sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Cassi - Entre a técnica e a política



Artigo de opinião

"Agora vc tá ferrado, meu irmão, porque esse negócio de saúde é um bagulho técnico, e vc é muito sindical como eu..." *


Quando cheguei eleito em 2014 pelos trabalhadores da ativa e aposentados do Banco do Brasil como diretor de saúde da autogestão Cassi sabia que os desafios que teríamos pela frente por quatro anos seriam enormes. 

Em ambiente democrático e com normalidade jurídica e institucional ter representação através do voto direto e ter tempo para executar minimamente um programa ou princípios que defende para a gestão nos dá condições de reverter qualquer quadro adverso, pois é só acreditar naquilo que defende, manter seus propósitos, arregaçar as mangas e buscar apoios nas bases para superar as adversidades.

Essa questão do uso da técnica para manipular e afastar as pessoas interessadas nas consequências das decisões políticas chamadas de "técnicas" é uma das ferramentas mais antigas dos donos do poder para exercer a perpetuação do patrimonialismo e a concentração de renda e poder na mão dos donos do capital, da casa grande.

Durante o mandato de diretor de saúde da Cassi eu tinha diversos desafios para serem enfrentados ao mesmo tempo, por isso que passamos quatro anos praticamente sem dormir direito de segunda a segunda, de manhã tarde e noite, e muitas madrugadas afora, porque tínhamos que estudar e conhecer a técnica e manter a firmeza de propósito da política porque representávamos os trabalhadores.

Eu prometi a mim mesmo que não iria mais fazer pesquisas, estudos e passar horas e dias concentrado nos problemas da Cassi porque hoje tem outras representações fazendo isso. Cheguei a fazer 9 artigos sobre a Cassi e os problemas que ela enfrenta nesse momento. No penúltimo artigo cheguei até a sugerir soluções para reflexão das lideranças e entidades representativas. Enfim, os artigos estão ao final deste texto para algum(a) interessado(a) na leitura.

A técnica e a política

Existem diversas formas de arrecadar recursos para criar um determinado fundo para custear a saúde ou previdência de um conjunto de participantes. As formas que existem são técnicas. A escolha da forma de arrecadar é política.

Existem técnicas até para se passar informações sobre o mesmo tema, de maneira que a técnica pode direcionar o comportamento e a decisão das pessoas para um lado ou para o outro. Assistam "Privacidade hackeada", documentário de 2019, para entenderem das técnicas atuais de manipulação de grandes contingentes de humanos. As democracias representativas como conhecíamos acabaram!

Certa vez, o presidente Lula disse numa entrevista algo que encontrei dentro da gestão da Cassi de forma clara e transparente. De posse do cargo, com um programa e princípios que defendia, ele passou a determinar para ministros e técnicos que implementassem as mudanças que o povo havia escolhido e a resposta dos técnicos era que tal coisa não podia, outra também não etc porque normas e resoluções e notas técnicas proibiam. Ou seja, havia uma máquina burocrática nos escalões inferiores do poder feita para não se mudar nada - manutenção do status quo. Não à toa, vive-se inventando desculpas para bloquear a chegada dos próprios trabalhadores aos espaços de poder, normalmente com desculpas "técnicas" como, por exemplo, exigência de formação x ou y etc.

Quando cheguei à gestão da Cassi a discussão interna, "técnica", era que os desequilíbrios do Plano de Associados eram por culpa da inflação médica; culpa dos participantes porque gastavam muito, porque eram idosos, porque tinham dependentes; os déficits eram gerados porque a Cassi era de estrutura inchada, ineficiente, que todo o dinheiro que o banco colocava não era suficiente por isso; que seria necessário aumentar a contribuição dos associados e que o banco não colocaria mais centavo algum porque não podia por uma questão "técnica". E mais, que o modelo de saúde era questionável, assim como a eficiência dos programas de saúde. O único santo na história era o patrocinador patrão. Enfim, lidamos com esse cenário.

Por ter mandato e por ter tempo, quatro anos, foi possível enfrentar todo o cenário adverso e estudar o modelo assistencial da Cassi; ser timoneiro e liderar estudos técnicos (decisão política) feitos por profissionais que provaram a eficiência da ESF e dos programas de saúde; foi possível valorizar os trabalhadores da Cassi; esclarecer o papel central das unidades regionais e das CliniCassi no modelo assistencial; mostrar a importância da gestão compartilhada com os associados, donos da autogestão. 

Demonstramos a importância da autogestão se apresentar ao seu público, explicando o que ela é e tirando dúvidas, desfazendo mal-entendidos e mentiras sobre a Cassi. Demonstramos que a Caixa de Assistência só sobreviveu por 75 anos e acolheu e cuidou de TODOS os associados porque seu modelo de custeio e de cobertura é solidário e igualitário, com o mesmo peso relativo no salário ou benefício. Sem a solidariedade do modelo de custeio mutualista intergeracional os trabalhadores seriam aos poucos excluídos do Plano. Para explicar tudo isso, tivemos que falar pessoalmente com as lideranças e associados em 170 agendas nas bases da comunidade. (ler aqui)

Fizemos isso por princípio e respeito aos associados, mesmo com entraves "técnicos" que inventavam para tentar nos impedir de ir às bases. Nunca houve tanta reunião presencial com um diretor eleito se disponibilizando aos fóruns da Cassi no país e isso fortaleceu a autogestão naquele período. Detalhe: nunca discriminamos público falando só com grupos de apoio, falamos com TODOS. Acredito que contribuímos para o espírito de pertencimento e para maior empoderamento sobre a autogestão, senão dos usuários e participantes, distantes da administração, ao menos dos conselhos de usuários, dos sindicatos e das associações da comunidade Banco do Brasil.

Por que relembrei essas questões acima?

Porque a autogestão Cassi passa por novos desafios para encontrar saídas para a questão dos desequilíbrios econômico-financeiros e sofre uma séria ameaça de liquidação, com desculpas "técnicas" (decisão política), por  parte de um regime que não esconde a quem representa: o governo Trump e a parte mais retrógrada do rentismo lesa-pátria brasileiro (incluindo os capitalistas donos de negócios privados de saúde). 

O cenário é absolutamente mais complexo do que aquele que vivi entre 2014 e 2018. É por isso que trato com muito cuidado e respeito as posições políticas divergentes dos diversos grupos, lideranças e entidades envolvidos na busca de solução para a Cassi.

Se, por um lado, o novo regime político oriundo de um golpe de Estado em 2016 já deixou claro a que veio, eliminar todo o patrimônio público brasileiro e consequentemente todos os direitos sociais do povo (o que inclui os bancários!), por outro, as lideranças e entidades da classe trabalhadora não conseguiram construir uma unidade de resistência à destruição total de todas as nossas conquistas. Isso é muito sério, eu diria fatal.

O esforço que fiz nestes três meses em que estive com as lideranças e suas entidades representativas foi com o intuito de tentar aproximar as posições divergentes ainda relativas à consulta ao corpo social feita em maio de 2019. Criou-se o grupo do "sim" versus o grupo do "não". A continuidade dessa questão será fatal para a Cassi e para nós associados. Seria necessário as posições divergentes sentarem juntas e buscarem construir um consenso maior que possa conseguir maioria qualificada em nova consulta ao corpo social. Estamos falando de 2/3 e cerca de 75 mil votos favoráveis em eventual proposta de novos recursos para a Cassi.

Ambas posições, aquelas que entendiam que a proposta era a possível para aquela conjuntura - o "sim" -, quanto aquelas que entendiam que era necessário mais avanços para aprovarem a solução para Cassi - o "não" -, ambas tinham legitimidade naquilo que interpretavam: democracia é assim. Passado o processo, sem alcançar o quórum necessário para a entrada de novos recursos ao Plano de Associados, permanece a necessidade de novas receitas para os próximos balanços da Cassi e o cenário conta com uma direção fiscal e prazos definidos para se apresentar orçamentos equilibrados até o final deste exercício de 2019.

Argumentei com diversas lideranças e entidades que qualquer proposta que venha a ser apresentada aos associados, e há todo um processo político e administrativo para que isso ocorra ("técnico"), será fundamental que parte de uma das posições esteja com a outra, independente do motivo de novo posicionamento. No cenário em que estamos, não adiantaria nova consulta cujo resultado fosse semelhante ao de maio. A Cassi continuaria sem recursos novos para o orçamento de 2020 e os seguintes, sem demonstrar que as desconformidades "técnicas" seriam corrigidas no próximo período.

Eventuais propostas construídas por lideranças, grupos ou entidades que não tenham a aderência de representações que defendam junto aos seus associados e que possibilitem alcançar 2/3 de votos válidos serão meras marcações de posição, mas sem eficácia alguma na solução da continuidade ou não da Cassi. Do outro lado, o que percebemos é o pouco ou nenhum interesse na manutenção de autogestões como a Cassi e direitos em saúde como aqueles que os associados da Cassi têm.

Na minha opinião, que não é uma opinião de leigo, haja vista que estive no centro das construções políticas e técnicas dos direitos da comunidade de trabalhadores do Banco do Brasil nos últimos 20 anos, entendo que é fundamental o desejo de dialogar e buscar consensos entre as diversas forças e lideranças que se reunirão na próxima semana para buscar soluções para resgatar a Cassi da estratégia de liquidação em andamento. Se a política não for exercida na sua plenitude, e cada grupo ou liderança mantiver sua posição e ninguém ceder, estaremos fadados a um resultado ruim no encontro nacional que ocorrerá no sábado 28 de setembro.

Tenho certeza que a Cassi é um patrimônio dos trabalhadores do Banco do Brasil e dos sistemas de saúde privados do país, e deveria ser defendida por cada um dos seus quase 200 mil associados, que investem na manutenção da entidade de autogestão com o modelo mais exitoso que há no Brasil, comprovado em estudos técnicos e reconhecido pela própria ANS e pelo mercado que busca copiar o modelo de atenção primária e medicina de família que a Cassi já desenvolve há quase duas décadas.

Abraços a tod@s, muita paciência e tolerância para a busca de uma solução de maioria qualificada para a Cassi.

William Mendes
Associado Cassi e Previ


*frase que ouvi em 2014 de uma liderança sindical antes de tomar posse no mandato eletivo de diretor de saúde na autogestão dos trabalhadores do Banco do Brasil. Pelo que me foi dito pelos profissionais de saúde da Cassi, nunca passei vergonha neles por falar alguma bobagem sobre saúde e gestão de saúde.

1º artigo: https://blog-do-william-mendes.blogspot.com/2019/06/unidade-e-participacao-na-defesa-da.html

2º artigo: https://blog-do-william-mendes.blogspot.com/2019/06/cassi-e-cassems-tem-muitos-exitos.html

3º artigo: https://blog-do-william-mendes.blogspot.com/2019/06/coparticipacao-maior-pode-inviabilizar.html

4º artigo: https://blog-do-william-mendes.blogspot.com/2019/07/o-que-e-cassi-como-fortalecer-associacao.html

5º artigo: https://blog-do-william-mendes.blogspot.com/2019/07/cassi-uma-questao-mais-politica-que.html

6º artigo: https://blog-do-william-mendes.blogspot.com/2019/07/futuro-da-cassi-esta-nas-maos-dos.html

7º artigo: https://blog-do-william-mendes.blogspot.com/2019/07/cassi-como-achar-saidas-nao.html

8º artigo: https://blog-do-william-mendes.blogspot.com/2019/07/cassi-associados-devem-resgatar.html

9º artigo: https://blog-do-william-mendes.blogspot.com/2019/08/resgatar-cassi-e-prioridade-dos.html

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