"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos..." (MÁRQUEZ, Record-Altaya, p. 7)
Refeição Cultural - Cem clássicos
Uma das lembranças que mais se destacam em minhas memórias quando penso no clássico de Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão (1967), é a ressonância que o nome da obra estabelecia dentro de mim desde muito cedo em minha vida. Acho que o nome já me impactava desde que era trabalhador braçal até uns vinte anos de idade.
A ideia de uma solidão secular martelava dentro de minha cabeça... cem anos de solidão... eu me identificava muito com essa ideia, com esse conceito, mesmo sem saber ao certo o porquê.
Na edição que tenho está registrada a data de novembro de 1999 como data final da leitura do livro. Eu tinha 30 anos de idade.
Me lembro de uma frase em inglês que de vez em quando vinha em minha mente quando o sentimento de solidão aparecia: "alone in the crowd". A sentença era de um livro de inglês no qual estudei na adolescência e o texto vinha ilustrado com a foto de uma mulher numa mesa de café entre diversas mesas de café em uma calçada dessas de lugares turísticos. Estar sozinho mesmo em meio à multidão...
Cem anos de solidão... o conceito é profundo! Acho que a ideia pode sintetizar o que nós latino-americanos sentimos ao longo de nossas vidas de cidadãos de países subdesenvolvidos e explorados pelos imperialismos seculares.
Aquele tipo de solidão que significa impotência, desesperança, fundo do poço. Solidão é a coisa que poderia sintetizar aquilo que sentimos neste momento da história, vivendo sob a pandemia mundial de Covid-19 que desgraçou a vida dos mais pobres e da classe trabalhadora e vivendo sob a eterna dominação do imperialismo do Norte, que destrói há séculos a todos nós, como denuncia Eduardo Galeano em As veias abertas da América Latina.
Estamos sós, talvez como nunca antes. Não temos um Estado que nos apoie, não temos um governo que esteja ao nosso lado. As instituições do Estado, do Estado burguês, elas não funcionam mais. Tudo se desfez após o golpe de 2016. As organizações formais que deveriam nos dar alguma esperança ou noção de não estarmos sós, elas também estão burocratizadas, endurecidas, anos-luz de nós, inclusive os partidos, sindicatos e organizações coletivas. Estamos sós... parece uma solidão como o nome da obra de García Márquez.
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"Por fim, numa terça-feira de dezembro, na hora do almoço, soltou de uma vez todo o peso do seu tormento. As crianças haviam de recordar pelo resto da vida a augusta solenidade com que o pai se sentou na cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado pela prolongada vigília e pela pertinácia da sua imaginação, e revelou a eles a sua descoberta:
- A terra é redonda como uma laranja...
Úrsula perdeu a paciência. 'Se você pretende ficar louco, fique sozinho', gritou. 'Não tente incutir nas crianças as suas ideias de cigano'. José Arcadio Buendía, impassível não se deixou amedrontar pelo desespero da mulher que, num impulso de cólera, destroçou o astrolábio contra o solo" (p. 11)
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Como leitor e cidadão do mundo que se acaba no século XXI, só posso concordar com Úrsula ao achar que José Arcadio Buendía era louco mesmo... qualquer um hoje em dia sabe que a Terra é plana como nos ensinam os líderes de direita e as seitas que infestam o mundo físico e virtual que habitamos.
Ironias à parte, a literatura e as ficções são criações tão maravilhosas que muitas vezes autores e estórias superam temporalidades, épocas, estilos, modelos, geografias, e se perpetuam como narrativas a serem lidas para sempre (enquanto durem ou enquanto dure o mundo dos humanos).
Cem anos de solidão é uma das obras clássicas que me marcaram muito antes de ler, durante a leitura e nestes anos todos após a leitura. Gostaria de reler o clássico, inclusive tenho uma bela edição comemorativa de 40 anos da publicação, na língua original, e quem sabe um dia eu não releia essa estória fantástica.
William
Bibliografia:
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Tradução de Eliane Zagury. Coleção Mestres da Literatura Contemporânea. Editora Record/Altaya.
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