Esta carta de Machado de Assis, de 1862, discute problemas de jornada de trabalho, da falsa vantagem das horas extras, das más condições de trabalho e do mal aproveitamento das verbas públicas.
A carta é um "achado" para nós que vivemos neste mundo do século XXI tão distante daquele de 1862. E, paradoxalmente, tão perto!, por haver os mesmos problemas já apontados por nosso escritor maior e serem ainda hoje, tão reais e não resolvidos.
Os argumentos de Machado de Assis são incontestáveis aos homens de consciência que buscam "a elucidação da verdade".
A diferença entre os tempos e a reivindicação fica por conta da qualidade da crítica de quem a faz. Melhores palavras para descrever problemas tão antigos e ainda tão modernos, só mesmo as do nosso escritor Imortal.
Ao redator dos “Ecos Marítimos”
Meu caro. — Praz-me acreditar que, nos longos anos da nossa intima e nunca estremecida amizade, tenho-te dado sobejas provas de que não costumo subordinar as minhas opiniões ao interesse ou conveniências, e que, errôneas ou verdadeiras, são-me elas sempre ditadas pela consciência. Sabes, que não pertenço ao número desses otimistas que têm sempre nos lábios um elogio e nos bicos da pena uma justificação para todo ato de poder, somente porque é do poder.
E, pois, tentando defender o atual ministro da Marinha de acusações que julgaste dever dirigir-lhe, faço-o constrangido, é verdade, por achar-me em divergência com um amigo a quem muito prezo, mas sem temor de que me classifiques entre os turiferários e amigos interesseiros de que falaste no teu primeiro artigo.
Nesta contenda ficaremos colocados em campos opostos, tomaremos mesmo caminhos diversos, mas como ambos temos o mesmo fim, como ambos visamos ao mesmo norte — a elucidação da verdade, — espero que nos encontremos, e então, como agora, nos poderemos apertar as mãos, porque nem tu nem eu teremos de corar.
Não tratando por enquanto do teu primeiro artigo, porque nele te limitas a formular capítulos de acusação, que prometes desenvolver mais tarde, ocupar-me-ei com as censuras, que no segundo fazes ao sistema que se está seguindo no fabrico do vapor Amazonas.
Pensas que semelhante obra seria mais pronta e economicamente realizada, prorrogando-se as horas de trabalho, mediante abono de gratificações de sesta aos operários.
Por este, dizes tu, lucraria o governo que mais cedo teria à sua disposição o Amazonas; lucrariam os operários que com esse acréscimo de salário proporcionariam às suas famílias maior soma de bem estar; lucrariam finalmente os cofres do Estado que poderiam aumentar suas receitas com o aluguel do dique.
Para admitir estas conclusões, seria mister conceder-te que a produção do trabalho durante 2 horas de sesta é equivalente ao salário de meio-dia, em tais casos abonado como gratificação, o que contesto.
O trabalho ordinário começa nos nossos arsenais ao nascer do sol e termina às 4 horas da tarde, apenas com interrupção de meia hora concedida para o almoço; o extraordinário ou sesta prolonga-se dessa hora ao anoitecer.
Assim o sistema que preconizas exige do operário um esforço continuado de 13 horas!
E acreditas que um homem possa, no nosso clima, e durante a estação chuvosa, trabalhar com a mesma atividade e perfeição por tão dilatado espaço de tempo, exposto aos raios do sol, que os gigantescos refletores de granito formados pelas paredes do dique, tornam ainda mais abrasador?
O bom senso dir-te-á que não.
Um ou outro indivíduo, dotado de constituição mais robusta, realizará este supremo esforço no primeiro ou segundo dia, porém, exatamente sucumbirá tentando ultrapassar esse limite.
Mas, dir-me-ás, o meio que indico tem por si a sanção de inveterada prática!
Nem tudo o que é velho é bom; e não ignoras que mais de um abuso existe enraizado na nossa administração pelo emperrado espírito de rotina.
Vês, portanto, que a adoção do alvitre por ti sugerido, longe de produzir as vantagens que apontas, prejudicaria os cofres públicos, que teriam de pagar pela obra feita quantia superior ao seu merecimento; prejudicaria ao serviço naval dando como pronto um vapor que, pelo mal acabado do seu fabrico, teria mais tarde de voltar à posição de disponibilidade.
Isto é intuitivo; e seguramente te escapou, porque apenas examinaste a questão por uma face.
O dique, como bem dizes, não foi construído para cevar os cofres do Tesouro, porém, para prestar o seu valioso auxílio ao material da nossa armada; conseguintemente, que importa que os navios neles se demorem mais ou menos dias, se por este modo executam-se radicalmente os consertos de que carecem?
Precipitação é antípoda de perfeição.
Se isto não fora um axioma, citar-te-ia, como exemplo, o vapor Oyapock, que segundo é voz geral saiu do dique fazendo água.
(aqui Machado passa a outro ponto)
Passemos ao outro ponto.
O ministro da Marinha não se intrometeu em atribuições privativas de outrem nem procurou exercer pressão sobre o espírito dos peritos do arsenal, no intuito de arrancar-lhe opinião favorável ao vapor Princesa de Joinville; sua intervenção neste negócio foi estritamente legal e ditada pelos preceitos da prudência e de justiça.
A companhia dos paquetes, como é de praxe, requereu que esse navio fosse vistoriado, mas, empregando as restrições mentais em que é vezeira, não falou do casco, porém simplesmente da máquina; e os peritos, que sabem ser aquele o ponto vulnerável, lavraram o seu parecer em termos genéricos, declarando que haveria imprudência em arriscar o vapor em uma viagem no oceano.
Frustrada a estratégia, voltou a companhia requerendo que se discriminassem os quesitos que tinham servido de base ao juízo da comissão; ao que, como era de seu dever, deferiu o Ministro. Eis quanto pela marinha se fez, nesse negócio; o mais pertence ao Ministro das Obras Públicas.
A meu ver fora melhor ter-se negado à companhia permissão para fazer seguir semelhante vapor aos portos do norte; porém, como foi ela limitada pela proibição de conduzir passageiros, acautelando-se por essa forma a segurança do público, qualquer desastre superveniente apenas alcançará a tripulação e companhias de seguro, que só terão o direito de queixar-se da sua imprudência, visto que perfeitamente conhecem os riscos que vão correr.
Não posso, todavia deixar de notar que a companhia, anunciando a saída do Joinville, calasse tão importante circunstância!
Acredita-me, amigo, abre mão de pequenas polêmicas de que não poderás tirar glória, não malbarates em pouquidades o talento que Deus te concedeu; volta-te para os grandes interesses do país, disseca as profundas chagas que corroem o nosso corpo social, põe a descoberto a podridão desses cancros que, sob o nome de companhias, absorvem o melhor dos nossos recursos; e protesto-te que, nesse terreno, não tendo forças para acompanhar-te, pelo menos te aplaudirá - O sincero amigo - M. de A.
8/2/1862
Bibliografia:
A carta é um "achado" para nós que vivemos neste mundo do século XXI tão distante daquele de 1862. E, paradoxalmente, tão perto!, por haver os mesmos problemas já apontados por nosso escritor maior e serem ainda hoje, tão reais e não resolvidos.
Os argumentos de Machado de Assis são incontestáveis aos homens de consciência que buscam "a elucidação da verdade".
A diferença entre os tempos e a reivindicação fica por conta da qualidade da crítica de quem a faz. Melhores palavras para descrever problemas tão antigos e ainda tão modernos, só mesmo as do nosso escritor Imortal.
Ao redator dos “Ecos Marítimos”
Meu caro. — Praz-me acreditar que, nos longos anos da nossa intima e nunca estremecida amizade, tenho-te dado sobejas provas de que não costumo subordinar as minhas opiniões ao interesse ou conveniências, e que, errôneas ou verdadeiras, são-me elas sempre ditadas pela consciência. Sabes, que não pertenço ao número desses otimistas que têm sempre nos lábios um elogio e nos bicos da pena uma justificação para todo ato de poder, somente porque é do poder.
E, pois, tentando defender o atual ministro da Marinha de acusações que julgaste dever dirigir-lhe, faço-o constrangido, é verdade, por achar-me em divergência com um amigo a quem muito prezo, mas sem temor de que me classifiques entre os turiferários e amigos interesseiros de que falaste no teu primeiro artigo.
Nesta contenda ficaremos colocados em campos opostos, tomaremos mesmo caminhos diversos, mas como ambos temos o mesmo fim, como ambos visamos ao mesmo norte — a elucidação da verdade, — espero que nos encontremos, e então, como agora, nos poderemos apertar as mãos, porque nem tu nem eu teremos de corar.
Não tratando por enquanto do teu primeiro artigo, porque nele te limitas a formular capítulos de acusação, que prometes desenvolver mais tarde, ocupar-me-ei com as censuras, que no segundo fazes ao sistema que se está seguindo no fabrico do vapor Amazonas.
Pensas que semelhante obra seria mais pronta e economicamente realizada, prorrogando-se as horas de trabalho, mediante abono de gratificações de sesta aos operários.
Por este, dizes tu, lucraria o governo que mais cedo teria à sua disposição o Amazonas; lucrariam os operários que com esse acréscimo de salário proporcionariam às suas famílias maior soma de bem estar; lucrariam finalmente os cofres do Estado que poderiam aumentar suas receitas com o aluguel do dique.
Para admitir estas conclusões, seria mister conceder-te que a produção do trabalho durante 2 horas de sesta é equivalente ao salário de meio-dia, em tais casos abonado como gratificação, o que contesto.
O trabalho ordinário começa nos nossos arsenais ao nascer do sol e termina às 4 horas da tarde, apenas com interrupção de meia hora concedida para o almoço; o extraordinário ou sesta prolonga-se dessa hora ao anoitecer.
Assim o sistema que preconizas exige do operário um esforço continuado de 13 horas!
E acreditas que um homem possa, no nosso clima, e durante a estação chuvosa, trabalhar com a mesma atividade e perfeição por tão dilatado espaço de tempo, exposto aos raios do sol, que os gigantescos refletores de granito formados pelas paredes do dique, tornam ainda mais abrasador?
O bom senso dir-te-á que não.
Um ou outro indivíduo, dotado de constituição mais robusta, realizará este supremo esforço no primeiro ou segundo dia, porém, exatamente sucumbirá tentando ultrapassar esse limite.
Mas, dir-me-ás, o meio que indico tem por si a sanção de inveterada prática!
Nem tudo o que é velho é bom; e não ignoras que mais de um abuso existe enraizado na nossa administração pelo emperrado espírito de rotina.
Vês, portanto, que a adoção do alvitre por ti sugerido, longe de produzir as vantagens que apontas, prejudicaria os cofres públicos, que teriam de pagar pela obra feita quantia superior ao seu merecimento; prejudicaria ao serviço naval dando como pronto um vapor que, pelo mal acabado do seu fabrico, teria mais tarde de voltar à posição de disponibilidade.
Isto é intuitivo; e seguramente te escapou, porque apenas examinaste a questão por uma face.
O dique, como bem dizes, não foi construído para cevar os cofres do Tesouro, porém, para prestar o seu valioso auxílio ao material da nossa armada; conseguintemente, que importa que os navios neles se demorem mais ou menos dias, se por este modo executam-se radicalmente os consertos de que carecem?
Precipitação é antípoda de perfeição.
Se isto não fora um axioma, citar-te-ia, como exemplo, o vapor Oyapock, que segundo é voz geral saiu do dique fazendo água.
(aqui Machado passa a outro ponto)
Passemos ao outro ponto.
O ministro da Marinha não se intrometeu em atribuições privativas de outrem nem procurou exercer pressão sobre o espírito dos peritos do arsenal, no intuito de arrancar-lhe opinião favorável ao vapor Princesa de Joinville; sua intervenção neste negócio foi estritamente legal e ditada pelos preceitos da prudência e de justiça.
A companhia dos paquetes, como é de praxe, requereu que esse navio fosse vistoriado, mas, empregando as restrições mentais em que é vezeira, não falou do casco, porém simplesmente da máquina; e os peritos, que sabem ser aquele o ponto vulnerável, lavraram o seu parecer em termos genéricos, declarando que haveria imprudência em arriscar o vapor em uma viagem no oceano.
Frustrada a estratégia, voltou a companhia requerendo que se discriminassem os quesitos que tinham servido de base ao juízo da comissão; ao que, como era de seu dever, deferiu o Ministro. Eis quanto pela marinha se fez, nesse negócio; o mais pertence ao Ministro das Obras Públicas.
A meu ver fora melhor ter-se negado à companhia permissão para fazer seguir semelhante vapor aos portos do norte; porém, como foi ela limitada pela proibição de conduzir passageiros, acautelando-se por essa forma a segurança do público, qualquer desastre superveniente apenas alcançará a tripulação e companhias de seguro, que só terão o direito de queixar-se da sua imprudência, visto que perfeitamente conhecem os riscos que vão correr.
Não posso, todavia deixar de notar que a companhia, anunciando a saída do Joinville, calasse tão importante circunstância!
Acredita-me, amigo, abre mão de pequenas polêmicas de que não poderás tirar glória, não malbarates em pouquidades o talento que Deus te concedeu; volta-te para os grandes interesses do país, disseca as profundas chagas que corroem o nosso corpo social, põe a descoberto a podridão desses cancros que, sob o nome de companhias, absorvem o melhor dos nossos recursos; e protesto-te que, nesse terreno, não tendo forças para acompanhar-te, pelo menos te aplaudirá - O sincero amigo - M. de A.
8/2/1862
Bibliografia:
ASSIS, Machado de. Crítica & Correspondência. In: Obras Completas. Editora Globo, 1997.
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