terça-feira, 9 de novembro de 2021

Diários com Machado de Assis (X)



Refeição Cultural

"XCVIII. SUPRIMIDO

(...)

No intervalo fui visitá-los. O Damasceno recebeu-me com muitas palavras, a mulher com muitos sorrisos. Quanto a Nhã-loló, não tirou mais os olhos de mim. Parecia-me agora mais bonita que no dia do jantar. Achei-lhe certa suavidade etérea casada ao polido das formas terrenas: - expressão vaga, e condigna de um capítulo em que tudo há de ser vago. Realmente, não sei como lhes diga que não me senti mal, ao pé da moça, trajando garridamente um vestido fino, um vestido que me dava cócegas de Tartufo. Ao contemplá-lo, cobrindo casta e redondamente o joelho, foi que eu fiz uma descoberta sutil, a saber, que a natureza previu a vestidura humana, condição necessária ao desenvolvimento da nossa espécie. A nudez habitual, dada a multiplicação das obras e dos cuidados do indivíduo, tenderia a embotar os sentidos e a retardar os sexos, ao passo que o vestuário, negaceando a natureza, aguça e atrai as vontades, ativa-as, reprodu-las, e conseguintemente faz andar a civilização. Abençoado uso que nos deu Otelo e os paquetes transatlânticos!

Estou com vontade de suprimir este capítulo. O declive é perigoso. Mas enfim eu escrevo as minhas memórias e não as tuas, leitor pacato. Ao pé da graciosa donzela, parecia-me tomado de uma sensação dupla e indefinível. Ela exprimia inteiramente a dualidade de Pascal, l'ange et la bête*, com a diferença que o jansenista não admitia a simultaneidade das duas naturezas, ao passo que elas aí estavam bem juntinhas, - l'ange, que dizia algumas coisas do céu, - e la bête, que... Não; decididamente suprimo este capítulo." (p. 243/244)

*o anjo e a besta

(sublinhado meu na parte entre narrador e leitor)


Os estudos de Hélio de Seixas Guimarães nos chamam atenção para a questão dos leitores de Machado de Assis e também de literatura no Brasil. Terminei de ler a introdução do livro e ela aborda dois temas: "Em torno de alguns conceitos de leitor" e "A crítica brasileira e o público de literatura". Os textos nos põem a pensar... e a questão da possibilidade de haver ou não um público de literatura no Brasil segue até hoje.

O texto aponta que em 1890 o Brasil tinha cerca de 17% de pessoas que poderiam compor o público leitor de literatura e publicações em jornais e revistas. De uma informação como esta, poderíamos até inferir que estaríamos bem pra caramba nos dias atuais, já que a maioria das pessoas é "alfabetizada"... magina! Com o incentivo à ignorância que nos capturou com o bolsonarismo e o negacionismo, talvez estejamos em piores condições que em 1890.

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Para quem escrevemos? Essa é uma questão a se refletir sempre que nos sentamos para produzir textos ficcionais ou de informação, argumentação e reflexão como faço em meus blogs. 

Para quem escrevemos neste momento da história no qual imagens e vídeos e símbolos dominaram os seres humanos? Tempo em que o diálogo e os argumentos foram substituídos pela porrada, pelo grito, pela bala e pela mentira descarada, espalhada de forma nunca vista?

Até que ponto as pessoas acham que é possível tratar assuntos complexos com alguns parágrafos e poucas palavras ou com vídeos e imagens que sintetizariam tudo?

Qual diferença teríamos dos demais animais e seres viventes na natureza se não fosse o desenvolvimento da linguagem humana? E a linguagem tem relação com o cérebro humano e nossos 86 bilhões de neurônios.

Machado de Assis escreveu por cinco décadas num país praticamente sem leitores de literatura. Num país no qual a produção e financiamento da literatura e cultura dependiam dos brancos da Corte e das casas-grandes, ou seja, se a crítica a eles não fosse disfarçada não se publicaria nada por aqui.

E lá no século XXI (nossa volta ao passado com Temer e Bolsonaro) os brasileiros iriam viver o período mais dramático de sua história, com a chegada ao poder político de um bando de bárbaros criminosos e negacionistas, contrários à cultura e ciências e avanços sociais. 

Mas tudo bem. Seguimos por aqui, como indivíduos e como seres históricos e coletivos que lutam para construir uma sociedade de cultura, de ciência, de avanços sociais e seres humanos mais sábios e cientes da fragilidade da vida na Terra.

William



Bibliografia:

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. 1ª ed. - São Paulo: Panda Books, 2018.

GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin Editorial: Edusp, 2004.


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