pais e avós. Ao longo da narrativa, vamos relembrando fatos da história do mundo e vendo que nossas histórias individuais são feitas assim, cada um de nós está o tempo todo vivendo a história coletiva do mundo.
*Assim que fiz a postagem, coloquei como data de publicação da obra o ano de 1986. Na verdade, a autora escreveu os relatos e reflexões sobre a genealogia de sua família entre os anos de 1979 e 1981, como ela nos conta na página 233. Seu pai faleceu pouco depois, em janeiro de 1982. Sua mãe, porém, faleceu em maio de 1997. Glantz nos confessa, então, que finalmente colocaria fim às suas genealogias. (julho de 1997).
Eu e vocês, cada um de nós, estamos vivendo este momento histórico do Brasil após o Golpe de Estado, após a eleição fraudulenta dos milicianos e canalhas fascistas que chegaram ao poder estatal e toda a destruição que ocorre diariamente. Essa história é nossa história, queiramos ou não, porque as consequências dela nos afetam, afetam a nossa vida, o presente e o futuro.
Enfim, sigo a leitura a partir do capítulo XXVI, na página 93. A primeira parte do fichamento dessa leitura pode ser vista aqui.
A MEMÓRIA PODE NOS TRAIR
"Repetir un acto mil vezes condensa el recuerdo, pero los recuerdos traicionan aunque se recuerden mil veces en la mente. Jacobo niega ciertas minucias que antes recordaba y los calzones con encaje se transforman simplemente en encaje suizo, maravilloso, delicado, pero aún suelto, sin ropa que decorar. Mi padre dice que cada vez recuerda mejor las cosas de su infancia y que casi todo lo demás se borra: a veces resucita y yo lo aprovecho como buitre." (p. 103)
Interessante essa reflexão sobre nossas memórias e suas seletividades. O que antes era calcinha com renda, artefato talvez inapropriado para pessoas de certa religião ou visão conservadora de comportamento individual, se transforma por um misterioso ato da memória em renda suíça, sem ligação com a calcinha que adornava.
E não é verdade que nossa memória faz isso quando lhe é conveniente?
AUTORA É REFINADA NO USO DE IRONIAS
Margo Glantz tem um humor e uma ironia muito refinados em seus textos. Percebi isso nos contos que já li dela e nos textos ou entrevistas que tive contato neste mês de aula.
Veja abaixo uma frase dela quando o pai conta que levou umas bofetadas quando foi cobrar uma dívida de pães e confeites de um cliente mexicano:
"Así cumplió mi padre con los preceptos bíblicos y gano el pan con el sudor de su frente" (p. 105)
RESMUNGANDO UMA LÍNGUA QUE NÃO É SUA
Nas obras de Margo Glantz vemos o tempo todo algumas questões relativas a certas hierarquizações de estratos sociais - pessoas e grupos que se colocam acima dos outros -, e isso se dá como algo cultural.
Falar uma língua que não é sua, por exemplo, pode fazer com que você se sinta excluído, diminuído em certos ambientes que utilizam isso para classificar pessoas e grupos. Não por parte do falante estrangeiro, mas por preconceito do ouvinte nativo.
Ela usa o verbo "mascullar" para apresentar o contexto em que um personagem tenta se comunicar em uma segunda língua, em um mundo que não é o seu mundo de origem.
"El señor Filler le prestó a mi mamá 50 pesos, mismos que sirvieron para pagar la cuenta del hospital. Mientras mi padre estaba enfermo, mi madre salía a vender el pan con Serafín, el muchacho oaxaqueño, bajito y fornido, que se reía todo el tiempo cuando oía a mi papá mascullar el español. Toda la gente veía a mi mamá como si fuera marciana, vestida muy elegante, vendiendo pan de casa en casa." (p. 110)
UN RATO* CON LAS RATAS
Momento em que o pai de Margo foi preso nos anos vinte por ser de esquerda (e ser confundido com anarquistas) e protestar contra as injustiças do governo no México.
"Y no es juego de palabras, pero ese rato se convertía en ratas que de tamaño descomunal se paseaban sobre la cama y sobre el preso..." (p. 113)
*Em espanhol "un rato" quer dizer um momento, é uma palavra para espaço de tempo, principalmente tempo curto.
EISENSTEIN E MAIAKOVSKI
O pai de Margo está falando de personalidades que ele conheceu no México dos anos 20 e 30 e cita, entre muitos, Eisenstein e Maiakovski.
"- Entonces Eisenstein y Maiakovski llegaron a México - tercía papá.
-¿Quién te pareció más interesante?
-Eran completamente diferentes. Con Maiakovski anduve toda la noche hasta las dos o tres de la mañana, hasta el cerrito, el Cierro de la Estrella, entonces fuera de la ciudad, allí descansamos y nos sentamos para hablar de poesía y recitar en voz alta poemas. Hablamos del futurismo y el imaginismo, entonces de moda, de Marinetti y de un poeta proletario, Aséyev, cuyo poema Guerra, escrito en 1914, declamamos." (p. 116)
TENTATIVA DE LINCHAMENTO POR FASCISTAS
Muito forte a cena contada pela narradora no capítulo XXXV de quando os fascistas tentaram linchar o senhor Glantz em 1939, na cidade do México.
"En enero de 1939 mi padre fue atacado por un grupo fascista de Camisas Doradas que se reunieron en la calle 16 de Septiembre, donde mis padres tenían una pequeña boutique de ropas y guantes llamada Lisette. La barba, el tipo de judío y quizá su parecido con Trotski hicieron de Jacobo Glantz el blanco perfecto para una especie de pogrom o linchamiento. Trataron de colocar mi padre sobre la vía del tren para que este le pasara encima, mientras otros arrojaban piedras y gritaban insultos tradicionales. Mi padre pudo escapar ayudado por algunos transeúntes asombrados, entrar a la boutique y subir al tapanco..." (p. 117)
Como a autora trabalha o tempo todo com a questão da memória, no capítulo seguinte ela pede para o pai narrar o caso e há algumas diferenças em relação ao que ela narrou no capítulo anterior.
TERRITORIALIZAR-SE NO CORPO DO OUTRO
A professora nos falou a respeito de um conceito muito presente na obra de Margo Glantz: a questão de territorializar-se e desterritorializar-se no corpo do outro com quem se vive. Ela vai tratar disso ao final do livro, quando explica o processo através do exemplo de sua mãe, que ao deixar tudo para trás, se territorializa no corpo do marido, senhor Glantz.
Aqui uma reflexão que já aborda essa questão do viver junto e seu lugar estar no corpo do outro. Perde-se um pouco de si, mas a pessoa também se refaz no outro.
"Viver con alguien es, probablemente, perder algo de la propia identidad. Vivir contagia: mi padre corrige la infancia de mi madre y ella oye con inpaciencia ciertas versiones de la infancia de mi padre..." (p. 119)
Ao final do capítulo XXXVII, a narradora deixa as marcas de enunciação, lembrando ao leitor se tratar de uma espécie de entrevista com os pais.
"Regreso, como de costumbre, el próximo sábado. Papá mira complacido y absorto uno de sus retratos:
- Qué interesante - dice -, se ve que es poeta." (p. 123)
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A leitura e alguns excertos seguem em outra postagem. Ler a sequência aqui.
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