A INGAIA CIÊNCIA - DRUMMOND
A madureza, essa terrível prenda
que alguém nos dá, rapando-nos, com ela,
todo sabor gratuito de oferenda
sob a glacialidade de uma estela,
a madureza vê, posto que a venda
interrompa a surpresa da janela,
o círculo vazio, onde se estenda,
e que o mundo converte numa cela.
A madureza sabe o preço exato
dos amores, dos ócios, dos quebrantos,
e nada pode contra a sua ciência
e nem contra si mesma. O agudo olfato,
o agudo olhar, a mão, livre de encantos,
se destroem no sonho da existência.
Do livro Claro enigma, de 1951.
---
COMENTÁRIO:
Ao pesquisar o sentido da palavra "ingaia" apurei que ela é criação poética de Drummond.
Como gaia seria uma referência à "mãe-terra" ou á vida, ou ainda à existência da vida etc, então poderia interpretar o título do poema, mais ou menos, como a ciência por trás da experiência do viver, considerando que o poeta vai abordar questões relativas à perda da inocência com a "madureza" do envelhecimento.
Drummond poderia também estar fazendo alguma referência à obra de Nietzsche "A gaia ciência", de 1882.
Interpretando um pouco as imagens do poema, diria que o eu-lírico nos transmite sua ideia a respeito do peso da experiência que se adquire com a idade, diminuindo na pessoa madura, com mais "ciência", os encantos e esperanças com as coisas simples que a natureza sob os céus ("glacialidade de uma estela") nos disponibiliza gratuitamente como os amores, os ócios e os quebrantos do experimentar viver.
Caramba, mais ou menos, hoje estou assim como o eu-lírico descreve a madureza...
Sigamos, pois a cada amanhecer, o mundo e a vida nos concedem oportunidades e novidades - "todo sabor gratuito de oferenda" - para esperançar até com as belezas da própria natureza.
William
ANDRADE, Carlos Drummond. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 3ª edição - Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.
Nenhum comentário:
Postar um comentário