quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Leitura de poesia (25) - Lembrança de morrer, Álvares de Azevedo



Lembrança de morrer - Álvares de Azevedo 

          No more! o never more!

                       Shelley


Quando em meu peito rebentar-se a fibra

Que o espírito enlaça à dor vivente,

Não derramem por mim nem uma lágrima 

              Em pálpebra demente.


E nem desfolhem na matéria impura

A flor do vale que adormece ao vento:

Não quero que uma nota de alegria 

Se cale por meu triste pensamento. 


Eu deixo a vida como deixa o tédio

Do deserto, o poento caminheiro 

- Como as horas de um longo pesadelo 

Que se desfaz ao dobre de um sineiro;


Com o desterro de minh'alma errante,

Onde fogo isensato a consumia:

Só levo uma saudade - é desses tempos

Que amorosa ilusão embelecia.


Só levo uma saudade - e dessas sombras 

Que eu sentia velar nas noites minhas...

De ti, ó minha mãe! pobre coitada

Que por minha tristeza te definhas!


De meu pai... de meus únicos amigos,

Poucos - bem poucos - e que não zombavam

Quando, em noites de febre endoidecido,

Minhas pálidas crenças duvidavam.


Se uma lágrima as pálpebras me inunda,

Se um suspiro nos seios treme ainda,

É pela virgem que sonhei... que nunca 

Aos lábios me encostou a face linda!


Só tu à mocidade sonhadora

Do pálido poeta deste flores...

Se viveu, foi por ti! e de esperança

De na vida gozar de teus amores.


Beijarei a verdade santa e nua,

Verei cristalizar-se o sonho amigo...

Ó minha virgem dos errantes sonhos,

Filha do céu, eu vou amar contigo!


Descansem o meu leito solitário 

Na floresta dos homens esquecida,

À sombra de uma cruz, e escrevam nela:

- Foi poeta - sonhou - e amou na vida. -


Sombras do vale, noites da montanha 

Que minh'alma cantou e amava tanto,

Protegei o meu corpo abandonado,

E no silêncio derramai-lhe um canto!


Mas quando preludia ave d'aurora

E quando à meia-noite o céu repousa,

Arvoredos do bosque, abri os ramos...

Deixai a lua pratear-me a lousa!

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COMENTÁRIO:

Alguns poetas, poemas e poéticas vão melhor nos meus entendimentos. Outros são bem mais desafiadores pra mim.

Li quase a primeira parte inteira da "Lira dos Vinte Anos" para escolher esse poema.

As primeiras duas estrofes posso declamá-las por mim mesmo, pois nada quero que digam depois que não mais existir.

Minha mãe foi também confidente e cúmplice décadas atrás, quando perdido estava no começo da vida adulta. À época, a morte se lembrava de mim o tempo todo. Passou.

Enfim, eis aí o poema do dia.

William Mendes


Bibliografia:

AZEVEDO, Álvares. Lira dos vinte anos. Coleção Vestibular, O Estado de São Paulo. Klick Editora: São Paulo, 1999.


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