quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Leitura de poesia (39) - Legado, Carlos Drummond de Andrade



Legado - Carlos Drummond de Andrade


Que lembrança darei ao país que me deu

tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?

Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu

minha incerta medalha, e a meu nome se ri.


E mereço esperar mais do que os outros, eu?

Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.

Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,

a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.


Não deixarei de mim nenhum canto radioso,

uma voz matinal palpitando na bruma

e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.


De tudo quanto foi meu passo caprichoso

na vida, restará, pois o resto se esfuma,

uma pedra que havia em meio do caminho.


Do livro Claro Enigma, 1951.

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COMENTÁRIO:

Depois de conhecer os seis primeiros livros de meu poeta preferido, Drummond, iniciei a leitura do sétimo livro dele: Claro Enigma (1951).


"Que lembrança darei ao país que me deu

tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?"


Essa pergunta inicial me pegou logo de cara. E o eu-lírico já tascou sua resposta ao final: a pedra, a sua pedra no caminho...


"De tudo quanto foi meu passo caprichoso

na vida, restará, pois o resto se esfuma,

uma pedra que havia em meio do caminho."



A pedra no caminho...

O país que me deu tudo que lembro e sei...


Ainda existe o país que me deu tudo que lembro e sei?

Não sei, penso que não.

Tudo, me parece, esfumou-se.



"E mereço esperar mais do que os outros, eu?"



Não, não mereço esperar mais do que ninguém. Num país onde "o resto se esfuma" eu diria ser um privilegiado. Rolei minhas pedras do caminho. 


Meu legado?

Eu quis deixar algum legado... esfumou-se.

Talvez as palavras... talvez as palavras. Meus milhares de textos nos blogs. Talvez o meu legado.

William


ANDRADE, Carlos Drummond. Nova reunião: 23 livros de poesia - volume 1. 3ª edição - Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.

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