sábado, 11 de janeiro de 2025

Leitura de poesia (41) - O poeta, Álvares de Azevedo



O poeta - Álvares de Azevedo

              Un souvenir heureux est peut-être sur terre

                      Plus vrai que le bonheur!

                              A. de Musset


Era uma noite - eu dormia

E nos meus sonhos revia

As ilusões que sonhei!

E no meu lado senti...

Meu Deus! por que não morri?

Por que do sono acordei?


No meu leito - adormecida,

Palpitante e abatida,

A amante de meu amor!

Os cabelos recendendo

Nas minhas faces correndo

Como o luar numa flor!


Senti-lhe o colo cheiroso

Arquejando sequioso;

E nos lábios, que entr'abria

Lânguida respiração, 

Um sonho do coração 

Que suspirando morria!


Não era um sonho mentido;

Meu coração iludido 

O sentiu e não sonhou:

E sentiu que se perdia

Numa dor que não sabia...

Nem ao menos a beijou!


Soluçou o peito ardente,

Sentiu que a alma demente

Lhe desmaiava a tremer:

Embriagou-se de enleio,

No sono daquele seio

Pensou que ele ia morrer!


Que divino pensamento, 

Que vida num só momento 

Dentro do peito sentiu...


Não sei... Dorme no passado

Meu pobre sonho doirado...

Esperança que mentiu!


Sabem as noites do céu 

E as luas brancas sem véu

As lágrimas que eu chorei!

Contem do vale as florinhas

Esse amor das noites minhas!

Elas sim... eu não direi!


E se eu tremendo, senhora, 

Viesse pálido agora 

Lembrar-vos o sonho meu,

Com a fronte descorada

E com a voz sufocada

Dizer-vos baixo - Sou eu!


Sou eu! que não esqueci

A noite que não dormi,

Que não foi uma ilusão!

Sou eu que sinto morrer

A esperança de viver...

Que o sinto no coração! -


Riríeis das esperanças,

Das minhas loucas lembranças,

Que me desmaiam assim?

Ou então, de noite, a medo

Choraríeis em segredo

Uma lágrima por mim?

---

COMENTÁRIO:

Terminei a leitura dos 43 poemas da 1a parte da "Lira dos vinte anos" do jovem paulistano Álvares de Azevedo, que viveu pouco mais de dez anos como adulto, se considerarmos sua infância e adolescência, entre 1831 e 1851.

Enquanto lia os poemas, fiquei pensando várias coisas. Mesmo não sendo o tipo de poesia e poética que me agradam, pensar na produção poética do rapaz lá naquele mundo miserável do Brasil de meados do século 19, me faz respeitar absurdamente um escritor como ele!

O vocabulário do poeta, as condições materiais da época, a gente inculta e aculturada na religião e nas crendices, imaginem o cenário, o contexto e o mundo de Álvares de Azevedo...

E pensar que no meu mundo, o dia 11 do mês de janeiro do ano de 2025 do século 21, temos uma humanidade dominada por crendices e mentiras em escala global, uma população escravizada e trabalhando umas 18 horas por dia, sem tempo de se educar e sem conhecimentos básicos de quase tudo...

Enfim, enquanto lia o eu-lírico dos anos 40 do século 19, clamando a Deus, suspirando de amor etc, fiquei pensando se o mundo andou pra frente ou pra trás...

(Post Scriptum: não é problema algum a fé das pessoas em qualquer tipo de metafísica, a visão de mundo de cada um é questão pessoal. Entretanto, a religião somada ao Estado queimou gente por séculos e pode ser que volte a queimar. Essa é a minha preocupação)

Sobre este poema, "o poeta", gostei dele.

Mas estou pensativo...

William 


Bibliografia:

AZEVEDO, Álvares. Lira dos vinte anos. Coleção Vestibular, O Estado de São Paulo. Klick Editora: São Paulo, 1999.


sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Livro: El gaucho Martín Fierro - José Hernández



Refeição Cultural 

Janeiro de 2025


"Me he esforzado, sin presumir haberlo conseguido, en presentar un tipo que personificara el carácter de nuestros gauchos, concentrando el modo de ser, de sentir, de pensar y de expresarse, que les es peculiar..." (Prólogo, José Hernández, p. 7)


Uma representação genuína dos gauchos é o que o escritor José Hernández apresenta a seus leitores no ano de 1872.

A poesia de Hernández utiliza uma linguagem poética da época, com uma sonoridade cativante e de fácil compreensão, mesmo tendo palavras diferentes do espanhol moderno.

"(...) dotándolo con todos los juegos de su imaginación llena de imágenes y de colorido, con todos los arranques de su altivez, inmoderados hasta el crimen, y con todos los impulsos y arrebatos, hijos de una naturaleza que la educación no ha pulido y suavizado." (idem)

Adquiri minha edição do clássico Martín Fierro em Buenos Aires, em 2012. Ela contém a 2a parte, "a volta", publicada sete anos depois e vários textos complementares muito bons.

Terminada a releitura da parte um, seguimos a leitura da 2a parte, que é diferente da primeira em relação ao personagem apresentado por Hernández em outro contexto político do autor.

Ler os clássicos é melhor que não ler os clássicos nos ensina Italo Calvino. Concordo com ele.

William 


Bibliografia:

HERNÁNDEZ, José. Martín Fierro. - 1a ed. - La Plata: Terramar, 2007.


Leitura de poesia (40) - Martín Fierro (VIII), José Hernández



El gaucho Martín Fierro - José Hernández


VIII

(...)

El nada gana en la paz

y es el primero en la guerra;

no le perdonan si yerra,

que no saben perdonar,

porque el gaucho en esta tierra

sólo sirve pa votar.


Para él son los calabozos,

para él las duras prisiones;

en su boca no hay razones

aunque la razón le sobre;

que son campanas de palo

las razones de los pobres.


Si uno aguanta, es gaucho bruto;

si no aguanta, es gaucho malo.

¡Déle azote, déle palo,

porque es lo que él necesita!

De todo el que nació gaucho

ésta es la suerte maldita.


Vamos, suerte, vamos juntos

dende que juntos nacimos,

y ya que juntos vivimos

sin podernos dividir,

yo abriré con mi cuchillo

el camino pa seguir.


Do livro El gaucho Martín Fierro, de 1872

---

COMENTÁRIO:

"que son campanas de palo

las razones de los pobres."


O poema de José Hernández é universal porque los gauchos são todos os pobres e miseráveis explorados do mundo.

Aos pobres lhes tiram a família, os amores, a liberdade, a bondade e em troca lhes dão porrada, bala, prisão e maldade.

A poesia gauchesca é muito representativa do povo de Nuestra América, um povo em busca de sua cultura e sua liberdade como nos ensina José Martí, apóstolo da independência de Cuba.

Sigamos aprendendo com nossas raízes sul-americanas e caribenhas.

William 


Bibliografia:

HERNÁNDEZ, José. Martín Fierro. - 1a ed. - La Plata: Terramar, 2007.


quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Leitura de poesia (39) - Legado, Carlos Drummond de Andrade



Legado - Carlos Drummond de Andrade


Que lembrança darei ao país que me deu

tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?

Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu

minha incerta medalha, e a meu nome se ri.


E mereço esperar mais do que os outros, eu?

Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.

Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,

a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.


Não deixarei de mim nenhum canto radioso,

uma voz matinal palpitando na bruma

e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.


De tudo quanto foi meu passo caprichoso

na vida, restará, pois o resto se esfuma,

uma pedra que havia em meio do caminho.


Do livro Claro Enigma, 1951.

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COMENTÁRIO:

Depois de conhecer os seis primeiros livros de meu poeta preferido, Drummond, iniciei a leitura do sétimo livro dele: Claro Enigma (1951).


"Que lembrança darei ao país que me deu

tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?"


Essa pergunta inicial me pegou logo de cara. E o eu-lírico já tascou sua resposta ao final: a pedra, a sua pedra no caminho...


"De tudo quanto foi meu passo caprichoso

na vida, restará, pois o resto se esfuma,

uma pedra que havia em meio do caminho."



A pedra no caminho...

O país que me deu tudo que lembro e sei...


Ainda existe o país que me deu tudo que lembro e sei?

Não sei, penso que não.

Tudo, me parece, esfumou-se.



"E mereço esperar mais do que os outros, eu?"



Não, não mereço esperar mais do que ninguém. Num país onde "o resto se esfuma" eu diria ser um privilegiado. Rolei minhas pedras do caminho. 


Meu legado?

Eu quis deixar algum legado... esfumou-se.

Talvez as palavras... talvez as palavras. Meus milhares de textos nos blogs. Talvez o meu legado.

William


ANDRADE, Carlos Drummond. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 3ª edição - Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.

Leituras Capitais



Refeição Cultural 

CartaCapital edição 1342


HO HO HO - OS "PRESENTES" DE DEPUTADOS E SENADORES PARA CADA UM DE NÓS 

CAPA

O Congresso Nacional fechou o ano legislativo do jeito que começou: extorquindo o governo Lula. Foram bilhões de reais de chantagem para votar a Reforma Tributária. E mesmo assim sobraram jabutis a favor de ricos e contra o povo.

"Fora do imposto seletivo, as armas de fogo e munições terão uma alíquota menor que os refrigerantes." Diz a reportagem. 

Além disso, desfiguraram o Estatuto do Desarmamento e nosso IVA será um dos maiores do mundo.

SEU PAÍS 

Na seção, li matéria sobre a "Prisão quatro estrelas" do golpista Braga Netto. 

Diz a matéria: "O general fazia a ponte entre financiadores privados, conspiradores da caserna e Bolsonaro".

PRIVATIZAÇÃO DOS CEMITÉRIOS EM SÃO PAULO 

A reportagem de Mariana Serafini "Memória insultada" nos mostra o caos gerado pelos "parças" do prefeito reeleito na capital paulista. 

Triste de ver, as famílias enlutadas é que sofrem com a decisão nada democrática que definiu os políticos da cidade. Já disse que no Brasil não há democracia e sim plutocracia. Opinião minha. 

ECONOMIA 

Agronegócio: na matéria "Briga de foice", o jornalista Carlos Drummond denuncia que "A ala mais retrógrada do setor ataca a Moratória da Soja, que fez o desmatamento despencar na Amazônia".

Os ruralistas afirmam ser ameaça à livre concorrência ter que cumprir regras do acordo que já existe há 18 anos. 

"Com a moratória, a área desmatada em cidades produtoras de soja na Amazônia caiu de 10,6 mil para 3 mil quilômetros quadrados por ano".

NOSSO MUNDO 

Vi na seção a ameaça de avanço da extrema-direita na União Europeia. França e Alemanha podem ser governadas por fascistas e neonazistas em breve.

A Arábia Saudita vai sediar a Copa do Mundo de 2034 e a Fifa tá nem aí para denúncias de trabalhos análogos à escravidão... (novidade nenhuma nisso)

Violência contra a mulher: impressiona a coragem de Gisèle Pelicot ao enfrentar publicamente seu ex-marido e dezenas de estupradores num caso que assombra a Europa e o mundo.

PLURAL 

Seção sempre agradável! 

Li sobre o novo filme "O Auto da Compadecida 2"; li excelente matéria sobre os 35 anos dos Racionais MC's e vi na hora o vídeo "Diário de um detento", é de arrepiar!!! Eles estão com uma exposição no centro de São Paulo. Deu vontade de ir.

Gostei de todos os artigos da edição. Em especial o do Arthur Chioro "Vitória para a saúde", sobre o imposto maior para os refrigerantes. 

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COMENTÁRIO FINAL 

Sei não, talvez eu deixe de ler as edições impressas da excelente revista CartaCapital neste ano de 2025. Meu papel na política acabou faz tempo...

Não sei se faço outra coisa com as horas que me restam dos dias de um mundo definhando. 

Me atualizei nos temas lidos, como digo sempre, mas não mudou nada ler ou não ler sobre a política, o país e o mundo. Tá tudo foda e com pouca perspectiva de mudança. 

Atenção: podemos mudar o presente e o futuro, somos humanos. Mas precisamos de gente que queira mudar o mundo. Vocês querem?

William 


Livro: Maiakóvski: poemas - B. Schnaiderman, Augusto e Haroldo de Campos



Refeição Cultural 

Janeiro de 2025


"COME ANANÁS

Come ananás, mastiga perdiz.

Teu dia está prestes, burguês."


A leitura do livro de poemas de Maiakóvski organizado pelos irmãos Campos e por Boris Schnaiderman me permitiu conhecer um pouco da poética do poeta revolucionário e todo o contexto de sua época, as primeiras décadas do século 20.

Neste caso, a diferença de compreensão ao ler primeiro os poemas e depois reler cada um deles após os textos críticos e de esclarecimento por parte dos organizadores da edição especial foi algo central.

O texto de Boris Schnaiderman - "Maiakóvski: Evolução e Unidade" - é fundamental para uma boa leitura dos poemas de Maiakóvski. 

O texto "Eu Mesmo - Maiakóvski" também é muito interessante para conhecermos o poeta. 

Vejam essa afirmação de Maiakóvski a respeito de seus primeiros contatos com livros na infância:

"Primeiro livro

Não sei que Passarinheira Agáfia. Se tivesse então encontrado alguns livros daqueles, deixaria de ler para sempre. Felizmente, o segundo livro foi Dom Quixote. Isto é que é livro! Fiz uma espada de madeira e armadura e aniquilava tudo ao redor." (p. 57)

Simplesmente fantástico!!!

Depois o poeta diz que leu Júlio Verne.

Foi preso três vezes durante o regime czarista, escreveu na terceira prisão:

"Tendo lido os contemporâneos, despenquei-me sobre os clássicos. Byron, Shakespeare, Tolstói. Último livro: Ana Karênina. Não cheguei ao fim. De noite me chamaram "à cidade com as suas coisas". E fiquei sem saber, até hoje, como acabou aquela história dos Karênin." (pag. 64)

Maiakóvski, eu também não terminei aquela história. Ana morre no final.

Em 1915, após ser convocado para a 1a GM:

"(...) Publiquei 'A Flauta-Vértebra' e a 'Nuvem'. A nuvem saiu muito limpinha. A censura soprou nela. Umas seis páginas só de pontos. 

     Daí data o meu ódio aos pontos. E às vírgulas também." (pag. 71)

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MAIAKÓVSKI, 50 ANOS DEPOIS - Augusto de Campos 

O livro traz no Apêndice presentes aos leitores, como esse texto de A. de Campos. 

Entendi melhor a relação do poeta com seu grande amor, Lília Brik, e as várias passagens da vida nas quais Maiakóvski abordou a questão do suicídio. 

"O poema em que discute o suicídio de Iessiênin, em 1926, terminando com as linhas 'nesta vida/morrer não é difícil/o difícil/é a vida e o seu ofício' (na esplêndida recriação de Haroldo de Campos), parecia prevenir qualquer recidiva. O poeta lutava consigo mesmo?" (p. 259)

Possíveis motivos ou questões que impactavam a vida do poeta:

"Causas possíveis do suicídio? Os Charters resumem: o tratamento dado a Maiakóvski pelos 'escritores proletários'; a desilusão política; o fracasso do seu caso com Tatiana; a recusa de Nora em casar-se com ele; a ausência de Lília; problemas físicos com sua voz. Mas a ideia do suicídio sempre o perseguira..." (p. 258)


POEMA-ANEL

Vejam que legal a explicação de Augusto de Campos sobre esse poema-anel a Lília Brik:

"Todas as homenagens que o poeta rendeu a Lília (em poemas como 'Lílitchka!', 'A Flauta-Vértebra', 'O Homem', 'Disto') se resumem numa única palavra que ele transformou no que hoje chamaríamos de poema concreto. Maiakóvski fez gravar num anel, que deu a ela de presente, as letras 'L', 'IU' e 'B' - as iniciais do nome completo de sua amada: Lília IÚrievna Brik. Em disposição circular elas formam a palavra LIUBLIÚ (amo). Também no título de um poema de 1923 as letras são grafadas separadamente (L IU B L IU), embutido na palavra 'amo' o nome de Lília." (p. 259/260)

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Me sensibilizei bastante com a biografia do poeta futurista e revolucionário Vladímir Maiakóvski. 

A incompreensão da qual foi vítima, seus últimos dias e o suicídio em 14 de abril de 1930 após concluir o poema "A Plenos Pulmões" me comoveram muito.

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POETA NÃO SEGUE REGRAS, ELE CRIA REGRAS 

"Justamente por renegar a poética tradicional, com a contagem de sílabas e de pés, exigia de si e dos poetas modernos em geral um esforço maior. 'Eu não forneço nenhuma regra para que uma pessoa se torne poeta, para que escreva versos. E, em geral, tais regras não existem. Damos o nome de poeta justamente à pessoa que cria estas regras poéticas' - escreveu em seu famoso ensaio." (p. 31, Boris Schnaiderman)

O poema que abre esta postagem - "Come Ananás" - é um exemplo de poesia de luta, nos explica Boris Schnaiderman. 

Este poema abaixo também é uma posição firme de Maiakóvski sobre sua poética revolucionária na poesia:

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O LIVRO BOM É NECESSÁRIO 

(...)

Logo

      que se eleve

                a cultura do povo!

Uma só,

             para todos.

O livro bom

                é claro

                           e necessário

a mim,

          a vocês, 

                     ao camponês 

                             e ao operário


Do poema "Incompreensível para as massas".

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COMENTÁRIO FINAL

A leitura do livro Maiakóvski: poemas foi a descoberta de um grande poeta da cultura humana. 

Os textos complementares do livro, de Boris Schnaiderman, Haroldo de Campos e Augusto de Campos, deram a mim o suporte necessário para compreender e apreciar a poética de Maiakóvski. 

Saio da leitura menos ignorante no tema. E isso é bom.

Sigamos vivendo com o desejo de aprender coisas novas todos os dias. 

William 


Bibliografia:

MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. Tradução: Boris Schnaiderman, Haroldo de Campos, Augusto de Campos. Ed. especial rev. e ampl. - São Paulo: Perspectiva, 2017.


quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Leitura de poesia (38) - O cacto, Manuel Bandeira



O cacto - Manuel Bandeira


Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:

Laocoonte constrangido pelas serpentes,

Ugolino e os filhos esfaimados.

Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...

Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.


Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.

O cacto tombou atravessado na rua.

Quebrou os beirais do casario fronteiro,

Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,

Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a cidade de iluminação e energia:


- Era belo, áspero, intratável.


                                              (Petrópolis, 1925)


Do livro Libertinagem, de 1930

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COMENTÁRIO:

Ao escolher o poema do dia, lendo Libertinagem, de Manuel Bandeira, fiquei entre "O cacto", "O major" e "Poema de finados", todos eles muito duros, na minha leitura.

(Ao procurar o livro na estante, havia pensado no poema "Andorinha" mas, francamente, não tinha nada que ver comigo. Eu não passei a vida à toa. Fiz coisas importantes coletivamente)

Acabei optando por "O cacto". Tem relação com o meu momento.

William


BANDEIRA, Manuel. Libertinagem & Estrela da manhã. 14ª impressão. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 2000.


08/01/25 - O tempo sempre presente




"O tempo

Uma ideia minha, que expresso de maneira nada científica, é que o tempo não é sucessão diacrónica, em que um acontecimento vem atrás do outro. O que acontece projecta-se numa imensa tela e tudo fica ao lado de tudo. Como se o Homem de Cro-Magnon estivesse colocado nessa tela ao lado do David de Miguel Ângelo. (...) não há passado nem futuro. O que vai ser já está a acontecer.

Entrevista de José Saramago ao diário Público, 2 de Novembro de 1991" (da página da Fundação José Saramago em 08/01/25)


DIÁRIO E REFLEXÕES

Mundo, 8 de janeiro de 2025. Quarta-feira.


"Como se o Homem de Cro-Magnon estivesse colocado nessa tela ao lado do David de Miguel Ângelo..."

Hoje faz dois anos que o Brasil sofreu uma nova tentativa de Golpe de Estado por parte de um segmento da sociedade que há séculos considera esta terra como uma colônia de exploração, um lugar odiado por essa gente lesa-pátria e lesa-humanidade. Convivemos lado a lado, nós e eles, no mesmo tempo e espaço. 

O que vai ser já está a acontecer...

Bolsonaro está livre. Todas as crias do Bolsonaro estão eleitas em alguma função pública. O vice de Bolsonaro está eleito em função pública e tira sarro de nossa cara falando que não houve tentativa de golpe. O sujeito é senador. Essa gente odiosa tem mais de 400 votos no parlamento para anistiar toda a canalhada do segmento social ao qual pertence.

O que vai ser já está a acontecer...

Trump foi condenado, é um mentiroso contumaz e vai tomar posse como presidente dos Estados Unidos. Parece querer a Groelândia, o Canadá e o Canal do Panamá. Por causa da emergência climática ele quer novas terras, é o seu "espaço vital". As big techs que dominam as mentes das massas ignaras do mundo estão com Trump.

O que vai ser já está a acontecer...

A do Jesus na goiabeira é senadora. O juiz suspeito é senador. As instituições do Estado brasileiro estão tomadas por gente como essas aí. O dono do orçamento público do país é deputado. O empresário que se vestia de papagaio está livre, leve e solto. O governador que interferiu nas eleições no dia da eleição, um mentiroso, está no mandato.

O que vai ser já está a acontecer...

Por falar em "espaço vital", aquele que os alemães sonhavam desde o século 19, Israel segue invadindo e tomando terras nas quais outros povos e civilizações ocupavam há tempos. Azar dos palestinos e demais povos árabes... o mundo assiste à ocupação com assassinatos pelas imagens ao vivo. Quem ou o que vai parar as bombas e a ocupação dos sionistas?

(Palavras não vão parar os sionistas. Palavras não pararam nem Hitler nem Mussolini. Sei não, palavras não vão parar a extrema-direita atual)

O que vai ser já está a acontecer...

E o Brasil? E o nosso governo Lula? Eu gosto muito do presidente Lula, admiro ele desde sempre. É uma referência para mim há décadas. Lula talvez seja uma das últimas figuras humanas de uma era que está se encerrando no mundo. Lula é um pacifista. Outra era e outras espécies humanoides estão surgindo nesta etapa do planeta Terra. A paz não tem nada a ver com essa nova era.

Não há passado nem futuro. O que vai ser já está a acontecer...

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" - ...............!"

Estou concluindo algumas coisas ao refletir sobre o tempo presente, esse de ontem, hoje e amanhã ("Ano Novo"). Talvez eu seja um romântico. Um romântico.

Eu sonhava consideração, sonhava tolerância, sonhava entendimento através das ideias e da palavra. A minha lista antiga de desejos e objetivos nesta minha única vida terminava com o item "paz". Um romântico...

Terminei o ontem e vivo o presente sem ter conseguido comer uma pizza com os sobrinhos, sem ter passado o Natal com os pais. Os núcleos familiares me parecem diminuir. 

Minha liderança local do PT saiu do partido. Fiz volume nas ruas sem ter protagonismo nos últimos anos. Não sei se farei mais isso. Pouca utilidade e resultado duvidoso pra todo mundo. Ser ou não útil é um incômodo permanente. 

Um amigo dos tempos de sindicalismo disse que me respeita muito, mesmo quando precisou resistir "a algumas situações colocadas". 

Nunca vou saber até onde foram as mentiras que inventaram contra mim para me cancelarem no movimento que ajudei a liderar por décadas. O mundo humano é um lugar duro. E talvez piore.

Não há passado nem futuro. O que vai ser já está a acontecer... a ideologia dos capitalistas segue vencendo a vida. Tudo tem um preço, um valor, uma utilidade. Um mundo utilitarista.

William


Post Scriptum (o dia seguinte): como registrei minha admiração pelo pacifista Lula, precisa registrar também que não concordo com tudo que Lula diz e faz. Não concordo com a afirmação do presidente Lula que disse não ter havido participação da classe trabalhadora nas revoluções de 1917 da Rússia e em 1959 em Cuba. Às vezes, Lula faz essas simplificações históricas que não ajudam em nada nossa luta contra a exploração do ser humano pelo capitalismo. A frase é tão infeliz ao insinuar que só estudantes fizeram as revoluções como seria infeliz se eu dissesse que só metalúrgicos (peões) criaram o PT e a CUT. Vida que segue...

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Leitura de poesia (37) - Velho estilo, Cecília Meireles



Velho estilo - Cecília Meireles (1942)


Corpo mártir, conheço o teu mérito obscuro:

tu soubeste ficar imóvel como o firmamento,

para deixar passar as estrelas do espírito,

ardendo no seu fogo e voando no seu vento...


Corpo mártir que és dor, que és transe, que és silêncio,

e onde, obediente, vai batendo o coração,

sei que foste esquecido, e, quando um dia te acabares,

não é por ti que os olhos chorarão.


Ninguém viu que tu foste o solo e o oceano dócil

que sustentou jardins e embalou tanta viagem,

que distribuiu o amor, e mostrou a beleza,

dando e buscando sempre a sua própria imagem. 


Um dia tu serás símbolo, ideia, sonho,

tudo o que agora apenas eu compreendo que és:

porque um dia virá que, nesta marcha do infinito,

alguém se lembrará que o mais alto dos cânticos

pousou, na terra, sobre uns pobres pés.


Do livro Vaga música (1942)

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COMENTÁRIO:

Antes de mais nada, dedico este poema à minha mãe Dirce Mendes e ao presidente Lula.

"Corpo mártir que és dor, que és transe, que és silêncio, / e onde, obediente, vai batendo o coração,"

Desejo que o corpo mártir siga firme no silêncio do bater do coração. 

Desejo resiliência até para o meu próprio corpo mártir, porque, de verdade mesmo, me importo mais com as faltas que minha ausência traria do que com os prazeres que sorveria por estar aqui presente na vida.

Sigamos descobrindo poesias.

William 


Bibliografia:

MEIRELES, Cecília. Poesia completa. Coordenação André Seffrin; apresentação: Alberto da Costa e Silva - 1° ed. - São Paulo: Global, 2017.


segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Leitura de poesia (36) - Lune de Miel, T. S. Eliot



Lune de Miel - T. S. Eliot (1920)


Viram os Países-Baixos, voltam em Terre Haute;

Mais uma noite, e chegam a Ravena bela,

Lassos entre lençóis, com seus duzentos percevejos;

O suor estival e um forte odor de cadela.

Descansam de costas, joelhos abertos,

As quatro pernas moles bem inchadas de picadas.

Ergue-se o lençol para coçar melhor. 

A menos de uma légua, Saint Apollinaire

En Classe, basílica famosa entre os que adoram

Capitéis de acanto que o vento torneia.


Vão pegar o trem das oito horas 

Prolongar suas dores de Pádua a Milão,

Onde fica a Ceia e um restaurante nada caro.

Ele pensa nas gorjetas, mede o quanto gastarão.

Terão visto a Suíça e cruzado toda a França. 

E Saint Apollinaire, rígida e ascética,

Velha fábrica por Deus abandonada, guarda ainda

Em suas pedras arruinadas a forma exata de Bizâncio.


Do livro Poemas (1920)

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COMENTÁRIO:

Vi no poema certa semelhança com a temática dos poemas anteriores que escolhi, do livro de 1917: gente da classe trabalhadora e seu mundo do prazer carnal. 

A empregada da Tia Helen no colo do lacaio após a morte da patroa.

A sensualidade da boca da mulher na mesa de um café ou restaurante e os seios em movimento, no poema "Histeria". 

O casal em lua de mel proletária, com suor, percevejos, pernas picadas inchadas e coçando, e contando os tostões pra economizar o que puder. 

Aos poucos, vou conhecendo a poética de T. S. Eliot. 

Sigamos lendo poesia. 

William 


Bibliografia:

ELIOT, T. S. Poemas. Org. tradução e posfácio Caetano W. Galindo. - 1a ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2018.


Livro: Prufrock e outras observações - T. S. Eliot



Refeição Cultural 

Janeiro de 2025


Li e reli o primeiro livro de poesias de T. S. Eliot, de 1917. São doze poemas, alguns deles longos.

Thomas Stearnes Eliot nasceu em St. Louis, Missouri, nos Estados Unidos. 

A edição que tenho das poesias de Eliot é organizada e traduzida pelo professor Caetano W. Galindo, da Universidade Federal do Paraná. 

Dele, já li a excelente edição de Ulysses, de James Joyce. Galindo é tradutor excepcional de romances e poesias. 

Eu tenho grandes lacunas culturais em relação a romances clássicos e obras poéticas. Não conhecia ainda T. S. Eliot. 

Seu primeiro livro foi de leitura difícil para mim. Vamos ver os seguintes, se me identifico mais com o poeta ganhador do Nobel de Literatura de 1948.

Sigamos em busca de novos conhecimentos. 

William 


Bibliografia:

ELIOT, T. S. Poemas. Org. tradução e posfácio Caetano W. Galindo. - 1a ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2018.


domingo, 5 de janeiro de 2025

Diário e reflexões



Refeição Cultural

Domingo, 5 de janeiro de 2025.


Hoje foi o velório e sepultamento do companheiro Cezinha. Grande ser humano, um militante histórico da classe trabalhadora. Encontrei pessoas com as quais compartilhei duas décadas de vida, pessoas queridas.

Cezinha estará sempre em nossos corações como uma daquelas pessoas imprescindíveis nas lutas por um mundo melhor e mais justo para os trabalhadores. 

Cada amigo e companheiro de lutas do Cezinha acabou contando algum "causo" que viveu com ele nas atividades sindicais, pois sua presença sempre foi muito contagiante em qualquer ambiente onde ele se encontrava.

Minha lembrança com o Cezinha é daquelas boas de se recordar. Estávamos na 1ª caravana da classe trabalhadora a Brasília em 2004 para reivindicarmos uma política de valorização e aumento real do salário mínimo. Choveu muito e estávamos ensopados.

Cezinha honrou essa bandeira!

Nossa história foi a seguinte: estávamos com muitos companheiros idosos, os velhinhos da companheira Glória Abdo, como chamávamos carinhosamente as caravanas organizadas pela Glorinha.

Entramos na Catedral Metropolitana de Brasília - aquela do Oscar Niemeyer - para que o pessoal pudesse ir ao banheiro. 

De repente, o padre responsável barrou o pessoal e de forma arrogante informou que em dia de atividades populares na Capital do país, ele mandava fechar os banheiros.

Cezinha e eu começamos a discutir com o padre e tentar um acordo com ele para deixar pelos menos os mais idosos utilizarem o banheiro.

O padre bateu o pé e disse que ninguém utilizaria os banheiros naquele dia. Nossos companheiros ficaram revoltados.

Cezinha e eu usamos de todos os argumentos possíveis, até relembrando os evangelhos e as palavras de Cristo... o homem era de coração empedernido, um burocrata da fé.

Alguns companheiros idosos revoltados ameaçaram até mijar nas paredes já que o padre não permitia usar os banheiros naquele dia.

Enfim, o evento todo virou um "causo" para ser contado depois.

A companheirada teve que achar outro local para usar os banheiros. A burocracia é assim, burocrata algum se preocupa com o povo, em primeiro lugar vêm sempre as coisas mundanas, o mundo material.

Grande Cezinha! Estará sempre em nossas lembranças, meu amigo! Foi muito bonito ver as bandeiras da CUT, do PT e do Sindicato junto ao militante histórico.

Nossa solidariedade aos seus filhos e familiares. Companheiro Cezinha, presente!

William Mendes


Leitura de poesia (35) - Desacordo, Marili Santos



DESACORDO - Marili Santos

 

À revelia

 

dessa nova ortografia

 

para, já disse

 

pára porque eu quero

 

ver o vôo das palavras,

 

com trema e

 

que tremam os gramáticos!

 

Pelo menos largaram

 

o circunflexo da sequência;

 

que faço com as saudades do

 

éi- ói, terrível epopeia;

 

À queima-roupa arrancaram

 

do pé de moleque e do olho da sogra

 

o tal do hífen e a exceção ficou

 

ao deus-dará.


Do blog Valsa Literária (valsaliteraria.blogspot.com)

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COMENTÁRIO:

Completei a leitura das primeiras cem publicações do blog da professora e escritora Marili Santos. Como já comentei em textos anteriores, a autora desenvolve suas criações literárias em diversas formas discursivas.

Gostei bastante dos contos "A espera da personagem" e "A face azul". Os temas foram bem desenvolvidos e a contista consegue manter a curiosidade das leitoras e leitores sobre o que vem no episódio seguinte. Marili publicou na forma de folhetim, capítulo por capítulo.

Lembro aqui aos leitores e leitoras do blog Refeitório Cultural que estou lendo as criações literárias da poeta, cronista e contista Marili Santos desde o início da página dela em 2011.

Me identifiquei com o tema do poema "Desacordo" porque também tive minhas discordâncias com as reformas impostas pelo Novo Acordo Ortográfico. Escrevi sobre isso algumas vezes no blog.

"o tal do hífen e a exceção ficou / ao deus-dará."

Além de muita coisa ter ficado "ao deus-dará" na língua portuguesa, ainda tenho outras teorias sobre a linguagem humana e as consequências das novas tecnologias do século XXI: avalio que a humanidade vai perder parte considerável de sua capacidade de escrever e manter a linguagem escrita.

Enfim, sigamos lendo poesia e outras formas de linguagem literária e de cultura.

William


sábado, 4 de janeiro de 2025

Leitura de poesia (34) - A extraordinária aventura vivida por Vladímir Maiakóvski no verão na Datcha



A extraordinária aventura vivida por Vladímir Maiakóvski no verão na Datcha


(Púchkino, monte Akula, datcha de Rumiántzev, a 27 verstas pela estrada de ferro de Iaroslávi)


A tarde ardia com cem sóis.

O verão rolava em julho.

O calor se enrolava

no ar e nos lençóis 

da datcha onde eu estava.

Na colina de Púchkino, corcunda,

o monte Akula,

e ao pé do monte

a aldeia enruga

a casca dos telhados.

E atrás da aldeia, 

um buraco

e no buraco, todo dia,

o mesmo ato:

o sol descia

lento e exato.

E de manhã 

outra vez

por toda parte

lá estava o sol

escarlate.

Dia após dia 

isto

começou a irritar-me

terrivelmente. 

Um dia me enfureço a tal ponto

que, de pavor, tudo empalidece.

E grito ao sol, de pronto:

"Desce!

Chega de vadiar nessa fornalha!"

E grito ao sol:

"Parasita!

Você, aí, a flanar pelos ares,

e eu, aqui, cheio de tinta,

com a cara nos cartazes!"

E grito ao sol:

"Espere!

Ouça, topete de ouro,

e se em lugar

desse ocaso

de paxá

você baixar em casa

para um chá?"

Que mosca me mordeu!

É o meu fim!

Para mim

sem perder tempo 

o sol

alargando os raios-passos

avança pelo campo.

Não quero mostrar medo.

Recuo para o quarto.

Seus olhos brilham no jardim.

Avançam mais.

Pelas janelas,

pelas portas,

pelas frestas,

a massa

solar vem abaixo 

e invade a minha casa.

Recobrando o fôlego, 

me diz o sol com voz de baixo:

"Pela primeira vez recolho o fogo,

desde que o mundo foi criado.

Você me chamou?

Apanhe o chá, 

pegue a compota, poeta!

Lágrimas na ponta dos olhos

- o calor me fazia desvairar -

eu lhe mostro

o samovar:

"Pois bem,

sente-se, astro!"

Quem me mandou berrar ao sol

insolências sem conta?

Contrafeito 

me sento numa ponta

do banco e espero a conta

com um frio no peito.

Mas uma estranha claridade

fluía sobre o quarto

e esquecendo os cuidados

começo 

pouco a pouco 

a palestrar com o astro.

Falo

disso e daquilo, 

como me cansa a Rosta*,

etc.

E o sol:

"Está certo, 

mas não se desgoste,

não pinte as coisas tão pretas.

E eu? Você pensa

que brilhar

é fácil?

Prove, pra ver!

Mas quando se começa

é preciso prosseguir 

e a gente vai e brilha pra valer!"

Conversamos até a noite 

ou até o que, antes, eram trevas.

Como falar, ali, de sombras?

Ficamos íntimos, 

os dois.

Logo,

com desassombro,

estou batendo no seu ombro.

E o sol, por fim:

"Somos amigos 

pra sempre, eu de você, 

você de mim.

Vamos, poeta, 

cantar,

luzir

no lixo cinza do universo.

Eu verterei o meu sol

e você o seu

com seus versos."

O muro das sombras,

prisão das trevas, 

desaba sob o obus

dos nossos sóis de duas bocas.

Confusão de poesia e luz,

chamas por toda parte. 

Se o sol se cansa

e a noite lenta

quer ir pra cama,

marmota sonolenta,

eu, de repente, 

inflamo a minha flama

e o dia fulge novamente. 

Brilhar pra sempre,

brilhar como um farol,

brilhar com brilho eterno,

gente é pra brilhar, 

que tudo o mais vá pro inferno,

este é o meu slogan

e o do sol.


* Agência telegráfica onde o poeta trabalhou fazendo cartazes. 

Tradução: Augusto de Campos

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COMENTÁRIO:

Imagem sensacional! O poeta recebe a visita do sol após uma provocação. 

O sol chega de boa, diz que o poeta também é um sol e que eles são amigos para sempre.

Metáfora muito legal!

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"gente é pra brilhar,"

Sigamos lendo poesia, mesmo sendo em dias tristes.

Dedico este poema ao companheiro Cezinha, que agora é uma estrelinha a brilhar no céu. 

William 


Bibliografia:

MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. Tradução: Boris Schnaiderman, Haroldo de Campos, Augusto de Campos. Ed. especial rev. e ampl. - São Paulo: Perspectiva, 2017.


sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Leitura de poesia (33) - Clareira, Adélia Prado



Clareira - Adélia Prado


Seria tão bom, como já foi,

as comadres se visitarem nos domingos.

Os compadres fiquem na sala, cordiosos,

pitando e rapando a goela. Os meninos,

farejando e mijando com os cachorros.

Houve esta vida ou inventei?

Eu gosto de metafísica, só pra depois

pegar meu bastidor e bordar ponto de cruz,

falar as falas certas: a de Lurdes casou,

a das Dores se forma, a vaca fez, aconteceu,

as santas missões vêm aí, vigiai e orai

que a vida é breve.

Agora que o destino do mundo pende do meu palpite,

quero um casal de compadres, molécula de sanidade,

pra eu sobreviver.


Do livro Bagagem (1976)

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COMENTÁRIO:

O mundo humano é velho, apesar de ser tão recente na natureza de bilhões de anos do mundo.

Estava pensando nas ideias que movem o mundo dos humanos... só metafísica!

Não à toa todo mundo se baseia nela no viver. Ou, querendo ou não, é afetado por ela no viver.

Antes de ler a poesia de Adélia Prado, que gosta de metafísica, estava lendo a versão do Hamas sobre o que se passa na Palestina... e lá estão os motivos de sempre, a metafísica. 

Eu sei o que sentem as pessoas que creem nas metafísicas... cristãos, judeus, muçulmanos. Vivi décadas sob as abstrações e regras da metafísica. 

Hoje, independente do ódio todo que se sobressai das metafísicas, só queria mesmo uma clareira "pra eu sobreviver".

William 


Bibliografia:

PRADO, Adélia. Bagagem [recurso eletrônico]. 1. ed. - Rio de Janeiro: Record, 2021.

 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Livro: Flores das "Flores do mal" de Baudelaire - Guilherme de Almeida



Refeição Cultural 

Janeiro de 2025


"Cuidado ó minha dor, não sejas tão hostil.

Reclamavas a Tarde; ei-la que vem descendo:

Cobre a cidade toda uma treva sutil, 

A uns trazendo a inquietude, a outros a paz trazendo."

(Do poema "Recolhimento")


Finalizei a leitura do livro organizado por Guilherme de Almeida com a "recriação" ou "transmutação" de 21 poemas de Baudelaire para a nossa língua pátria. 

Almeida diz não gostar das expressões "tradução" ou "versão". A introdução dele aos 21 poemas foi escrita em 1943.

A obra clássica de Baudelaire, Flores do mal, é de 1857.


Gostei muito da série de poemas "Spleen" escolhida por Guilherme de Almeida. Ando numa fase meio spleen. O autor explica:

"Aí, Baudelaire, como num intencional descaso - a dar mesmo ideia de 'spleen', isto é, de indiferença e desânimo..." (Almeida)

Ele explica no livro, através de notas, a recriação de poema a poema; muito interessante o trabalho dele. 

"A obra poética de Baudelaire se caracteriza pela inteligência crítica do destino humano e do seu próprio destino, pelo sentimento agudo da vida moderna, da vida da Paris do seu tempo." (Manuel Bandeira)

A edição que tenho ainda presenteia o leitor com uma Apresentação de ninguém menos que Manuel Bandeira. Chique, né?

Só não consegui ler os poemas extras do Apêndice do livro porque estão em francês. Não leio francês ainda.

É isso. Estou hoje um pouquinho menos ignorante que ontem.

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TREVAS SOBRE AS CIDADES

Sigamos aprendendo e estudando as culturas e criações do mundo.

"Cobre a cidade toda uma treva sutil,"

A estrofe que abre o texto posso dedicá-la à trágica realidade brasileira ao me lembrar das posses tenebrosas dos prefeitos ladrões, fascistas e asquerosos que vão destruir as cidades nos próximos quatro anos...

Não há democracia no Brasil. Sobrevivemos sob uma ditadura da plutocracia (capitalismo) dos orçamentos secretos e dinheiros do crime financiando os políticos do sistema. 

William 


Post Scriptum: clicar aqui para ler as outras postagens referentes a Baudelaire.


Bibliografia:

ALMEIDA, Guilherme de. Flores das "Flores do Mal" de Baudelaire. Introdução de Manuel Bandeira. Carvões de Quirino. Ilustrações de Rodin. Clássicos de Bolso, Ediouro/20349.