"O dia de hoje pode ser banal e mortificante, mas é sempre um ponto em que nos situamos para olhar para frente ou para trás. Para poder ler os clássicos, temos de definir 'de onde' eles estão sendo lidos, caso contrário tanto o livro quanto o leitor se perdem numa nuvem atemporal. Assim, o rendimento máximo da leitura dos clássicos advém para aquele que sabe alterná-la com a leitura de atualidades numa sábia dosagem..." (CALVINO, 2000, p. 14/15)
Refeição Cultural - Cem clássicos
"Não sabemos para onde estamos indo. Só sabemos que a história nos trouxe até este ponto e - se os leitores partilham da tese deste livro - por quê. Contudo, uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão." (HOBSBAWM, 2006, p. 562)
Foi com lágrimas nos olhos que li na manhã deste domingo a última página do livro Era dos extremos - O breve século XX, 1914-1991, do historiador marxista britânico Eric Hobsbawm, falecido em 1º de outubro de 2012.
Depois de mais de uma década do início da leitura do livro, comecei a parte três "Desmoronamento" em julho deste ano. A parte dois também foi lida relativamente bem, após retomar a leitura do livro no primeiro semestre. Li "A era de ouro" a partir de meados de maio. O último capítulo do livro (19) se chama "Rumo ao milênio". Hobsbawm escreveu e publicou o livro no início dos anos noventa.
O último capítulo nos faz refletir muito sobre o presente, um quarto de século depois de escrito. O historiador, sem querer fazer previsões, apontava sérios problemas que despontavam no final do século e milênio passados. Ele falou muito de demografia e ecologia. Falou da dificuldade de haver democracia nos Estados e sociedades do século XXI em face das novas formas de conglomerados capitalistas.
Abordou as dificuldades que as sociedades humanas terão de encontrar soluções políticas, econômicas e sociais para as demandas básicas das pessoas através do "mercado" e sem intervenções estatais. Vislumbrou dificuldades de permanência da vida humana no planeta se não mudarmos o sistema hegemônico capitalista.
A LEITURA
Li os primeiros capítulos do livro em 2009. Como disse Italo Calvino, temos que olhar "de onde" o clássico está sendo lido. E ao fazer isso, eu me encontro e me acalmo para lidar com o fato de só ter acabado a leitura tanto tempo depois do início dela.
Em 2009, eu já era um dirigente experiente da classe trabalhadora, mas tinha um grande desejo de conhecimento em diversas áreas, dentre elas História. Eu recém começava um mandato na área de formação na confederação nacional dos bancários e queria muito contribuir para a área sob minha responsabilidade na organização da classe trabalhadora.
Li a parte um do livro diversas vezes - "A era das catástrofes" -, e todos os capítulos duas ou três vezes. A leitura me foi muito importante. Me fez compreender melhor a história em geral e a nossa história de lutas de classe. Após dois mandatos na área de formação, me peguei dirigente de uma das maiores autogestões em saúde do país. Fiz dezenas de palestras Brasil afora e muitas vezes fiz citações de Hobsbawm para iniciar os trabalhos com o público presente. Valeu a pena!
Me lembro de um ensinamento de Hobsbawm que me marcou muito para toda a vida:
"A principal tarefa do historiador não é julgar, mas compreender, mesmo o que temos mais dificuldade para compreender. O que dificulta a compreensão, no entanto, não são apenas nossas convicções apaixonadas, mas também a experiência histórica que as formou. As primeiras são fáceis de superar, pois não há verdade no conhecido mas enganoso dito francês tout comprendre c'est tout pardonner (tudo compreender é tudo perdoar). Compreender a era nazista na história alemã e enquadrá-la em seu contexto histórico não é perdoar o genocídio. De toda forma, não é provável que uma pessoa que tenha vivido este século extraordinário se abstenha de julgar. O difícil é compreender." (HOBSBAWM, 2006, p. 15)
E aí, passadas as duas primeiras décadas do novo milênio, temos grupos e líderes de extrema direita chegando ao poder em seus países; presidentes e vice-presidentes defendendo torturadores publicamente; líderes nacionais negando a ciência e atacando educação e cultura. Vemos parte da população mundial vivendo delírios negacionistas como acreditar que o planeta Terra é plano e bobagens do tipo. E olha que o mundo chegou ao ponto de quase todo o conhecimento humano estar disponível na internet com um clique no teclado de qualquer aparelho! Como diz Hobsbawm, o difícil é compreender por que as coisas estão assim.
A leitura das partes dois e três do clássico Era dos extremos se deu num contexto que dificilmente esperava acontecer neste momento de minha vida, aos 51 anos de idade. Nas cinco décadas de vida, vi e vivi muita coisa na vida de nosso país. Fui criança durante a ditadura civil-militar; adolescente sem direitos trabalhistas no país miserável dos anos oitenta. Bancário de banco público nos anos neoliberais de Collor e FHC. Dirigente nacional dos trabalhadores durante os governos democráticos do Partido dos Trabalhadores. Como dirigente de saúde, vi acontecer o golpe de Estado e o início do desmonte do país. E agora sofremos ao vivermos o caos e a destruição sob o bolsonarismo.
É isso. Obrigado por tanto ensinamento, mestre Eric Hobsbawm! Obrigado! Aprendi muito e continuo aprendendo com referências intelectuais como o senhor.
William
Bibliografia:
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos - O breve século XX, 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 2006.
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