sábado, 6 de março de 2021

Por que ler os clássicos?



(redação melhorada algumas vezes até 14h35, de 7/3/21)

Refeição Cultural

Em um momento deste sábado, 6 de março, comentava com minha esposa sobre uma questão trivial e doméstica: uma suposta diminuição de cabelos e uma tendência a ficar careca, coisa estranha no meu caso porque isso não é um fator genético em minha família e sempre tive muito cabelo. Avaliei que o fato talvez se deva à questão do estresse psicológico que tenho vivido desde o golpe de Estado no Brasil e suas trágicas consequências. 

As pessoas conscientes estão sofrendo tanto com a destruição do Brasil que os efeitos poderiam ser semelhantes a traumas de guerra ou situações de extremo desgaste emocional, e os efeitos no corpo podem ser terríveis em situações assim. 

Na hora do comentário, corri à estante, peguei um livro, abri certa página e li para ela, com lágrimas nos olhos:

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"(Sarajevo, 1946.) Aqui, como em Belgrado, vejo nas ruas um considerável número de moças cujos cabelos estão ficando grisalhos, ou já o estão completamente. Têm os rostos atormentados mas ainda jovens, enquanto as formas dos corpos traem ainda mais claramente sua juventude. Parece-me ver como a mão desta última guerra passou pelas cabeças desses seres frágeis [...]

     Tal visão não pode ser preservada para o futuro; estas cabeças logo se tornarão mais grisalhas ainda e desaparecerão. É uma pena. Nada poderia falar tão claramente sobre nossa época às futuras gerações quanto essas jovens cabeças grisalhas, das quais se roubou a despreocupação da juventude.

     Que pelo menos tenham um memorial nesta notinha. 

           Signs by the roadside (Andric, 1992, p. 50)" (in: HOBSBAWM, Era dos extremos, São Paulo: Companhia das Letras, 2006) 

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Se pessoas como eu, com experiência e certo coro grosso - que vivi décadas enfiado nas lutas sindicais e do mundo das guerras entre capital e trabalho - sentem os efeitos psicológicos da destruição total do presente e das perspectivas de futuro, imagino como estão sofrendo e estão perdidos os jovens como nossos filhos e sobrinhos, dos quais "se roubou a despreocupação da juventude", jovens que estavam no meio do caminho em suas graduações universitárias e sentiram na pele toda a destruição causada por esses desgraçados no poder por golpe e por manipulação do comportamento do povo brasileiro através das ferramentas tecnológicas e políticas da atualidade, ferramentas sob o poder da elite porque são necessários recursos financeiros elevados para o efeito desejado em escala.

O ato de ler clássicos como Hobsbawm nos capacita para a argumentação ao obtermos referências sobre a vida como ocorreu comigo no instante em que citei a passagem do livro Era dos extremos. Italo Calvino nos fala sobre isso em seu artigo memorável.


Hoje terminei a leitura de mais um livro clássico da literatura mundial - Madame Bovary, publicado por Flaubert em 1856. Ler os grandes romances, ensaios e textos filosóficos nos faz crescer mentalmente, nos faz ter referências na análise dos diversos contextos da vida e da sociedade humana.

O contexto da pandemia mundial de Covid-19 e a saída da condição de venda de minha força de trabalho para o modo de produção capitalista após quase quarenta anos de trabalho têm permitido que eu tente ler um pouco mais leituras literárias, históricas e filosóficas ao sabor do meu desejo. Não tanto quanto eu imaginei porque minha cabeça política me vincula a todo o sofrimento causado pela destruição do mundo que ajudei a construir nas últimas décadas e isso emperra minha capacidade de leitura.

Italo Calvino enumera um conjunto de conceitos muito interessantes em relação aos motivos para se ler os clássicos. E de fato, se eu pensar rapidamente nos últimos que li, virão em meu auxílio os conceitos que Calvino argumenta em seu artigo. Ganhar experiência e referência é um deles. Veja o que ele diz em relação às leituras na juventude, por exemplo:

"Podem ser (talvez ao mesmo tempo) formativas no sentido de que dão uma forma às experiências futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza: todas, coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude." (CALVINO, Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000)

Em tempos de morte como os tempos que vivemos, com um regime genocida no poder e com a pandemia mundial, livros como A Rosa do Povo, de Drummond, nos fornecem dezenas de versos e pensamentos para dizer, escrever, pensar, gritar, sentir, acolher ao próximo, enfim... nesses dias estou dizendo o tempo todo "o essencial é viver!", verso final do poema "Passagem da Noite".

E assim nos lapidamos, crescemos e ganhamos referências novas com os livros recentemente lidos desde o início até o fim e de uma vez, do ano passado pra cá, ou iniciados há muitos anos e retomados e terminados agora, como foram os casos dos livros do Eduardo Galeano, do Hobsbawm, do Boccaccio (mais apropriado para se ler na pandemia, impossível!), dentre outros. Que dizer, então, da releitura de O processo, de Kafka, para se pensar o Brasil, a Lava Jato, o golpe "com Supremo com tudo"? Quem nunca citou um trecho de poemas de Brecht que atire a primeira pedra (rsrs).

E agora, finalizei a leitura sobre a estória de Ema Rouault (Bovary, após se casar com Carlos). Valeu a pena ler esse clássico? Valeu. Impressiona saber que não mudou muito na atualidade a condição da mulher, a visão da sociedade burguesa em meados do século XIX na França, o racismo, a mercantilização de tudo, o embate entre a ciência e a religião, o patriarcalismo, o machismo, tudo tudo é muito atual se pensarmos que o livro foi escrito num contexto de capitalismo e burguesia de 165 anos atrás.

Enfim, em meio a tanta miséria e tristeza por sermos um povo tão bárbaro e ignorante como o Brasil se mostrou ao mundo após o golpe de 2016, é melhor lermos os clássicos do que não lermos, como diz Calvino ao finalizar seu artigo.

Abraços e se cuidem, se puderem, evitem sair nessas semanas em que estamos num crescendo da contaminação e mortes por Covid-19.

William

Post Scriptum:

Por que a cachaça na foto dos clássicos? Porque só tomando uma dose pra comemorar o meu feito literário! Achei que nunca fosse acabar livros como A era dos extremos, Decamerão e Madame Bovary. Viva! Saúde!


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