Refeição Cultural - Cem clássicos
Cada releitura de livros de poesias é uma leitura nova porque a gente descobre poemas que passaram por nós sem ter havido uma identificação pessoal na leitura anterior.
Hoje reli Sentimento do Mundo (1940), livro que considero um clássico de Drummond e das poesias brasileiras. É o 3º livro publicado pelo poeta, depois de Alguma Poesia (1930) e Brejo das Almas (1934). Nesses 3 livros temos 103 poemas de Drummond.
Alguns dos poemas de Sentimento do Mundo são muito conhecidos e cultuados pelos amantes de poesia como, por exemplo, "Sentimento do mundo", "Confidência de itabirano", "Congresso internacional do medo", "Os ombros suportam o mundo", "Elegia de 1938" e "Mãos dadas".
Desta nova leitura, um poema me encantou, mexeu comigo e foi uma descoberta: "A noite dissolve os homens". Das outras vezes que li o livro, não me identifiquei com esse poema.
Recentemente, fiz uma disciplina de Literatura Comparada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, cuja temática desenvolvida abordava a questão do tempo nas narrativas e poéticas e no trabalho final eu escolhi um poema de Drummond para analisar. O poema que trabalhei foi o "Passagem da Noite", do livro A Rosa do Povo, de 1945.
Ao ler a poesia "A noite dissolve os homens" foi instantâneo o sentimento de relação entre esse poema e o poema "Passagem da Noite" do livro seguinte.
Ambos trabalham com as imagens da noite e do dia para expressar sentimentos de dificuldades pessoais e coletivas num eventual contexto dramático de perdas, medos, riscos diversos quando a imagem está associada à noite e de renascimento da esperança ou de pulsação da vida que segue ao associar essas temáticas ao dia, ao sol, à claridade do amanhecer.
Em relação ao poema "Passagem da Noite" ainda não publiquei a minha redação final do trabalho de conclusão de disciplina que fiz. A professora gostou de minhas reflexões a respeito do poema.
Deixo abaixo o poema do livro Sentimento do Mundo. Drummond é um poeta que tem como característica o trabalho permanente com objetos relativos ao tempo, à matéria, às coisas presentes.
Podemos, por exemplo, ler a 1ª parte do poema "A noite dissolve os homens" como brasileiros vivendo sob a égide do regime bolsonarista, tempos de destruição de tudo, e podemos ler a 2ª parte do poema como a vida se apresenta a nós, e a vida é a chance de mudança a cada amanhecer. Tempos de esperança e renascimento estão ao nosso alcance, isso depende muito de nós e de nosso comportamento diante das coisas da vida.
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A NOITE DISSOLVE OS HOMENSA Portinari
A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tampouco os rumores
que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
sem esperança... Os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo...
O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.
Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando
[a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato
[de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um
[sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes
[se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio...
Havemos de amanhecer. O mundo
se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.
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Demais esse poema! Demais Drummond! Demais ler poesia! Como nos ensina Italo Calvino, é melhor ler do que não ler os clássicos!
William
Bibliografia:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do Mundo. 10ª ed. - Rio de Janeiro: Record, 2000.
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