Refeição Cultural
"Senão quando, estando eu ocupado em preparar e apurar a minha invenção, recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo e não me tratei. Tinha o emplasto no cérebro; trazia comigo a ideia fixa dos doidos e dos fortes. Via-me ao longe, ascender do chão das turbas, e remontar ao céu, como uma águia imortal, e não é diante de tão excelso espetáculo que um homem pode sentir a dor que o punge. No outro dia estava pior; tratei-me enfim, mas incompletamente, sem método, nem cuidado, nem persistência; tal foi a origem do mal que me trouxe à eternidade. Sabem já que morri numa sexta-feira, dia aziago, e creio haver provado que foi a minha invenção que me matou. Há demonstrações menos lúcidas e não menos triunfantes." (ASSIS, 1995, p. 181)
UM GOLPE DE AR? UMA IDEIA FIXA? O VÍRUS COVID?
O defunto autor Brás Cubas nos conta em suas Memórias Póstumas do que morreu. Morreu de uma pneumonia, segundo ele pega ao perseguir uma ideia fixa, a invenção de um emplasto para "aliviar a nossa melancólica humanidade". De repente, veio uma corrente de ar e acabou com tudo.
"Vinha a corrente de ar, que vence em eficácia o cálculo humano, e lá se ia tudo. Assim corre a sorte dos homens".
Ontem fui dormir preocupado, cismado, e com raiva, estressado. Dei uns dois ou três espirros e já comecei a pensar merda. Às vezes, espirro porque tenho algum cílio ou pelo na garganta, enquanto não sai não paro de espirrar. Era o caso dos primeiros espirros ontem. Só que após tirar o pelinho, espirrei mais uma ou duas vezes. E uma coriza leve apareceu. Estresse!
Estamos vivendo em meio a uma pandemia mundial de coronavírus. Todo dia morrem milhares de pessoas. No momento, nem resfriado nem gripe podemos ter mais porque a primeira coisa que nos vem à cabeça é que pegamos Covid. E se pegarmos Covid pode ser que a vida se acabe dali a alguns dias. Que merda tudo isso!
No começo da pandemia não tinha vacina. Agora estamos morrendo no Brasil sabendo que poderíamos estar todos vacinados. Isso porque estamos sob um regime psicopata e genocida. Que merda tudo isso!
Me lembrei do defunto autor de Machado de Assis porque até minha esposa usou o argumento de que talvez eu estivesse espirrando por tomar uma corrente de ar gelado da noite, já que estava lendo e escrevendo na pequena sacada de casa.
Essas argumentações que nós humanos usamos em momentos assim são subterfúgios para aliviar preocupações ou momentos de riscos e coisas ruins. Faz parte do nosso kit sobrevivência, só o animal humano tem essas ferramentas psicológicas.
O engraçado é que minha esposa sempre faz gozação com essa história de "constipar", de resfriar ao receber ar frio no peito ou na cara (rsrs). Mas a peste - a Covid - assusta tanto que faz até quem não acredita em algumas coisas falar aquelas coisas.
Machado de Assis brincou com a ideia do emplasto para curar todos os males e melancolias da humanidade. Na verdade Brás Cubas tinha era sede de nomeada, queria ver seu nome nas caixinhas do remédio milagroso, queria alimentar sua vaidade. O inútil queria deixar algo de seu na história humana.
Fico pensando em Machado de Assis, sua obra é tão vasta e tão abrangente que poderíamos citar temas abordados por ele para qualquer evento de nosso trágico cotidiano de mortes e destruição sob o regime da banalidade do mal.
Pegue a própria "ideia fixa" causadora da morte do defunto autor Brás Cubas. Destruíram nosso país criando ideias fixas para manipular uma massa de gente ignara, miserável, e muito preconceituosa. Trabalharam o pior que existe em cada um de nós através de um massacre midiático totalitário. E acabamos em Bolsonaro.
Enfim, eu estou sentindo cheiros e ainda tenho paladar. Não tenho febre nem estou tossindo. A merda da coriza e alguns espirros podem ser consequências do golpe de ar estilo Brás Cubas, e que espero que não termine numa mortal pneumonia.
Mas a merda toda é que tem um vírus mortal nos rondando por aí. E não fomos vacinados por causa do regime genocida. Não fomos vacinados por causa dessa gente ignara e miserável que apoia o regime da morte e da destruição. (e pensar que meus familiares e conhecidos fazem parte dessa gente que puxou o gatilho contra nós...)
Se morrer em alguns dias, espero não ter sido um inútil como o Brás Cubas.
William
Post Scriptum: a preocupação da última frase não deixa de ser outra questão machadiana sobre nós mesmos (Machado pensava o mundo de acordo com o seu mundo). Ser ou não ser "útil" na vida foi uma preocupação estúpida de minha parte! Foi uma abstração mental ideológica por ter sido criado e ter vivido sob a égide do sistema capitalista. Que porra é essa de ser "útil"? Pra vocês verem como estamos sujeitos a ideologias... retiro a coisa estúpida que disse. Eu não tenho que ser útil para merda nenhuma. A vida não é isso, a vida apenas é. Vai tentar dizer que uma flor ou uma borboleta são úteis...
Bibliografia:
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. Imortais da Literatura Universal. Editora Nova Cultural, 1995.
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