SONETO 26 LÍRICO - Glauco Mattoso
Dizem que o amor é cego e a carne é fraca,
mas só amei alguém quando enxergava.
Hoje a cegueira queima como lava
e o coração resiste a qualquer faca.
Ontem tesão, agora só ressaca.
Foi-se a paixão que fez minh'alma escrava.
Se inda me queixo dessa zica brava,
sou caçoado e passo por babaca.
Nem tudo está perdido: resta o cheiro
que invade-me as narinas quando passo
na porta do vizinho sapateiro.
Vá lá: o papel que faço é de palhaço.
O olfato é meu recurso derradeiro
e o cheiro do fetiche o único laço.
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COMENTÁRIO:
A escolha do autor de hoje foi aleatória. A do poema foi difícil, fiquei entre quatro sonetos que gostei e um poema do personagem Pedro o podre.
Glauco Mattoso veio até mim da mesma forma que os poemas pousam no livro de poesia como pássaros, imagem inesquecível que conheci dias atrás com Mario Quintana ("O poema").
Olhei na estante de casa e vi aquele livro exótico, uma capa pintada à mão pelos integrantes do coletivo Dulcinéia Catadora, capa feita com papelão comprado de cooperativas de materiais recicláveis.
Li alguns poemas de Mattoso e gostei muito.
Aí fui ler a respeito dele.
O poeta é paulistano, tem 73 anos, ficou totalmente cego desde 1995, em decorrência de uma doença nos olhos - o glaucoma -, daí o nome "Glauco", e o nome "Mattoso", completando seu nome artístico, é em referência a Gregório de Matos (1636/1696), o poeta barroco conhecido por "Boca do Inferno", de quem Mattoso se considera herdeiro na sátira política e na crítica de costumes.
Pesquisei sobre o próprio poeta, sobre Gregório de Matos e sobre a doença que o cegou.
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OS PÉS
O poeta passou a ter um foco temático nos pés após a perda da visão, é um pouco do que pude apurar com as informações sobre Glauco Mattoso. Os sonetos que gostei no pequeno livro artístico que tenho em casa abordam essa temática.
O poema "Soneto 73 Obsessivo", também tem os pés como tema.
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"O gosto pelo pé ficou mais forte
depois que as trevas foram preenchendo
o fundo do meu olho, neste horrendo
martírio, mais agônico que a morte."
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O poeta também ressalta o olfato, mais aguçado e fundamental para as pessoas que não têm o sentido da visão.
Mattoso tem poemas bem sarcásticos, que tiram sarro de tudo.
Gostei da poética de Glauco Mattoso.
William Mendes
MATTOSO, Glauco. Delírios líricos. Capa pintada à mão pelos integrantes do coletivo Dulcinéia Catadora, capa feita com papelão comprado de cooperativas de materiais recicláveis. Dulcinéia Catadora, 2007.
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