domingo, 27 de novembro de 2011

Planeta dos macacos - 1968


Foto de William Mendes

Refeição Cultural

PLANETA DOS MACACOS

Planeta Terra: o planeta dos homens feras...


Quando assisti ao filme de Tim Burton, remake em 2001 do filme original de 1968, fiquei interessado em conhecer o primeiro filme com Charlton Heston, Roddy McDowall e Kim Hunter, dirigido por Franklin J. Schaffner.

A ideia do filme é genial e atemporal. Queria conhecer mais a respeito dessa história.

Acabei comprando um DVD achando que era o filme de 1968 e depois que prestei atenção vi que era uma continuação. Na verdade, era o quinto filme da série – “A batalha do Planeta dos Macacos”. Só aí, descobri que o filme teve continuações.

Depois, acabei ganhando em 2010 uma caixa especial com os seis filmes: o original de 1968 e as quatro continuações e o remake de 2001.

Ao sair o filme “Planeta dos Macacos – a origem”, em 2011, resolvi assistir a todos de minha caixa para em seguida ver o reboot atual.

PLANETA DOS MACACOS 1968 (Atenção: revela-se partes do filme)


Cenas do filme

Antes do Capitão Taylor “hibernar” junto a sua tripulação para aterrissar na Terra, temos alguns dados sobre a viagem: eles estavam há seis meses no espaço e saíram do Cabo Kennedy – Flórida.

DATA NA ESPAÇONAVE: 14/7/1972
DATA NA TERRA: 23/3/2673

Pelos teóricos, eles passaram seis meses no espaço e viajaram em velocidade próxima à da luz e o tempo no Planeta Terra deve ter avançado perto de 700 anos.

A grande pergunta filosófica do Capitão Taylor aos humanos da geração futura é: será que o homem ainda faz guerras com seus irmãos e deixa as crianças do vizinho na miséria e passando fome?

A cena inicial da descida da espaçonave no Lago Powell é um colírio para os olhos.


Cenas do filme

Antes de os tripulantes abandonarem a espaçonave que caíra no lago, o painel nos mostra a DATA NA TERRA: 25/11/3978.

O capitão acha que eles estão em um planeta situado em uma estrela da Constelação de Orion, a uns 300 anos-luz da Terra. Poderia ser Bellatrix.

Segundo os dados, eles estão com uma diferença de cerca de 2000 anos em relação ao tempo no planeta Terra.


Cenas do filme

Nas discussões provocativas entre o Capitão Taylor e um de seus subordinados sobre os motivos que levaram cada um deles à viagem, Taylor diz acreditar que deveria haver algo melhor que o ser humano no universo.

Os símios do planeta são gorilas, chimpanzés e babuínos. Os gorilas são os soldados, os chimpanzés são o povo de modo geral e os babuínos são os sábios e senhores da lei.

DIÁLOGOS


Cenas do filme

“Fazer cirurgias experimentais com os cérebros desses humanos é uma coisa, mas fazer estudos sobre o seu comportamento é outra coisa. Sugerir que possamos aprender algo sobre a natureza do símio a partir do estudo do homem é uma completa bobagem” (Dr. Zaius)


Cenas do filme

“Além disso, o homem é uma praga, primeiro acaba com seus próprios suprimentos na floresta e depois atacam as nossas colheitas... quanto mais cedo forem exterminados, melhor, é uma simples questão de sobrevivência simiana” (Dr. Zaius)


Cenas do filme

(O Smith de “Matrix” diria algo semelhante lá no futuro, sobre sermos uma praga, um vírus)

“Cornelius desenvolveu uma teoria brilhante: o macaco teria se desenvolvido de uma antiga espécie primata que poderia ser o homem” (Dra. Zira falando a Taylor). Os sábios não querem ver, ouvir e nem falar a respeito disso.


Cenas do filme

Taylor foge ao saber que seria castrado a mando do Dr. Zaius, e após dar um "baile" em dezenas de macacos ele é capturado, E DE REPENTE DIZ:

“Tire suas patas fétidas de cima de mim, seu macaco sujo!” (no exato momento a Dra. Zira havia chegado)

Em uma sessão de julgamento, o macaco promotor expõe o caso de jovens – Dr. Cornelius e Dra. Zira - que se atrevem a desobedecer a doutrina e a tradição dos macacos e lançam teorias de evolução de macacos a partir de humanos.

Ao final do processo Dr. Cornelius e Dra. Zira são acusados de injúria grave e heresia científica.

CIÊNCIA E RELIGIÃO SIMIANA


Cenas do filme

Em uma discussão entre Taylor e Dr. Zaius em frente à caverna onde há artefatos da pré-história do planeta, Taylor pergunta há quanto tempo foram feitas as escrituras sagradas, ao que o Dr. Zaius responde: há 1200 anos.

Taylor pede que o Dr. Zaius retire a acusação de heresia sobre Cornelius se os artefatos forem mais antigos que isso.

O debate entre Cornelius e Dr. Zaius e Taylor é muito bom. Após Cornelius mostrar uma boneca humana, o Dr. Babuíno diz que o local era habitado por macacos que tinham humanos de estimação. Já Taylor mostra que não, que o local era de um humano que era idoso, tinha marca-passo e usava dentadura.

A discussão termina quando a boneca chora na mão de Nova e Taylor pergunta ao Dr. Zaius se os macacos poderiam criar uma boneca humana que chorava.

Dr. Zaius ainda deixa Taylor sem resposta quando lhe pergunta: se vocês eram superiores e nos deixaram todo o legado, por que foram dizimados? Taylor só faz suposições de alguma praga, algum meteorito etc.

Quando Taylor denuncia que o Dr. Zaius sabia o tempo todo sobre o homem, este mostra as escrituras que denunciam que o homem é perigoso, é a única criatura de Deus que mata por esporte, cobiça e avareza. Ele matará o seu irmão para possuir a sua terra. Nunca o deixe proliferar, pois ele é o presságio da morte.

(- Que verdade das escrituras simianas, heim?)

No último debate entre Taylor e Dr. Zaius, este diz que o homem destrói a tudo. A própria zona proibida já fora um paraíso muitos séculos antes. Mas Taylor diz que isto não explica como o macaco evoluiu do homem.

Dr. Zaius o alerta antes de ir: não procure pela resposta, você pode não gostar...

Cenas do filme

QUESTÕES QUE FICAM:

A temática sobre o ser humano ser "racional" (ou não) é atemporal e se mostra cada vez mais instigante.

Parece-me que passados mais de quarenta anos do lançamento do filme, o homem segue destruindo o planeta Terra.

O que estará dominando o que sobrar deste planeta daqui a séculos?


William

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Sobre erros de grafia - Sírio Possenti

Imagem divulgação.
Quase todos acham que cometer erros de grafia é o fim do mundo, um sinal de ignorância. Mas não são erros mais graves do que outros (os contábeis, principalmente). Além disso, em geral, esses erros são excelentes pistas para aprender sobre a língua e sobre o sistema de escrita.

Primeiro, o sistema de escrita: a chamada escrita alfabética não é nem fonética (um símbolo para cada som) nem fonológica (um símbolo para cada fonema). Em uma escrita fonética, “tio” teria tantas grafias quantas fossem as pronúncias ([t] ou [tch] no começo, [o] ou [u] no final, fora os sons intermediários). Uma escrita fonológica implicaria que escrevêssemos /caza/ (ou /kaza/) em vez de “casa” e /sinema/ em vez de “cinema”.


A escrita fonética de “final” seria [final] ou [finau] (ou [finaw]), conforme a pronúncia, mas a fonêmica seria sempre /final/ (como prova o “l” em “finalidade”).


E como escreveríamos “peixe”? Foneticamente, [pexe] ou [peixe] (ou [peyxe] – estou sem um bom símbolo para o som que escrevemos com “x” ou “ch”). Fonemicamente? Hoje, /peixe/. No futuro, quem sabe seja /pexe/.


Crianças aprendendo a escrever, adultos com pouca escolaridade ou prática e cronistas anteriores às leis ortográficas fazem, todos, o mesmo tipo de escolhas. Digamos, para simplificar, que cometem os mesmos tipos de “erros”. Empregam grafias diversas e juntam palavras que os mais experientes (ou os mais recentes) separam.




Analistas apressados podem chegar a diagnósticos severos (por exemplo, de dislexia) em relação a esses escreventes. Mas, de fato, trata-se apenas de: a) instabilidade do sistema ortográfico (casa / caza; borracha / borraxa); b) de grafias baseadas na pronúncia, que é variável (menino / mininu), em hipercorreção (se “peixe”, por que não “badeija”; se “menino”, porque não “menistro”; se “final”, porque não “degral”?). Para um aprendiz, convenhamos, não é nenhum desastre.

Um aluno que comete estes erros, evidentemente comete erros. Afinal, a grafia correta está definida em lei! Mas seus erros não são devidos à falta de atenção ou a algum tipo de déficit cognitivo. Podem, ao contrário, ser resultado de hipóteses inteligentes, embora erradas, e de generalizações que não deveriam fazer, mas que, na fase de aprendizagem em que estão, são comuns e demonstram independência intelectual e inventividade.


Em um texto famoso de Mattoso Câmara sobre o assunto, uma análise chama particular atenção. O linguista encontrou diversas grafias para a palavra “silvou” (no ditado de “a serpente silvou”). Elas são devidas especialmente à instabilidade do “l” em sua relação com “u” em final de sílaba e de “u” em sua relação com “o” em posição átona: silvou, silvol, siuvou, siovol etc. A pronúncia é sempre a mesma, é importante observar.


O caso mais interessante é silivou. Diz Mattoso Câmara que o acréscimo de “i” depois de “l” é uma manobra do aluno (de 12 anos !!!) para manter o “l”. Sua explicação: como já que o “l” flutua em final de sílaba (é pronunciado [l] ou [u]), mas é fixo no começo, ao colocar uma vogal depois dele, o aluno garante que o “l” esteja em começo de silaba e, assim, não se vocalize (não se “confunda” com u).


Que diferença poder ler uma análise de quem conhece o assunto!!



Fonte: Carta na Escola

domingo, 20 de novembro de 2011

A Náusea – Perceber-se a existir (ou só Existir)


Jean-Paul Sartre

A NÁUSEA – PERCEBER-SE A EXISTIR (OU SÓ EXISTIR)

Diálogos entre ideias de Sartre e Fernando Pessoa.
Com a palavra: Antoine Roquentin e Alberto Caieiro

Para tentar entender a obra de Sartre e sua filosofia existencialista, fico buscando relações pertinentes na literatura e nos autores que já conheço para possíveis intertextualidades.
A partir da ideia de Existencialismo e do Existir lembrei-me de Alberto Caieiro e do “Guardador de Rebanhos”.
Creio ser interessante, neste momento, simplesmente deixar os dois falarem entre si e ficar observando o debate de ideias e, vez por outra, expressar algum comentário.

ANTOINE ROQUENTIN (os sublinhados são meus)

“Esse momento foi extraordinário. Estava ali, imóvel e gelado, mergulhado num êxtase horrível. Mas, no próprio âmago desse êxtase, algo de novo acabava de surgir; eu compreendia a Náusea, possuía-a. A bem dizer, não me formulava minhas descobertas. Mas creio que agora me seria fácil colocá-las em palavras. O essencial é a contingência. O que quero dizer é que, por definição, a existência não é necessidade. Existir é simplesmente estar presente; os entes aparecem, deixam que os encontremos, mas nunca podemos deduzi-los. Creio que há pessoas que compreendem isso. Só que tentaram superar essa contingência inventando um ser necessário e causa de si próprio. Ora, nenhum ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é uma ilusão, uma aparência que se pode dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito: este jardim, esta cidade e eu mesmo. Quando ocorre que nos apercebamos disso, sentimos o estômago embrulhado, e tudo se põe a flutuar como outra noite no Rendez-vous des Cheminots: é isso a Náusea (...)”

Fernando Pessoa

ALBERTO CAIEIRO (GUARDADOR DE REBANHOS 1911-1912)
V
Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol

E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos

De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

“Constituição íntima das cousas”…
“Sentido íntimo do Universo”…
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados

      [das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.


E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

COMENTÁRIO:
Eu já sou fã de Caieiro há um bom tempo. A maravilha do estudo e da leitura é poder usar da intertextualidade e buscar fazer relações de ideias e concepções de grandes pensadores.
É interessante também a ideia do poeta fingidor. As palavras aqui citadas de Caieiro e de Roquentin não são expressões de sujeitos de carne e osso.
Mas AS PALAVRAS SÃO REAIS, EXISTEM, E COOPTAM PESSOAS QUE SE IDENTIFICAM COM ELAS. Então existem! Além dos volumes literários de Sartre e Pessoa.
Existem em mim, em meu texto que incorpora as palavras e ideias deles – homens e personagens. Estão em mim.

Bibliografia:
PESSOA, Fernando. Poemas Escolhidos. Da série “Ler é aprender” de O Estado de S. Paulo, Editora Klick, 1997.
SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. Círculo do Livro, 1988-89.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A Náusea (1938) - Jean-Paul Sartre


Jean-Paul Sartre
"
Domingo

(...) Torno a caminhar. O vento me traz o grito de uma sirene. Estou inteiramente sozinho, mas caminho como uma tropa que irrompe numa cidade. Neste momento, há navios ressonantes de música sobre o mar; luzes se acendem em todas as cidades da Europa; comunistas e nazistas trocam tiros nas ruas de Berlim; desempregados perambulam pelas ruas de Nova York; num quarto aquecido, diante de suas penteadeiras, mulheres colocam rímel nos cílios. E eu estou aqui, nessa rua deserta, e cada tiro disparado de uma janela de Neukölln, cada soluço sangrento dos feridos que são transportados, cada gesto preciso e diminuto das mulheres que se enfeitam corresponde a cada um de meus passos, a cada batida de meu coração (...)

Segunda-feira

Como pude escrever ontem esta frase absurda e pomposa: 'Estava inteiramente sozinho mas caminhava como uma tropa que irrompe numa cidade'?

Não preciso fazer frases. Escrevo para esclarecer certas circunstâncias. Há que ter cuidado com a literatura. É preciso escrever ao correr da pena; sem escolher as palavras.

No fundo o que me desagrada é ter sido sublime ontem à noite (...)"


COMENTÁRIO:

Gostei deste trecho do diário de Antoine Roquentin - o personagem da obra.

Faz alguns anos que li outra obra de Sartre: A IDADE DA RAZÃO, de 1945, primeiro livro da trilogia de "Os caminhos da liberdade".

O pouco que me lembro da obra é sobre o personagem ficar o tempo inteiro dizendo que tudo que fazia era em nome de sua liberdade. O cara fazia até o que não queria, e dizia que era em nome de sua liberdade. Na época fiquei incomodado com aquilo.

Na minha opinião, os romances de Sartre não são fáceis de se ler. São chatos. Leitura mastigada. Mas vou seguir lendo A NÁUSEA e lendo um pouco a respeito do filósofo e pensador Sartre. Aos poucos, acabo sendo menos ignorante no tema.


Bibliografia:

SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. Círculo do Livro. Tradução de Rita Braga. (creio que a edição é dos anos 80).


Post Scriptum (31/1/16):

Pelo menos esta obra de Sartre consegui finalizar.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Refeição Cultural - Ansiedade Nauseante


Capa francesa:
La Nausée by Jean-Paul Sartre

A NÁUSEA – JEAN-PAUL SARTRE, 1938
Trouxe dias atrás, alguns livros de meu primo Jorge Luiz. Ele iria desfazer-se deles e perguntou-me se não queria dar uma olhada e pegar aqueles que eu quisesse.
Dentre vários volumes que peguei por afinidade e valor afetivo, haja vista que foram livros que marcaram minha iniciação ao mundo da literatura, trouxe também alguns que nunca li, mas que os nomes ou os autores sempre ficaram a martelar em minha cabeça.
A NÁUSEA de Sartre era um deles. Como pode um livro chamar-se A Náusea! Não é possível que qualquer pessoa, mesmo que não seja amante da leitura, não fique ao menos instigada a folhear ou saber do que se trata um livro com um nome desses.
A minha história da leitura é marcada por várias situações de nomes que ficaram martelando em minha cabeça por longo tempo até o dia em que se deu o momento da apresentação entre aquele nome martelado e a minha pessoa.
Um dos nomes mais apaixonantes da minha vida foi CEM ANOS DE SOLIDÃO! Obra magistral de Gabriel García Márquez. Só de escrevê-lo aqui neste momento de enunciação, eu me arrepiei. Aliás, lembrando agora da história daquela família - os Buendía -, e de Macondo, continuo arrepiado. Essa é a típica declaração de amor à literatura. Meu corpo declara amor à literatura. Além do arrepio, meus olhos se umedeceram.
Ainda em relação aos nomes que viveram martelando em minha cabeça, assisti na sexta-feira ao filme O CÉU QUE NOS PROTEGE, de 1990, de Bernardo Bertolucci. Também é um nome que me emociona. Tanto a ideia de solidão do livro, quanto a ideia do céu que nos protege, me remetem automaticamente ao que fico pensando naquelas longas noites que passo uma vez por ano na minha caminhada de 85 quilômetros lá em Minas Gerais e que já viraram uma necessidade em minha vida. Só eu mesmo para saber a síntese da minha caminhada com a ideia daquela solidão e com aquele céu que encontro tão estrelado e, às vezes, com a Lua-sol, às vezes, no breu total.
Tenho vivido com grande dificuldade de tempo para ler. Com o passar dos anos e o avanço do tempo de existência, percebo que passei a começar vários livros que acalento o desejo de ler e leio um tanto e acabo não finalizando a leitura. É a ansiedade do tempo passando e de ver que não avancei nas leituras que sempre desejei.
A ansiedade se repetiu neste feriado. Eu poderia ter lido um livro nestes quatro dias e, no entanto, fiquei olhando na estante e nas pilhas espalhadas por todos os lados e as horas passaram, os dias passaram e iniciei várias coisas e não acabei nenhuma. 

No sábado de manhã, peguei MEMORIAL DE AIRES, de Machado de Assis. À tarde, após achar em uma banca de revistas um mangá sobre O CAPITAL, de Marx, o li de uma sentada.
No domingo, peguei FAUSTO, de Goethe, o volume antigo que trouxe de meu primo Jorge Luiz. Na segunda-feira, não li dezenas de páginas de nada, porque liguei o computador para trabalhar. Minto: à tarde, após o trabalho, achei um volume que nem me lembrava de tê-lo e comecei a ler. Tratava-se de O QUE É IDEOLOGIA, de Marilena Chauí, da coleção “Primeiros Passos”. Por fim, hoje, catei o volume de Sartre e já li mais de setenta páginas.
Essa ansiedade em ler tudo que gostaria e não conseguir, com o passar do tempo, virou um ciclo vicioso e negativo para mim.
Para finalizar essa ansiedade da minha incompletude nauseante, assisti ontem na TV à primeira parte do filme CHE, de 2009, de Soderbergh. Por sinal, tenho o DVD em minha estante, mas também nunca peguei para assistir de uma sentada só.

É isso!


Post Scriptum (31/1/16):

Interessante e triste. O drama em relação à dificuldade de leituras literárias segue exatamente o mesmo cinco anos depois. E enquanto isso, a idade da existência vai aumentando, a visão já não é mais a mesma... mas o desejo de leitura continua do mesmo tamanho, imenso!

domingo, 13 de novembro de 2011

Refeição Cultural - História das leituras


Tudo por ler ainda...

Dias atrás, quando fui a Minas Gerais visitar a família, aconteceu-me o fato de reencontrar-me com uma antiga coleção de livros de meu primo Jorge Luiz. Como ele iria doá-los, perguntou-me se eu queria dar uma olhada e pegar alguns deles.

Recusei a princípio, mas após lembrar-me das palavras de Alberto Manguel, no meu livro de cabeceira "Uma história da leitura", mudei de ideia e fui dar uma espiada nos livros.

Cara, assim que comecei a ver os volumes que eu li quando era adolescente, volumes que me tiraram um pouco da rua e me fizeram tomar gosto pela leitura e depois pelos estudos, já comecei a separar alguns deles. Acabei pegando umas três sacolas de plástico. Acho que peguei uns 30 livros. Isso porque vivo prometendo a mim mesmo que não vou adquirir mais nada porque não tenho onde pôr e nem tempo de ler o que já tenho.

Mas lembrando de novo das palavras de Manguel, cada leitura tem uma história. Cada livro tem uma história. A edição é única, o volume que você leu também.

Trouxe aqueles velhos volumes que li nos anos oitenta: "O poderoso chefão" de Puzo, "Lolita" de Nabokov, "Admirável mundo Novo" de Huxley, "A boa terra" de Buck, "Mar morto" de Jorge Amado, "Fausto" de Goethe, "O processo" de kafka, trouxe a fita de VHS de "Cidadão Kane" de Welles, mais um monte de livros da coleção antiga "Círculo do livro".

Na verdade, como disse, são livros que têm para mim um valor subjetivo, da relação livro-leitor (eu na adolescência).

Para manter também a tese do capítulo do livro de Manguel "Por que ler os clássicos?" trouxe alguns que meu primo tinha e que nunca consegui ler. A ideia do livro de Manguel é de que devemos ter uma estante com livros que já lemos e não vamos voltar a ler, de livros que ainda queremos ler, e aquela especial de livros que esperamos reler.

A parte disso tudo que me deixa meio desconsolado é saber que tive e tenho muito pouco tempo na vida para dedicar à leitura compenetrada, crítica e exegeta. Terminarei minha existência com quase tudo por ler daquilo que precisaria saber nesta vida sobre literatura, sociologia, filosofia, política, história e sobre as culturas e grandes produções da sabedoria humana.

Se eu pudesse, confesso que deixaria todas as obrigações de lado para poder ler, estudar, escrever e viver do estudo e conhecimento, com uma renda adequada para sustentar a família.


Post Scriptum (17/1/16):

Releitura da postagem. A sensação segue a mesma em relação ao desejo de poder ler os clássicos.

sábado, 12 de novembro de 2011

Refeição Cultural - Finalmente, li O Capital


Bela capa. Foto de William Mendes

Imaginem só. Acordei neste sábado nublado e fui buscar pães. Tinha dormido tarde e também acordei meio nublado.

Ao sair da padaria, passei na banca de jornais para olhar capas de jornais e revistas. De repente, vejo uma capa vermelha e o nome "O Capital".

Os desenhos são muito bonitos. 
Foto de William Mendes.

Quando peguei para folhear, estava tudo errado. O volume não tinha como ser folheado como estamos acostumados. O título estava de trás para frente e era tudo ao contrário...

Não é que fizeram um MANGÁ de O Capital...

Lógico que levei pra casa.

Fui chegando pra tomar café logo e sentar pra ler meu mangá.

A leitura foi muito agradável. Achei bem interessante.

Os personagens. Foto de William Mendes

A história é dividida em quatro capítulos:

- O processo de produção do Capital
- Exploração
- O comércio de força de trabalho
- O preço

A história mostra a mudança da produção artesanal para a produção industrial e como isso impactou na vida das pessoas de classes diferentes, os proletários e os capitalistas.

Meu filho, que lê mangas do Naruto, assim que acordou e passou por mim, viu que eu estava lendo algo que não lhe era estranho no formato. Já foi logo crescendo os olhos e chegou para ver o que era aquele mangá. Acho até que ele deve ler depois de mim.

O Capital, mangá da Editora JBC. 
Foto William Mendes

Outro dia havia lido um livro também em forma de desenhos sobre o capitalismo e achei muito bem feito e bem sacado por ter humor e ironia o tempo todo.

Bom, finda a leitura de O Capital, de Karl Marx, estava pronto para sair e correr uns 5 km naquele sábado de manhã nublada e com um solzinho leve após a uma hora da tarde.

Pois é, agora posso dizer que já li O Capital !!!

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Refeição Cultural - Carpe Diem


FIM DE SEMANA COM A FAMÍLIA MINEIRA!

A nossa vida contemporânea é a vida do Tempo, a vida da falta de Tempo. Somos engolidos pelos dias, pelas coisas, pelo trabalho, pela luta. Somos autômatos e estamos indo... nem percebemos isso direito, mas estamos indo...

Disse a meus pais que iria visitá-los mais vezes em Minas Gerais. O Tempo... passei quatro meses para voltar lá. Tenho que aproveitar meus instantes com pai, mãe e vovózinha. O Tempo deles está indo rapidamente, em tese, mais rápido que o meu Tempo. Às vezes, essa lógica fura...

Vovózinha querida
Minha avózinha é uma bela pessoa. Eu respeito muito a sabedoria dos idosos. Aprendemos muito com eles sobre o que fazer e o que não fazer. É uma tristeza a modernidade não respeitar a idade e a velhice natural das coisas.

Todos envelhecemos num processo natural da existência. A ditadura da estética e do Capital não admite o envelhecimento. Para o Sistema Capitalista, o que não é do último instante deve ser jogado fora, escondido. Sociedade das coisas novas. Os humanos são coisas.

Paizinho querido
Compreendi melhor meu pai depois que deixei de ser menos ignorante culturalmente. Tivemos uma vida rude, em um mundo rude. Boa parte da vida adulta de meu pai foi durante a ditadura civil-militar no Brasil. Meu pai e seus irmãos e sua geração são sobreviventes.

O que tenho de melhor em mim em relação a não aceitar coisas injustas e erradas e sair para lutar para consertar o que está errado, devo à insistência desse homem de lutar sozinho contra o mundo a vida inteira. Eu o fiz sofrer muito por minha incompreensão e fui muito ingrato com meus pais durante boa parte de minha vida. E como não temos condições financeiras ideais, só tenho a lhe dar Amor e Gratidão. Aliás, o mundo moderno é extremamente carente de "gratidão".

Mãezinha querida
Essa mulher é minha mãe. Mulher no sentido completo da palavra. É muito mais que minha mãe. É MÃE! As mães encarnam algo no mundo do ser humano que dificilmente é captado pelos homens. As mulheres, após milênios de humanidade, ainda lutam para serem respeitadas em sua plenitude. Nós homens somos só homens. As mulheres são tudo.

Quando vemos nossas mães, e eu posso falar da minha, vemos que o mundo não é nada sem elas. Sei que existem exceções para tudo. Mas falo da regra mais geral.

Olha meus sobrinhos lindos.
Eu não me perdi na vida por causa dessa mulher, minha mãe. Quando vivi o período mais duro da vida, naquele mundo rude dos anos oitenta, na hora das violências meu freio era o ensinamento de minha mãezinha martelando na minha cabeça. Fiz minha mãe chorar várias vezes por ingratidão juvenil. Mas mãe é MÃE! Mãe é Amor, é esteio, é força.

Vemos isso nas mães a todo instante. As mães mulheres do mundo são justamente força, esteio, âncora, cumprem suas jornadas não reconhecidas pela sociedade moderna ainda machista e patriarcal.

O que posso lhe dar mãezinha é Amor e Gratidão. Meus pais sabem o quanto preciso deles vivos. São minhas âncoras com o mundo.

Primos mineiros.
Mais primos mineiros
Bom, passei um pequeno Tempo com minha família em Minas neste fim de semana. Minha pequena família paulista - esposa e filho - sofrem muito com a questão Tempo também, pois pouco tempo nos resta para a família em nossa vida de luta e trabalho.

Devo Amor e Gratidão a eles, família paulista e família mineira.


Titia e mamãe.
Os malas!!!
E PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES...


Coroa Imperial - flores...

Orquídeas "pássaros"

Flores de mamãe


segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Poema VII - Da minha aldeia (Caieiro)



O guardador de rebanhos - Alberto Caieiro 

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena

Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para
           [longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos
           [olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.


COMENTÁRIO:


Li este poema para os participantes de um de nossos cursos de formação sindical da Contraf-CUT em parceria com o Dieese. Ali me referia a atitude que um militante e dirigente sindical deve ter no olhar do mundo.


Também me referi a outras partes deste poema de Caieiro na casa de meus pais certo fim de semana. Várias coisas pensei estando ali, em relação ao que Caieiro fala sobre a Natureza, sobre Deus, sobre o lugar de onde somos, dentre outras coisas.


Leiam o poema inteiro quem não o conhece ainda. 


É MARAVILHOSO!



Post Scriptum (21/4/16):

Escrevi no perfil facebook em 5/11/11 (dois dias antes desta postagem): 

Momento raro!
Estou em MG curtindo meu paizinho, mãezinha e vovózinha, e minha família distante. Quase não pude vê-los neste semestre de lutas contra os putos dos banqueiros e capitalistas.
Carpe Diem. O momento é agora, depois sabe-se lá...

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Dom Quixote de La Mancha: Uma lição de sabedoria através dos refrãos e ditos populares

Universidade de São Paulo
Facultade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Literatura Espanhola do Século XVII
Professora: María de La Concepción P. Valverde

Dom Quixote de La Mancha:
Uma lição de sabedoria através dos refrãos e ditos populares

Aluno: William Mendes de Oliveira
Matrícula: 3504053 - junho/2007

Proposta de trabalho sobre Dom Quixote

Após minha primeira leitura da obra completa – primeira parte de 1605 e segunda de 1615 - entre o final de 2005 e início de 2006 ficou-me uma impressão profunda: a perspicácia e sabedoria popular presente na obra, sobretudo em Sancho Pança.

Ao longo da leitura pude perceber ditos populares, enunciados por ele, que sempre ouvi dos mais velhos, parentes e amigos do interior e que constam dos romances literários há quatro séculos. Não só o conteúdo dos ditados senão também a forma de dizê-los: rimada e de fácil memorização.

Pretendo fazer uma breve coletânea na obra desses ditos populares e de momentos de perspicácia enunciados principalmente por Sancho Pança, como também alguns enunciados ou observações de nosso nem sempre louco e às vezes muito sábio e valoroso cavaleiro manchego.

A ideia que tenho é que apesar do livro ser uma paródia e invectiva contra os romances de cavalaria de então, Cervantes não deixa de estar, em todo momento, enaltecendo princípios éticos, criticando fortemente maus hábitos e apresentando a sabedoria popular sempre presente nas gentes não letradas.

Espero com os dados coletados mostrar que a obra fez história nos últimos quatrocentos anos correndo o mundo e deixando em seus leitores e descendentes marcas profundas de sabedoria e do eterno embate entre o idealismo e o pragmatismo.


1. Dom Quixote cruza o Atlântico


Eu e Cervantes, em Toledo - Espanha, em 2009.
Em 2005, na comemoração dos quatrocentos anos do lançamento da obra mais importante de Cervantes, o escritor mexicano Carlos Fuentes deu uma entrevista à Folha de São Paulo analisando a influência do autor espanhol na América Latina. Segundo ele, Machado de Assis foi um rebelde quixotesco. Fuentes é o autor do ensaio “Machado de la Mancha”.

Como apresento meu trabalho analisando justamente a influência da obra de Cervantes sobre todos nós nos últimos 400 anos, abro minhas observações citando uma parte do Prólogo da Terceira Edição do livro de Machado “Memórias Póstumas de Brás Cubas” que reflete um pouco do que sinto quando leio dom Quixote:

Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir dos seus modelos. É taça que pode ter lavores de igual escola, mas leva outro vinho”.
Machado de Assis

(Ao dizer o que faz de seu Brás Cubas um autor particular: “rabugens de pessimismo”)


2. Introdução

Durante toda a saborosa leitura da obra máxima cervantina Dom Quixote de La Mancha fui interligando as frases e ditos do simplório camponês Sancho Pança e também de nosso fidalgo de baixo grau nobiliárquico Alonso Quijano – mais conhecido sob a alcunha de Dom Quixote - a tudo que sempre ouvi dos parentes mais antigos, como minhas avós e tios, e também das pessoas mais velhas que frequentavam, ou o bar que meu pai tinha, ou a casa de minha avó - contígua à nossa, quando ali iam fazer a sua “fezinha” no jogo de bicho. Isto durante minha infância.

Já na fase adulta, morei um tempo com a minha outra avó e esta sim, só falava no estilo Sancho Pancista, ou seja, somente com frases rimadas e através de ditos populares, com pequenos versos trazendo suas lições de moral e sabedoria e, para não fugir da imagem de Sancho, desconfiada de tudo.

Minha avozinha faleceu recentemente. Assim como os mais antigos vão ficando pelo caminho. No entanto, eu não deixo de usar ainda hoje frases e ditos que aprendi com ela, porque eles trazem muita sabedoria ou ironia, o que é sempre bom para certos momentos.

Que tal este ensinamento quando se está em dúvida se devemos ou não fazer algo que nos dá prazer:

mais vale um gosto,
que uma panela de entrecosto

E este aviso para a vizinha, com relação a suas duas belas filhas quando estávamos eu, meus primos e elas até tarde na rua:

Segura suas éguas,
que meus cavalos estão soltos


3. Refrãos e ditos no Quixote: séculos de sabedoria popular

Toledo na Espanha  homenageia El Quijote
O uso de refrãos e ditos populares é um dos eixos da obra de Cervantes e acompanha as glórias e misérias vividas por nossa dupla nas três saídas.

De certo modo, ao longo da convivência da dupla, ocorre uma assimilação do uso dos ditos e refrãos, que vai de Sancho – que explica não poder controlar seu uso – a Dom Quixote, que respeita a sabedoria contida neles, mas acha que devem ser usados com moderação. Aliás, em vários momentos mostra que sabe usá-los como, por exemplo, quando partem para a terceira saída, ao falar de igual para igual com Sancho, que tentava regatear sua serventia e salário, e antes de morrer, quando desengana a esperança dos amigos.

Apesar de não ser o hábito dos grandes centros urbanos, ainda hoje, basta viajar ao interior do país e perambular pelas pequenas cidades e vilarejos para encontrarmos o velho hábito secular de se falar bastante, de se “prosear” ao fim do dia nas praças e mesmo na porta de casa.

O leitor atento, de qualquer época posterior à obra, notará o quanto ela traz refrãos bem anteriores à idade média e o quanto ela atualizou e perpetuou até nossos dias todas aquelas “sentencias breves” sacadas da experiência.

Antes mesmo de Sancho Pança começar a se destacar por “la muchedumbre de refranes” como lhe diria mais tarde Dom Quixote, o fiel escudeiro após perceber, ainda nas primeiras aventuras, os delírios e atitudes malucas de seu amo, já mostra a perspicácia ao afirmar depois de tanto ouvir histórias de heróis e cavaleiros:

“-Más Bueno era vuestra merced – dijo Sancho- para predicador que para caballero andante.”  Parte I, cap. XVIII, p.164

No entanto, não só de histórias de cavaleiros andantes vive nosso nobre manchego. Sua fala galante também contém ditos e refrãos. Veja este citado por ele logo após a constrangedora aventura de los batanes:

“-Paréceme, Sancho, que no hay refrán que no sea verdadero, porque todos son sentencias sacadas de la misma experiencia, madre de las ciencias todas, especialmente aquel que dice: ‘donde una puerta se cierra, otra se abre’.  Parte I, cap. XXI, p. 188

“quando uma porte se fecha, outra se abre”

E veja, pela fala de Dom Quixote, que ele acredita mesmo no que está falando, ao dizer a Sancho algo como aquele ditado que conhecemos: “Depois da tempestade, vem a bonança”

“-Sábete, Sancho, que no es un hombre más que otro, si no hace más que otro. Todas estas borrascas que nos suceden son señales de que presto ha de serenar el tiempo y han de sucedernos bien las cosas, porque no es posible que el mal ni el bien sean durables, y de aquí se sigue que, habiendo durado mucho el mal, el bien está ya cerca.”  Parte I, cap. XVIII, p.163


3.1. Se queres que me cale, vou-me embora

Sancho é um grande representante dessa tradição popular. Ainda no primeiro livro, há um momento crucial para a manutenção da dupla, pois, quando dom Quixote passa por uma aventura humilhante no capítulo XX (aventura de los batanes), se enche da muita falação de seu escudeiro e de seus refrãos, dá nele duas pauladas com a lança e o manda se calar e só falar alguma coisa quando for interpelado:

“...y está advertido de aquí adelante en una cosa, para que te abstengas y reportes en el hablar demasiado conmigo... De todo lo que he dicho has de inferir, Sancho, que es menester hacer diferencia de amo a mozo, de señor a criado y de caballero a escudero. Así que desde hoy en adelante nos hemos de tratar con más respeto, sin darnos cordelejo, porque de cualquiera manera que yo me enoje con vos, ha de ser mal para el cántaro.”  Parte I, cap. XX, p.186

No fim já emenda um refrão: “Si da el cántaro en la piedra o la piedra en el cántaro, mal para el cántaro”.

A ordem foi a gota, foi o limite para Sancho, pois ele até suporta levar socos e pauladas, mas pedir-lhe que se cale e que não diga mais seus refrãos e conselhos, isto não é possível. Ao ameaçar ir embora e largar nosso fidalgo, Dom Quixote volta atrás em sua ordem e libera seu escudeiro para seguir falando. (e que bom, ao menos para nós, leitores!):

“-Señor don Quijote, vuestra merced me eche su bendición y me dé licencia, que desde aquí me quiero volver a mi casa y a mi mujer y a mis hijos, con los cuales por lo menos hablaré y departiré todo lo que quisiere; porque querer vuestra merced que vaya con él por estas soledades de día y de noche, y que no le hable cuando me diere gusto, es enterrarme en vida... y que no se puede llevar en paciencia, andar buscando aventuras toda la vida, y no hallar sino coces  y manteamientos, ladrillazos y puñadas, y, con todo esto, nos hemos de coser la boca, sin osar decir lo que el hombre tiene en su corazón, como si fuera mudo.”   Parte I, cap. XXV, p.231

Dom Quixote acaba cedendo ao apelo de seu escudeiro e o libera para voltar a tagarelar.


3.2. Podes falar, mas não faço o que não está nos livros de cavalaria

Toledo na Espanha homenageia Cervantes no 4º centenário
Aqui temos um momento antagônico ao anterior. Lá, Sancho vence o embate com seu amo - que o libera para falar à vontade - quando seu escudeiro ameaça abandoná-lo por ter que ficar em silêncio.

No início da terceira saída da dupla, Sancho vai até a casa de seu amo para propor as condições em que aceitaria ser seu escudeiro novamente nas aventuras. Sua mulher havia estipulado que houvesse acerto de salário por escrito.

Desta vez, o embate termina com a anuência de Sancho acerca da exigência de Dom Quixote que diz nunca ter lido tal acordo de salários de escudeiros em seus livros e que preferiria buscar a outro servidor (esnobando que havia aos montes) que levá-lo desta maneira.

“-Teresa dice – dijo Sancho- que ate bien mi dedo con vuestra merced, y que hablen cartas y callen barbas, porque quien destaja no baraja, pues más vale un toma que dos te daré. Y yo digo que el consejo de la mujer es poco, y el que no le toma es loco... que vuesa merced me señale salario conocido de lo que me ha de dar cada mes el tiempo que le sirviere, y que el tal salario se me pague de su hacienda, que no quiero estar a mercedes, que llegan tarde o mal o nunca...”  Parte II, cap. VII, p.596

Ao final da resposta que Dom Quixote dará a Sancho, nosso cavaleiro andante ainda esnoba seu escudeiro dizendo que falou uns refrãos para deixar claro que também sabe encaixá-los muito bem.

“-Y tan entendido – respondió don Quijote-, que he penetrado lo último de tus pensamientos y sé al blanco de tiras con las innumerables saetas de tus refranes. Mira, Sancho, yo bien te señalaría salario, si hubiera hallado en alguna de las historias de los caballeros andantes ejemplo que me descubriese y mostrase por algún pequeño resquicio qué es lo que solían ganar cada mes o cada año... que pensar que yo he de sacar de sus términos y quicios la antigua usanza de la caballería andante es pensar en lo excusado...”

e completa com refrãos se contrapondo aos já ditos por Sancho:

“...Así que, Sancho mío, volveos a vuestra casa y declarad a vuestra Teresa mi intención; y si ella gustare y vos gustáredes de estar a merced conmigo, bene quidem, y si no, tan amigos como de antes: que si al palomar no le falta cebo, no le faltarán palomas. Y advertid, hijo, que vale más buena esperanza que ruin posesión, y buena queja que mala paga. Hablo de esta manera, Sancho, por daros a entender que también como vos sé yo arrojar refranes como llovidos.”  Parte II, cap. VII, p. 597


3.3. A explicação de Sancho Pança sobre o uso dos refrãos

Há uma passagem no segundo livro, decisiva, tanto para nosso escudeiro – que acaba de ser nomeado governador da Ínsula Baratária, quanto para seu amo e cavaleiro Dom Quixote – que está lhe dando belíssimos e sábios conselhos de como ser um bom governador no que se refere a cuidar de si e de sua casa.

Dom Quixote aconselha Sancho a deixar de usar seus refrãos e ditos o tempo todo, pois afirma que ele acaba por transformar belas sentenças em disparates pelo excesso de uso:

-También Sancho, no has de mezclar en tus pláticas la muchedumbre de refranes que sueles, puesto que los refranes son sentencias breves, muchas veces los traes tan por los cabellos, que más parecen disparates que sentencias” Parte II, cap. XLIII, p.872.

No que Sancho responde a seu senhor ser impossível atender a tal conselho sobre os refrãos porque não se pode controlá-los: eles se enfrentam dentro de si para sair aos borbotões. No entanto, nosso escudeiro diz que será mais cuidadoso por estar em cargo de importância e já manda mais alguns para justificar o que acabou de prometer:

“-Eso dios lo puede remediar – respondió Sancho -, porque sé más refranes que un libro, y viénenseme tantos juntos a la boca cuando hablo, que riñen por salir unos con otros, pero la lengua va arrojando los primeros que encuentra, aunque no vengan a pelo. Mas yo tendré cuenta de aquí adelante de decir los que convengan a la gravedad de mi cargo, que en casa llena, presto se guisa la cena, y quien destaja, no baraja, y a buen salvo está el que repica, y el dar y el tener, seso ha menester  Parte II, cap. XLIII, p.872


3.4. O último refrão de nosso valoroso cavaleiro manchego

Antes de morrer e já desiludido da vida, Dom Quixote de La Mancha pronuncia um refrão para desenganar aos amigos que pediam-lhe ânimo e que voltasse a pensar como o cavaleiro andante que fora, porém, já “são e consciente”,  ele os alerta que já não se engana e que ele é Alonso Quijano e que, seja quem for, morre do mesmo jeito.

“-Señores -  dijo don Quijote-, vámonos poco a poco, pues ya en los nidos de antaño no hay pájaros hogaño. Yo fui loco y ya soy cuerdo; fui don Quijote de la Mancha y soy ahora, como he dicho, Alonso Quijano el Bueno...”  Parte II, cap. LXXIV, p.1103


4. Nossos parentes velhos mantêm os velhos refrãos

Cidade de Toledo homenageia Cervantes (estive lá em 2009)
Na adolescência, toda vez que me pegava com altos planos e, conseqüentemente, com altos riscos para minha parca estabilidade de então, quer seja monetária, quer seja de vida, minha avó sempre soltava seus conselhos e advertências:

“olha, mais vale um pássaro na mão que dois voando”

(Aqui, no sentido de se cuidar do pouco que se tem a arriscar perder-se por tentar buscar mais).

Nosso escudeiro Sancho, por mais de uma vez em suas andanças com dom Quixote, já usava este refrão:

“y advierta que ya tengo edad para dar consejos, y que este le viene de molde, y que más vale pájaro en mano que buitre volando (hoje se diz: que ciento volando) Parte I, cap. XXXI, p. 315.

Outras vezes, Sancho abusa de seu “conhecimento” ao formular outras frases com o mesmo conceito, mostrando o vasto repertório para seu estamento social:

más vale un toma que dos te daré  Parte II, cap. XXXV, p. 827.

Quem já não ouviu de nossos familiares e amigos mais “experientes”, com cabelos em cãs, este famoso conselho:

“quem muito escolhe, sai escolhido”

Pois aqui está Sancho dando seqüência ao ditado acima que diz ser melhor se contentar com o que se tem:

“porque quien bien tiene y mal escoge, por bien que se enoja no se venga refrão que Sancho deforma comicamente, sendo o original quien bien tiene y mal escoge, por mal que le venga no se enoje  Parte I, cap. XXXI, p. 315.

Para aqueles que acham que alguns ditos populares não são tão velhinhos, que tal citar dois, muito conhecidos, pronunciados por nosso valoroso cavaleiro andante dom Quixote:

-Señor, una golondrina sola no hace verano  Parte I, cap. XIII, p. 114.

Uma só andorinha não faz verão

e:

“-antes he yo oído decir que quien canta sus males espanta  Parte I, cap. XXII, p. 201.

Quem canta seus males espanta

Estou aguardando, atualmente, o efeito de um ditado popular que sempre nos disseram em momentos muito duros e tristes de perdas dos entes queridos: “Não há dor que o tempo não cure” (com relação à morte).

No episódio dos yangueses, Dom Quixote, tenta acalentar o sofrimento de seu escudeiro pronunciando o mesmo dito popular:

“-Con todo eso, te hago saber, Hermano Panza – replicó don Quijote-, que no hay memoria a quien el tiempo no acabe, ni dolor que muerte no le consuma.  Parte I, cap. XV, p.135


5. Perspicácia e sabedoria: de Sancho Pança e também de dom Quixote


Ademais dos refrãos e ditos que já vinham de passado longínquo e que se firmaram na célebre obra de Cervantes, sendo a maior parte na fala rústica de Sancho, a saga de nosso engenhoso cavaleiro manchego e seu escudeiro é marcada por dezenas de ações e reflexões que são eterna fonte de sabedoria para os contemporâneos e gerações que se seguiram ao longo dos séculos seguintes.

5.1. Vejamos uma postura de Sancho que nunca deixou de ser recomendada, seja por preceitos religiosos, seja por quem preza e respeita a vida e que não entra em qualquer refrega à toa, sob risco de perder senão a vida, ao menos a saúde:

Ser pacífico e evitar encrencas:

Señor, yo soy hombre pacífico, manso, sosegado, y sé disimular cualquiera injuria, porque tengo mujer y hijos que sustentar y criar. Así que séale a vuestra merced también aviso, pues no puede ser mandato, que en ninguna manera pondré mano a la espada, ni contra villano ni contra caballero, y que desde aquí para delante de Dios perdono cuantos agravios me han hecho y han de hacer, ora me los haya hecho o haga o haya de hacer persona alta o baja, rico o pobre, hidalgo o pechero, sin exceptar estado ni condición alguna.”  Parte I, cap. XV, p. 133.

5.2. Também é interessante a opção feita por Sancho, quando convidado a sentar-se ao lado do amo e demais presentes em uma ceia:

Antes comer só e à vontade, do que junto a reis seguindo rituais de etiqueta:


...sé decir a vuestra merced que como yo tuviese bien de comer, tan bien y mejor me lo comería en pie y a mis solas como sentado a par de un emperador. Y aun, si va a decir verdad, mucho mejor me sabe lo que como en mi rincón sin melindres ni respetos, aunque sea pan y cebolla, que los gallipavos de otras mesas donde me sea forzoso mascar despacio, beber poco, limpiarme a menudo, no estornudar ni toser si me viene gana, ni hacer otras cosas que la soledad y la libertad traen consigo. Así que, señor mío, estas honras... las renuncio para desde aquí al fin del mundo.”  Parte I, cap. XI, p. 96.

5.3. Quantos esperariam um zelo desses com a higiene bucal quatro séculos atrás:

A importância em se cuidar dos dentes:

“...porque te hago saber, Sancho, que la boca sin muelas es como molino sin piedra, y en mucho más se ha de estimar un diente que un diamante...”  Parte I, cap. XVIII, p. 165.


6. A conclusão é pela eterna leitura


Como disse certa vez a professora Maria Augusta da Costa Vieira, em uma aula do curso “Por que ler os clássicos?”, cada vez que relemos um capítulo ou uma aventura desta obra de Cervantes descobrimos novas ironias, novas reflexões e mais sabedoria atemporal.


É o que define a perpetuação de uma grande obra: sua capacidade de se fazer popular, de se fazer referência cotidiana e sua capacidade de diluir-se nas dobras do tempo de forma a que muitos a conheçam mesmo sem jamais a terem lido.


7. Bibliografia

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Obra de 1881. Editora Globo 1997.
CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de La Mancha. Edición del IV centenario RAE y Asociación de Academias de La Lengua Española. Editora Alfaguara 2004.
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote De La Mancha. Tradução de Vizcondes de Castilho e Azevedo. Abril Cultural 1981.

FUENTES. Carlos. D. Quixote cruza o Atlântico. “Folha Especial – A longa viagem de D. Quixote”. Edição de 18/06/2005.

VIEIRA, Maria Augusta da Costa. O Dito Pelo Não-Dito Paradoxos de Dom Quixote. “Ensaio de Cultura 14”. Editora Edusp 1998.