Tchekhov, imagem Wikipedia. |
Refeição Cultural
Eu ainda não havia lido Anton Tchekhov. Não havia aparecido a oportunidade. Hoje, tomei contato com o autor através do conto "Um caso clínico", de 1898.
O conto é muito interessante e muito atual em relação à temática que aborda: a condição da classe operária e as idiossincrasias que o modo de produção capitalista traz para as pessoas e para as relações sociais, inclusive de parcela dos beneficiários do sistema.
A leitura do conto está inserida no contexto de estudos da disciplina de Literatura Comparada II, que estou cursando com a professora Viviana Bosi, em meu curso de Letras na Universidade de São Paulo.
Segue abaixo, anotações que fiz durante a leitura do conto. É uma espécie de fichamento com observações que achei pertinentes em face dos textos que estou lendo sobre o tempo nas narrativas ficcionais.
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Um caso clínico - Tchekhov
Conto narrado em 3ª pessoa, discurso indireto livre. Narrador demiurgo, sabe o que personagens pensam e sentem.
Conforme li no texto de Benedito Nunes - O tempo na narrativa -, o conto utiliza tempos verbais no pretérito perfeito e no mais-que-perfeito, características comuns nas narrativas.
“O professor recebeu um telegrama da fábrica dos Liálikov...” 1º parágrafo. “O professor não foi pessoalmente, mas enviou seu assistente, Korolióv.” – fim do 1º parágrafo.
O 2º parágrafo é uma descrição de lugar e das coisas. Vemos tempos verbais de pretérito imperfeito, de ações continuadas, e verbos no gerúndio: “O cocheiro usava chapéu com pena...”; “Korolióv estava maravilhado com o entardecer...”.
No 3º parágrafo, que fala sobre o assistente Korolióv, temos o uso do mais-que-perfeito: “Ele nascera”; “nem visitara”; “tivera ocasião”. O narrador demiurgo, que tudo sabe, demonstra isso ao saber o que o personagem pensa: “pensava que”; “adivinhava em seus rostos”.
Descrição da moça adoentada, herdeira das fábricas: “Foram ver a doente. Completamente adulta, grande, de boa estatura, mas feia, parecida com a mãe, com os mesmos olhos pequenos (...), causou a Korolióv, no primeiro instante, a impressão de uma criatura infeliz, indigente, agasalhada por piedade naquela casa, e custava-lhe crer que fosse herdeira de cinco enormes edifícios”.
Quando a moça começou a chorar, a imagem que Korolióv fazia dela mudou e ficou menos rude: “Via agora uma expressão suave e dolorida, tão inteligente, tão comovedora, e toda ela pareceu-lhe esbelta, feminina, singela, inspirando já uma vontade de acalmá-la...”.
Ao ser solicitado para passar a noite na casa da convalescente, o assistente Korolióv observa o cenário do ambiente e nos transmite o que pensa, através do narrador demiurgo: “A cultura ali era pobre, o luxo, casual, sem sentido e sem conforto, como aquele uniforme...”.
Através da governanta Khristina Dmítrievna, ficamos sabendo da condição da família. O marido Piotr Nicanóritch havia morrido há mais de um ano e viviam na casa as três: ela, a patroa e a filha de saúde frágil. Khristina estava com a família há onze anos e disse “É como se eu fosse da família”.
Exploração faz mal à saúde dos trabalhadores: o assistente Korolióv, após tentar ser convencido pela governanta que os operários da fábrica eram muito bem tratados – havia ali espetáculos teatrais e assistência médica -, avalia de forma magnífica o que significa a não condição de saúde do proletariado explorado. Descrição fantástica:
“Na qualidade de médico, aprendera a fazer juízo acertado sobre os males crônicos, de causa essencial desconhecida, o que os tornava incuráveis, e olhava para as fábricas como um mal-entendido, cuja causa era igualmente obscura e impossível de afastar. Quanto aos melhoramentos na vida dos operários, não os considerava supérfluos, mas comparava-os ao tratamento das doenças incuráveis”.
A conclusão do assistente Korolióv é impressionante: quase dois mil trabalhadores explorados, uns cem chefetes que controlam eles, a dona da fábrica e a filha que nada aproveitam da situação, sendo infelizes e doentes, e só a governanta (a instruída) que tira proveito de tudo aquilo, comendo esturjão e tomando vinho bom. Fantástica análise do narrador/autor:
“(...) e somente dois ou três dos chamados patrões aproveitam as vantagens de tudo aqui, embora absolutamente não trabalhem e desprezem aquela chita inferior. Mas, quais são essas vantagens e como são aproveitadas? Liálikova e a filha são infelizes, inspiram compaixão, e somente Khristina Dmítrievna, solteirona um tanto idosa e estúpida, de pince-nez, tira todo o prazer de sua vida ali. Conclui-se, portanto, que se trabalha naqueles cinco pavilhões e vende-se chita ordinária nos mercados do Oriente, unicamente para que Khristina Dmítrievna possa comer esturjão e tomar madeira.”
Tchekhov introduz uma questão fantástica no conto: o diabo. “Somente a governanta sente-se bem aqui e a fábrica funciona unicamente para satisfazer seus prazeres. Mas ela parece ser apenas uma espécie de testa-de-ferro. O mais importante de todos, aquele para quem se faz tudo aqui, é o demônio”.
As aspas acima são do próprio texto, ou seja, é o pensamento do personagem Korolióv.
O narrador alerta o leitor logo em seguida, a respeito das crenças do assistente: “E ele pensou no diabo, em quem não acreditava, e ficou olhando para as duas janelas iluminadas pelo fogo”. (a imagem descrita é perfeita)
A crítica do texto ao modo de produção capitalista é muito clara, ao menos para nós leitores do século XXI. “(...) no entanto, na mixórdia da vida cotidiana, na confusão de toda a miuçalha de que são tecidas as relações humanas, aquilo já não era uma lei, mas uma contradição, uma incompatibilidade lógica, pois tanto o forte como o fraco tombavam vítimas de suas relações mútuas, submetendo-se involuntariamente a alguma força diretriz, desconhecida, situada fora da vida, estranha ao homem”.
A jovem Lisa, sozinha e acordada na madrugada, conversa com o assistente Korolióv e releva a ele que mais do que um médico, ela precisaria de uma pessoa amiga. Diz ler muito e ser solitária. “Os solitários leem muito, mas falam e ouvem pouco, a vida é um mistério para eles: são místicos e enxergam, muitas vezes, o diabo onde ele não está...”.
O conselho que o assistente teria que dar a ela é que saísse daquele local, onde o diabo com olhos de fogo (a imagem da fábrica e as janelas iluminadas pelo fogo) espreitava ela o tempo todo: “E ele sabia o que lhe dizer. Via claramente que ela deveria deixar o quanto antes aqueles cinco pavilhões e o milhão, se o possuía; e deixar aquele demônio que ficava olhando de noite...”.
A parte final do conto é muito boa. Da forma que lhe é possível, o assistente diz para Lisa que ela tem uma insônia de peso de consciência por saber da condição privilegiada que tem, uma “insônia digna”. O assistente Korolióv nutre alguma esperança no amanhã, com um mundo mais justo e igualitário, que sua geração não vai ver, mas que as próximas gerações verão.
Ótimo conto para conhecer Anton Tchekhov! O texto é de 1898.
William
Bibliografia:
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