"Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: 'Estou relendo...' e nunca 'Estou lendo...'. " (CALVINO, 2000. p. 9)
Refeição Cultural - Cem clássicos
"Ele era um velho que pescava sozinho em seu barco, na Gulf Stream. Havia oitenta e quatro dias que não apanhava nenhum peixe. Nos primeiros quarenta, levara em sua companhia um garoto para auxiliá-lo. Depois disso, os pais do garoto, convencidos de que o velho se tornara salao, isto é, um azarento da pior espécie, puseram o filho para trabalhar noutro barco, que trouxera três bons peixes em apenas uma semana. O garoto ficava triste ao ver o velho regressar todos os dias com a embarcação vazia e ia sempre ajudá-lo a carregar os rolos de linha, ou o gancho e o arpão, ou ainda a vela que estava enrolada à volta do mastro. A vela fora remendada em vários pontos com velhos sacos de farinha e, assim enrolada, parecia a bandeira de uma derrota permanente." (HEMINGWAY, 2001, p. 13)
No texto de Italo Calvino "Por que ler os clássicos" ele começa abordando aquele constrangimento ou vergonha que muitos leitores sentem por não terem lido uma determinada obra que poderia ser considerada clássica ao serem questionados sobre ela por alguém.
Acho que, no meu caso, a justificativa mais usada para tal questionamento sobre uma obra não lida seria dizer que comecei e não consegui acabar de ler, ou então digo que não a li ainda, se não tiver ao menos começado a leitura. Seria algo como achar que fosse viver mais uns duzentos anos para poder ler o que gostaria de ler, além das sugestões que recebemos de livros para serem lidos. Acho que já iniciei algumas dezenas de livros que não segui até o fim da leitura.
Esse não é o caso para O velho e o mar (1952), do escritor americano Ernest Hemingway. Eu já li o livro cinco vezes, desde a primeira leitura em 2002. O velho Santiago já me fez pensar muito na existência humana, na condição dos homens frente à grandeza e poder da natureza; já me fez pensar muito na capacidade e necessidade de nunca desistir quando tudo parece dar errado em nossas vidas, mas não temos outra coisa que fazer a não ser fazer o que tem que ser feito, porque estamos vivos e somos o que somos.
Ao rever minhas postagens no blog e ao rever escritos velhos, como a lista de objetivos a cumprir ou coisas a conquistar, lista que fiz há pelo menos um quarto de século, consta lá que eu estabeleci a mim mesmo que deveria ler "cem clássicos". Ao escrever isso, eu não tinha a menor noção da abrangência e dos conceitos teóricos envolvidos na definição do que seria considerado um "clássico".
Quando entrei na Universidade de São Paulo para fazer um curso de Letras comecei a ter algumas noções sobre os clássicos e me parece que não há nada definitivo e lógico que feche o conceito no que seria ou não seria um clássico. Vários autores falam sobre clássicos e os conceitos são bem abertos.
Vou aproveitar o momento de minha vida e tentar contar em que ponto estou do meu objetivo de ler cem clássicos. Está claro que a contagem e definição serão arbitrárias e serão os meus cem clássicos.
Ontem, comecei citando a leitura do Era dos extremos, de Hobsbawm. A meu ver, pela relevância da obra e do autor na área do conhecimento humano sobre História, considero um livro clássico. Hoje, cito O velho e o mar, de Hemingway. Ambos, autores e livros, me trouxeram reflexões, ensinamentos e exemplos que marcaram meu comportamento enquanto ser humano.
O velho e o mar tem tantos instantes de sabedoria, que o leitor não consegue ficar sem olhar para o horizonte e refletir ao ler aquele pensamento, seja do personagem, seja do narrador. Veja alguns exemplos:
"'Mas', pensou, 'eu as mantenho sempre na mesma profundidade. O que aconteceu é que acabou a minha sorte. Mas, quem sabe? Talvez hoje. Cada dia é um novo dia. É melhor ter sorte. Mas eu prefiro fazer as coisas sempre bem. Então, se a sorte me sorrir, estou preparado.'" (p. 35)
Se décadas atrás, eu já achava uma espécie de humilhação sentir cãibra naqueles momentos em que contamos com o vigor de nosso corpo, que dizer agora quando a idade avança e às vezes temos cãibras até quando estamos dormindo? A reflexão do velho Santiago é muito profunda e nos toca a todos:
"'Detesto cãibras', pensou o velho pescador. 'É uma traição do corpo. É humilhante ser atacado de diarreia devido a um envenenamento de ptomaínas ou, pela mesma causa, nos vermos obrigados a vomitar.' Mas uma cãibra, se não era humilhante ante os outros, humilhava-o diante dele mesmo, muito especialmente quando estava sozinho." (p. 65)
Finalizo esta postagem com mais dois momentos muito belos e profundos de O velho e o mar. Aliás, dia desses, assisti ao filme O regresso (2015), no qual DiCaprio ganhou o Oscar, e fiquei muito pensativo sobre o homem frente à natureza. É verdade que a tecnologia atual nos fez capaz de destruir a natureza e estamos acabando com ela para sempre. Um ou dois séculos atrás, a natureza ainda se impunha bastante sobre o animal humano.
"(...) Preciso conservar todas as forças que me restam. Meu Deus, nunca pensei que ele fosse assim tão grande.
'Mas tenho de matá-lo', murmurou o velho. 'Em toda a sua grandeza e glória. Embora seja injusto. Mas vou mostrar-lhe o que um homem pode fazer e o que é capaz de aguentar. Eu disse ao garoto que era um velho muito estranho. Agora chegou a hora de prová-lo.'" (p. 67)
E fecho com essa:
"(...) 'Quantas pessoas ele irá alimentar? Mas serão merecedoras de um peixe assim? Não, claro que não. Ninguém merece comê-lo, tão grande a sua dignidade e tão belo o seu modo de agir.'
'Não compreendo estas coisas', pensou ele. 'Mas é bom que não tenhamos de tentar matar a lua, o sol ou as estrelas. Já é ruim o bastante viver no mar e ter de matar os nossos verdadeiros irmãos.'" (p. 77)
Este livro vale muito a pena ler. Recomendo!
William
Post Scriptum: ao ler as duas outras postagens que fiz sobre leituras do livro, vi que elas seguem com alguma validade. A mais antiga, de 2008, porque tive o trabalho de selecionar vários momentos que geram muita reflexão (ler aqui) e a mais recente, de 2016, porque marca uma época pessoal de muita intensidade (ler aqui).
Bibliografia:
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
HEMINGWAY, Ernest. O velho e o mar. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001.
Nenhum comentário:
Postar um comentário