Refeição Cultural
"O homem do leme assistiu à debandada em silêncio, não fez nada para reter os que o abandonavam, ao menos tinham-no deixado com as árvores, os trigos e as flores, com as trepadeiras que se enrolavam nos mastros e pendiam da amurada como festões. Por causa do atropelo da saída haviam-se rompido e derramado os sacos de terra, de modo que a coberta era toda ela como um campo lavrado e semeado, só falta que venha um pouco mais de chuva para que seja um bom ano agrícola. Desde que a viagem à ilha desconhecida começou que não se vê o homem do leme comer, deve ser porque está a sonhar, apenas a sonhar, e se no sonho lhe apetecesse um pedaço de pão ou uma maçã, seria um puro invento, nada mais. As raízes das árvores já estão penetrando no cavername, não tarda que estas velas içadas deixem de ser precisas, bastará que o vento sopre nas copas e vá encaminhando a caravela ao seu destino. É uma floresta que se navega e balanceia sobre as ondas, uma floresta onde, sem saber-se como, começaram a cantar pássaros..." (SARAMAGO, 2015, p. 58)
Ao ler essa breve narrativa de José Saramago, fiquei com os olhos cheios d'água. Que imagem fantástica! Sair por aí pelos mares a navegar uma pequena floresta, como se fosse uma ilha flutuante, por esse mundão afora.
E quando olho para a realidade, estamos numa terra com um povo ignorante e miserável que apoia um regime do mal, com um genocídio em andamento e sem perspectivas de curto prazo para o fim do sofrimento psicológico por ter consciência de tudo ao redor.
Adoro Saramago. Seus textos nos colocam a pensar, nos fazem viajar. A estratégia de suas narrativas é desenvolvida, de maneira geral, a partir de uma ideia apresentada do tipo: "e se acontecesse tal coisa?" ou "e se tal coisa fosse assim?".
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"(...) quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, O filósofo do rei, quando não tinha que fazer, ia sentar-se ao pé de mim, a ver-me passajar as peúgas dos pajens, e às vezes dava-lhe para filosofar, dizia que todo homem é uma ilha, eu, como aquilo não era comigo, visto que sou mulher, não lhe dava importância, tu que achas, Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós, Se não saímos de nós próprios, queres tu dizer, Não é a mesma coisa." (p. 40)
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Enfim, mais um livrinho lido nesses dias de pausas das leituras clássicas em andamento. Livrinho no sentido de livro pequeno, como os que peguei na estante de casa.
William
Bibliografia:
SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. Aquarelas Arthur Luiz Piza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 37ª reimpressão, 2015.
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