Refeição Cultural
" - Podem voltar para os seus lugares, vocês dois.
Fleming e Stephen ergueram-se, encaminhando-se para os seus bancos, e se sentaram. Stephen, rubro de vergonha, abriu correndo um livro com a mão fraca e se inclinou sobre ele, a face bem perto da página.
Era injusto e cruel, porque o médico lhe havia dito para não ler sem os óculos! E ele já escrevera para casa, aquela manhã mesmo, para que lhe mandassem um outro par. E o Pe. Arnall tinha dito que ele não precisava estudar até que os novos vidros chegassem. Portanto, ter sido chamado de fingido diante da classe, e ter apanhado de palmatória quando sempre tirava o cartão de primeiro ou de segundo e era o chefe dos Iorkistas! Como podia o prefeito dos estudos saber que era patranha? Tinha sentido os dedos do prefeito tocarem-no quando apresentara a mão; até cuidara que lhe ia apertar as mãos num cumprimento, pois os dedos do prefeito estavam macios e firmes; mas depois, logo depois, tinha ouvido o zunido da manga da batina e a pancada. Fora crueldade, e não fora nada bonito fazê-lo ajoelhar no meio da classe, depois; e o Pe. Arnall dissera a ambos que podiam voltar para os seus lugares, sem fazer nenhuma distinção entre eles..." (JOYCE, 1987, p. 62/63)
A cena descreve o jovem Stephen Dedalus sendo castigado com a palmatória no colégio sem ter feito nada de errado. Ao castigarem outro garoto aproveitaram para castigar ele também, por escolha aleatória, porque estava sem óculos durante uma lição em sala de aula. Antes dessa cena, lemos outra descrevendo o açoite dos garotos com palmatória. É nojento e cruel saber que isso era a norma nas escolas de outras épocas.
Stephen Dedalus é uma espécie de alter ego de James Joyce, que enfrentou sérios problemas de visão em sua vida. Neste primeiro capítulo do livro, também vemos discussões entre irmãos (tios) na família de Stephen por causa de diferenças religiosas entre católicos e protestantes, algo muito presente na vida dos irlandeses.
Ao terminar a leitura dessa obra de Joyce, terei completado a trilogia dele mais significativa, na minha opinião. Já li diversas vezes os contos de Dublinenses (1914) e estou relendo o grande clássico Ulysses (1922), o qual havia lido duas décadas atrás. A experiência da leitura é outra, tanto porque sou outro quanto porque as traduções são diferentes, primeiro li a de Houaiss e agora leio a de Galindo. Retrato do artista quando jovem é intermediário aos dois, lançado em 1916. A tradução é de José Geraldo Vieira.
Estou terminando a leitura em versos da Odisseia, de Homero, obra referência de Joyce para a odisseia de Leopold Bloom por Dublin, em Ulysses. Stephen Dedalus, personagem que leio no Retrato, é o mesmo Dedalus da epopeia joyceana pela Dublin do dia 16 de junho de 1904.
É isso, seguimos lendo e buscando conhecimento e cultura para que suportemos com resiliência o Mal e tenhamos resistência para viver, mesmo que tristes, por causa da realidade que enfrentamos no Brasil pós golpe da casa-grande e pós predomínio da banalidade do mal com o bolsonarismo e a destruição do Estado nacional e das instituições do país.
Quero sobreviver mais um pouco porque ainda tenho pessoas que dependem de mim. Estudar, ler e escrever são tarefas revolucionárias em tempos de ignorância, apagamento da história das lutas da classe trabalhadora e predomínio da pós-verdade por parte dos capitalistas e seus ideólogos e lacaios.
Resistir!
William
Bibliografia:
JOYCE, James. Retrato do artista quando jovem. Tradução de José Geraldo Vieira. Ediouro/92340, 1987.
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