quinta-feira, 2 de julho de 2009

Alguma Poesia - Carlos Drummond de Andrade, de 1930


Refeição Cultural

Drummond é o meu poeta predileto. É leitura de cabeceira.

O livro Alguma Poesia é o retrato de um tempo, de um tempo de mudança. É o sentimento de um Eu-lírico dentro desse tempo de mudança.

É o livro dos contrastes entre o antigo que vai e o novo que vem. Das substâncias.

É difícil escolher somente alguns poemas. O livro é um todo.

Ao passar de um poema ao outro vamos indo e voltando entre a cidade e o campo, entre o rural e o urbano... entre o "velho" (saudoso) e o novo (causticante)...


Poema das sete faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu 
                                            [coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.


Comentários:

"O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas."

Mais adiante no livro, veremos no poema Lanterna Mágica o contraste entre o urbano e o rural, o moderno e o antigo...

"Pernas morenas de lavadeiras,
tão musculosas que parece foi o Aleijadinho que as esculpiu,"

As pernas nos bondes versus as pernas nos rios...

Na cidade grande é preciso uma couraça aos indivíduos: "o homem atrás dos óculos e do bigode."

"Mundo mundo vasto mundo..." eu posso até rimar mas, e daí? O que isso resolve?


No poema Infância:

"Meu pai... minha mãe... meu irmão pequeno... eu sozinho... e (...)
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé."


No poema Casamento do céu e do inferno temos:

"Anjos da guarda em expedição noturna
velam sonos puberes
(...)
Por uma frincha
o diabo espreita com o olho torto
(...)
E os corpos enrolados
ficam mais enrolados ainda
e a carne penetra na carne."

Quem imagina um Drummond tão... ousado e espontâneo... atrás dos óculos e do bigode.

Ver mais em:

- Também já fui brasileiro

- Construção

- Toada do amor


Europa, França e Bahia

Neste poema temos um poeta com a leitura de seu mundo:

-a França da torre Eiffel e os cais bolorentos de livros judeus...

-a Inglaterra das tarifas bancos fábricas trustes e craques...

-Hamburgo cismando em rachar as cabeças dos outros... (essa previsão em 1930!)

-a Itália explorando vulcões apagados e acesos na cabeça de Mussolini...

-a Rússia com as cores da vida, vermelha e branca... (Stalin estragaria tudo)


"Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.
Minha boca procura a 'Canção do Exílio'.
Como era mesmo a 'Canção do Exílio'?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá!"


O poema Lanterna Mágica é mágico...

I - BELO HORIZONTE

Meus olhos têm melancolias,
minha boca tem rugas.
Velha cidade!
As árvores tão repetidas.

Debaixo de cada árvore faço minha cama,
em cada ramo dependuro meu paletó.
Lirismo.
Pelos jardins versailles
ingenuidade de velocípedes.

E o velho fraque
na casinha de alpendre com duas janelas dolorosas.


II - SABARÁ

A Anibal M. Machado

A dois passos da cidade importante
a cidadezinha está calada, entrevada.
(Atrás daquele morro, com vergonha do trem.)
Só as igrejas
só as torres pontudas das igrejas
não brincam de esconder.

O Rio das Velhas lambe as casas velhas,
casas encardidas onde há velhas nas janelas.
Ruas em pé
pé-de-moleque
PENÇÃO DE JUAQUINA AGULHA
Quem não subir direito toma vaia...
Bem-feito!

Eu fico cá embaixo
maginando na ponte moderna - moderna por quê?
A água que corre
já viu o Borba.
Não a que corre,
mas a que não para nunca
de correr.

Ai tempo!
Nem é bom pensar nessas coisas mortas,
                                     [muito mortas.
Os séculos cheiram a mofo
e a história é cheia de teias de aranha.
Na água suja, barrenta, a canoa deixa um
                                     [sulco logo apagado.
Quede os bandeirantes?
O Borba sumiu,
Dona Maria Pimenta morreu.

Mas tudo tudo é inexoravelmente colonial:
bancos janelas fechaduras lampiões.
O casario alastra-se na cacunda dos morros,
rebanho dócil pastoreado por igrejas:
a do Carmo - que é toda de pedra,
a Matriz - que é toda de ouro.
Sabará veste com orgulho seus andrajos...
Faz muito bem, cidade teimosa!

Nem Siderúrgica nem Central nem roda
                                 [manhosa de forde
sacode a modorra de Sabará-buçu.

Pernas morenas de lavadeiras,
tão musculosas que parece foi o Aleijadinho
                                 [que as esculpiu,
palpitam na água cansada.

O presente vem de mansinho
de repente dá um salto:
cartaz de cinema com fita americana.

E o trem bufando na ponte preta
é um bicho comendo as casas velhas.


III - CAETÉ

A igreja de costas para o trem.
Nuvens que são cabeças de santo.
Casas torcidas.
E a longa voz que sobe
                                     que sobe do morro
que sobe...


IV - ITABIRA

Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê.
Na cidade toda de ferro
as ferraduras batem como sinos.
Os meninos seguem para a escola.
Os homens olham para o chão.
Os ingleses compram a mina.

Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma 
                                   [na derrota incomparável.


V - SÃO JOÃO DEL-REI

Quem foi que apitou?
Deixa dormir o aleijadinho coitadinho.
Almas antigas que nem casas.
Melancolia das legendas.

As ruas cheias de mulas-sem-cabeça
correndo para o Rio das Mortes
e a cidade paralítica
no sol
espiando a sombra dos emboabas
no encantamento das alfaias.*

Sinos começam a dobrar.
E todo me envolve
uma sensação fina e grossa.


*Alfaia = móvel ou artefato de uso ou adorno doméstico. Paramento, adorno de igreja.


VI - NOVA FRIBURGO

Esqueci um ramo de flores no sobretudo.


VII - RIO DE JANEIRO

Fios nervos riscos faíscas.
As cores nascem e morrem
com impudor violento.
Onde meu vermelho? Virou cinza.
Passou a boa! Peço a palavra!
Meus amigos todos estão satisfeitos
com a vida dos outros.
Fútil nas sorveterias.
Pedante nas livrarias...
Nas praias nu nu nu nu nu nu.
Tu tu tu tu tu no meu coração.

Mas tantos assassinatos, meu Deus.
E tantos adultérios também.
E tantos tantíssimos contos-do-vigário...
(Este povo quer me passar a perna.)

Meu coração vai molemente dentro do táxi.


VIII - BAHIA

É preciso fazer um poema sobre a Bahia...

Mas eu nunca fui lá.


Comentários:

Sabará: é o passado que resiste, apesar do moderno estar chegando... chegando...

"(Atrás daquele morro, com vergonha do trem.)"


As substâncias da velha cidade: "bancos janelas fechaduras lampiões".

Imagem belíssima de um rebanho de casas pastoreado por pastores igrejas...

"O casario alastra-se na cacunda dos morros,
rebanho dócil pastoreado por igrejas:"


A cidade velha resiste teimosa:

"Faz muito bem, cidade teimosa!

Nem Siderúrgica nem Central nem roda manhosa de forde"


As pernas de lá e as de cá como já citei...

MAS a modernidade vem chegando e se impondo:

"E o trem bufando na ponte preta
é um bicho comendo as casas velhas."


A DENÚNCIA SOCIAL de Itabira:

"Os meninos seguem para a escola.
Os homens olham para o chão.
Os ingleses compram a mina."


E RIO DE JANEIRO nem é preciso falar. É ainda um retrato atual. Imaginem que Drummond sentia isso em 1930:

-Onde está o indivíduo neste mundo de aparências?

"Meus amigos todos satisfeitos
com a vida dos outros."


As substâncias da nova cidade: "Fios nervos riscos faíscas."


As mazelas das capitais (tão atual!):

"E tantos tantíssimos contos-do-vigário...
(Este povo quer me passar a perna.)"


PAUSA PARA O FÔLEGO

Paro por aqui. Como disse, não dá para escolher um ou outro poema. É tudo mágico. Atemporal.

William

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