Refeição Cultural
"Raiva é um negócio que ninguém pode tirar da gente. Só podem dar mais." (p. 30)
"Fui sem estrilar. Mas não foi fácil. Acho que nunca tinham limpado aquelas privadas antes. Se alguém fosse cagar nelas, ia sair cagado. Mas eu não dizia porra nenhuma..." (p. 32)
"Até pensava em dar um capricho em mim, pra ela me ver bem vestido. Parei de pensar tanto em arrumar um revólver, pra pensar em roupa. Era do caralho curtir aquela menina, a tal da Lica." (p. 48)
"E viu que eu estava mal. Me fez chá, café, me deu comida. Mas tudo que eu botava pra dentro, as tripas botavam pra fora. Era a porra do medo. Medo ferve as tripas." (p. 65)
Entre ontem e hoje, sábado 27 de março, reli o livro de Plínio Marcos, Querô, obra de 1976. A história de Querô é um soco no estômago de todos nós, é a história de nosso ontem, de hoje, e, infelizmente, de amanhã.
Jerônimo da Piedade, o Querosene, o Querô. Filho da prostituta Alzira da Piedade e sem pai. Crescido no prostíbulo, criado pela cafetina Violeta, e depois nas ruas, e depois recolhido em uma prisão de menores, e depois nas ruas. Querô.
Enquanto lia a história de Querô, via flashs do passado, instantes da minha vida ao longo de décadas. Não via só minha vida, via a vida dos querôs ao meu redor. O tempo inteiro pensava nos querôs espalhados por cada canto desta terra tão fecunda e tão miserável: Brasil.
O acaso me fez um sortudo. Não fui um Querô. Comecei com sorte, sendo filho da Dirce e do Gercir. Mas muitos de nós poderiam ter tido o mesmo percurso de Jerônimo da Piedade.
A miséria e a pobreza de um país como o Brasil são contagiantes, encurralam a todos nós, nos põem todos em guerra: pobre contra pobre, miserável contra miserável.
(15h27 - interrompo a confecção da postagem... soube neste minuto de mais uma vítima da Covid-19, agora um amigo aqui do condomínio. Mais uma vítima do genocídio. Tantos anos juntos aqui onde moramos, reuniões, confraternizações (Sr. Epaminondas, presente!). Mais uma morte severina, morte matada pelo regime genocida... paro para respirar...)
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As narrativas de Querô me fizeram lembrar de coisas muito duras na vida.
Baratas. Me lembrei muito de baratas. As baratas foram um verdadeiro tormento na minha vida. As baratas nas diversas residências nas quais vivi. Aquele monstro. Tive azar com baratas ao longo da vida humilde que tive, com a família e depois sozinho. Amassar barata na cara (foi difícil superar isso). Amassar barata na botina... casas onde precisei combater colônias de baratas. Jogava inseticida e matava dezenas delas. Numa casa de fundo de quintal onde morei, na entrada de uma favela e em frente a um córrego sujo, tinha um banheiro comunitário no qual as baratas saíam do ralo enquanto se tomava banho... cara, era foda! Muitas casas com baratas tive nas veredas de minha vida.
Merda. Trabalhei de ajudante de encanador antes dos 17 anos de idade. Quebrar concreto, paredes, passar canos de esgoto. Certa vez, tive que tirar o vaso sanitário e os canos de uma casa em reforma. Tive a experiência de ter que mexer na merda dos outros. Obras novas eram melhores por não ter encanamento usado. É um serviço difícil. A sociedade deveria valorizar, respeitar e remunerar adequadamente os serviços braçais que as maiorias jamais gostariam de fazer.
Ler a história de Querô me fez pensar muito no momento em que estamos no Brasil: pandemia de coronavírus e sob o comando do crime organizado - bandidos endinheirados, gente má e gente com desvios mentais no poder, psicopatas. Desemprego em massa após a destruição do país pela Lava Jato e pelo golpe de 2016 (em 2014 vivíamos a experiência do pleno emprego e as pessoas escolhiam onde trabalhar). Mais de 300 mil mortos oficialmente por Covid-19, sem oxigênio, sem atendimento médico. Sem vacinas para todos. Provavelmente, o mesmo número de mortos por mortes severinas, pela miséria, pelo trabalho intermitente sem direitos, pelo não atendimento médico de urgência.
Querô. Não fui órfão como Querô. Não tive o mesmo fim de Querô por diversas casualidades aparecidas nas veredas da vida neste sertão brasileiro. Tive pais. Tive amigos. Tive amores. Tive sorte. Tive companheiros do movimento sindical e político que me mostraram o caminho da consciência política. Tive empenho sim, mas não foi por meritocracia que vivi até aqui, foi pela solidariedade da vida em sociedade, foi por oportunidades surgidas a partir de movimentos externos a mim. Tudo que nós da classe trabalhadora somos e temos, nós excluídos da casa-grande, que não nascemos naqueles berços, tudo que temos é fruto das lutas sociais coletivas.
Chega. Reflexão feita a partir da obra de Plínio Marcos. Vivendo sob o país dos bolsonaros, de moros e dalagnois e sua multidão de apoiadores dementes, canalhas e trogloditas.
Essa gente vai passar, vai cair, vai encontrar o fim.
William
Post Scriptum (13/12/22): assisti na Netflix ao filme Querô (2007), direção de Carlos Cortez, com Maxwell Nascimento no papel principal. Gostei da adaptação da obra de Plínio Marcos.
Bibliografia:
MARCOS, Plínio. Querô (uma reportagem maldita). São Paulo: Publisher Brasil, 1999.
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