sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Tempo (VII)



Refeição Cultural

Leitura do capítulo 6 "A tematização do tempo", do livro de Benedito Nunes, O tempo na narrativa. A leitura desse pequeno livro do professor Nunes está inserida no contexto de estudos da disciplina Literatura Comparada II, que estou fazendo com a professora Viviana Bosi. A matéria tem feito com que eu reflita muito a respeito da temática.

Nunes nos fala da fenomenologia de Husserl e Heiddeger. Cita Agostinho também.

"Para o pensador das Confissões, a distenção da alma (distentio animi), antecipando pela expectativa o futuro que ainda não existe, reatualizando pela memória o passado que deixou de existir, e conservando o presente pela atenção, explicaria o tempo, ou ainda, explicaria a origem que sua compreensão previa por nós." (NUNES, 1995, p. 60)

Ao comentar e citar trechos da obra de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, Nunes aponta as relações entre a memória e o retorno do passado ao presente, demonstrando certa "intemporalidade essencial das coisas". Eventos presentes que conectam o personagem ao seu passado, como a cena do biscoito molhado no chá, o tropeço no piso de sua residência, dentre outros.

"Esse episódio esclarecia-lhe finalmente - e era esse o motivo de sua felicidade - que o momento dessas iluminações, reunindo o presente ao passado num só instante -, absorvia a sucessão, suspendia a marcha do tempo fugaz. A busca do tempo perdido ultimava-se no tempo reconquistado, nem presente nem passado, nem fusão dos dois, mas algo que, 'comum ao presente e ao passado, é mais essencial do que ambos'. Ao apropriar-se livremente da duração interior, o narrador reapossava-se de si mesmo, do seu Eu profundo e, na certeza da intemporalidade essencial das coisas, confirmava, também, a vocação artística que o destinaria a escrever aquela obra, agora a caminho de seu termo, para narrar essa mesma descoberta que o libertara do temor da morte..." (p. 62)

Terminando essa reflexão sobre Proust, Nunes cita também Michel Zéraffa (constante das notas):

"(...) Pois se a busca suspende a dominância do tempo cronológico pela durée, o momento do reencontro parece interromper o fluxo da consciência, paralisada num momento de êxtase, sem passado e sem futuro. 'Negado enquanto fragmento cronológico, valorizado enquanto meio de acesso ao ser, o momento toma no romanesco uma importância psicológica, filosófica e estética fundamental'." (p. 63)

TEMPO E MITO

Nunes apresenta a questão: "Outro limite temporal na arte de narrar, transsubjetivo e impessoal, é alcançado quando o romance estende seu enredo ao plano dos mitos." (p. 66)

Após citar a obra de Thomas Mann, José e seus irmãos, ele aponta: "A rigor não há um tempo mítico, porque o mito, história sagrada do cosmos, do homem, das coisas e da cultura, abole a sucessão temporal. O que quer que o mito narre, ele sempre conta o que se produziu num tempo único que ele mesmo instaura, e no qual aquilo que uma vez aconteceu continua se reproduzindo toda vez que é narrado." (p. 66)

Ao longo do capítulo, vários autores e obras clássicas servirão de exemplo de técnicas narrativas que manuseiam os diversos conceitos de tempo na literatura.

Entre obras clássicas lidas e não lidas ainda, o texto nos instiga a incluir em nossas vidas a leitura de livros que podem nos levar a reflexões profundas e a descobertas de sentidos na existência humana.

Por fim, achei difícil a leitura desse capítulo e do anterior, tive que reler parágrafos algumas vezes. Mas também devo estar bem enferrujado para esse tipo de reflexão. A destruição política, econômica e social de meu mundo destruiu parte de mim.

William


Bibliografia:

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. Série Fundamentos. Editora Ática, São Paulo, 1995.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Kaschtanka (relato) - Conto de Tchekhov



Refeição Cultural

Leitura de mais um conto de Tchekhov, que está no livro As três irmãs, da coleção Imortais da Literatura Universal. Estória muito bem desenvolvida. 

A personagem é uma cadela ruiva - mistura de basset e vira-lata. O conto é narrado em 3ª pessoa e o narrador atua de forma muito interessante, pois apresenta o ponto de vista de Kaschtanka.

Ela se perde de seu dono, Luká Alieksándritch, um marceneiro, em uma das saídas e bebedeiras dele, e acaba sendo adotada por outra pessoa.

"Uma jovem cadela ruiva - mistura de basset e vira-lata -, muito parecida de cara com uma raposa, corria de um lado a outro sobre a calçada e espiava inquieta para os lados. Parava de raro em raro e, chorando, erguendo ora uma pata enregelada, ora outra, esforçava-se por compreender: como pudera perder-se?" (TCHEKHOV, 1995, p. 131)

HIERARQUIA E VALORES: a cadela era muito maltratada pelo antigo dono, Luká. Veja:

"- Você, Kaschtanka, é um inseto e nada mais. Em relação ao homem, você é o mesmo que um carpinteiro em relação a um marceneiro..." (p. 132)

VISÕES DE MUNDO DE KASCHTANKA: o narrador nos apresenta a forma como a cadela vê o mundo:

"Ela dividia toda a humanidade em duas partes muito desiguais: os patrões e os fregueses; havia uma diferença essencial entre ambas: os primeiros tinham o direito de surrá-la, mas ela mesma tinha o direito de agarrar os segundos pela barriga da perna." (p. 133)

SAUDADES DO ANTIGO LAR: após ser adotada por um desconhecido, e bem tratada por ele, Kaschtanka não deixa de sentir saudades e fica triste:

"(...) fechou os olhos (...) mas, de súbito e inesperadamente, uma tristeza apossou-se dela. Lembrou-se de Lucká Alieksándritch, do seu filho Fiédiuschka, do lugarzinho aconchegado sob a cadeira alta..." (p. 134)

E chora:

"E quanto mais vivas eram as lembranças, mais alto e angustiosamente chorava Kaschtanka." (p. 135)

NOVA VIDA NA CASA DE UM DESCONHECIDO

A cadela passa a viver em outro lar e conhece outros animais, todos com nomes, o ganso Ivan Ivánitch, o gato Fiódor Timofiéitch e a porca Khavrónia Ivánovna. Eles são treinados pelo dono para fazerem acrobacias e coisas surpreendentes.

O novo dono é o "patrão", não tem nome, como ocorre com os animais.

Os leitores sabem o nome de Kaschtanka, mas o novo patrão não sabe. Ele passa a chamá-la de Titia. 

Em certo momento na narrativa, o narrador adota o nome Titia e não mais Kaschtanka.

SAUDADES E TRISTEZA: "A aula e o jantar tornavam o dia muito interessante, mas as noites eram um tanto enfadonhas. À noitinha, geralmente, o patrão ia para alguma parte, levando consigo o ganso e o gato. Ficando sozinha, Titia deitava-se sobre o colchãozinho e ficava tristonha... A tristeza esgueirava-se para junto dela de certa maneira imperceptível e apossava-se do seu ser pouco a pouco, como a treva toma conta de um quarto." (p. 139)

UM ESTRANHO NO AMBIENTE, A MORTE: 

- "O alarma e o desassossego apossaram-se de tudo, mas por quê? Quem era esse estranho, que não se conseguia ver?..." (p. 142)

- "Titia não compreendia o que dizia o patrão, mas pelo seu rosto viu que ele esperava algo terrível. Estendeu o focinho para a janela escura, pela qual, parecia-lhe, um estranho estava olhando, e pôs-se a uivar." (p. 142)

- "Começava a amanhecer, e no quartinho não estava mais aquele desconhecido invisível, que deixava Titia tão assustada..." (p. 143)

NOVA REVIRAVOLTA

Tchekhov é muito bom! A estória já nos surpreendeu diversas vezes e da metade para o fim, novas reviravoltas acontecem.

Gostei bastante do conto.

William


Bibliografia:

TCHEKHOV, Anton. As três irmãs e contos. Coleção Imortais da Literatura Universal. Nova Cultural, 1995.


terça-feira, 27 de outubro de 2020

Lula 75 anos! Lula Livre!



Hoje é aniversário do presidente Lula. Meus parabéns, presidente!

Neste momento da guerra, nada está resolvido, nada está ganho, e nem perdido, apesar de tudo que já perdemos.

Sim, estamos em guerra! 

Antes, separávamos adversários de inimigos. Era o tempo da política. 

Mataram a política como estratégia de guerra. Agora estamos em guerra, sem política.

Ainda hoje atentaram contra Lula. No dia de seu aniversário. Haviam marcado para hoje mais um julgamento vil de coisa inventada contra ele. Querem que seu corpo físico morra.

Como mataram a política, a solução pacífica das controvérsias, estamos em guerra. Agora até os adversários são inimigos.

Mataram a política com estratégias tradicionais de dominação do poder. Manipulação das massas pela mentira, pelo ódio, pelo medo. 

Agora, até amigos e companheiros de luta viram ex-amigos e ex-companheiros de luta e todos se dividem, se isolam, cada um por si contra os inimigos. Tão frágeis, assim!

E por trás de tudo isso, as mesmas ferramentas de dominação do poder: mentira, ódio, medo. Mais a vaidade! O pecado que o diabo mais gosta.

Presidente Lula, meus parabéns! Muita saúde e resiliência! Muita criatividade, e espero que o senhor ainda inspire pessoas na luta contra a fome do povo e em favor de um mundo mais justo e solidário.

Presidente Lula, agradeço muito o senhor ter sido uma referência para mim durante os dezesseis anos em que fui representante eleito da classe trabalhadora. 

Se consegui atravessar dezesseis anos de militância política formal e representação das pessoas é porque levei a sério alguns princípios, concepções e práticas que tiveram inspiração e exemplo no seu fazer política.

Como dirigente sindical, sempre privilegiei o trabalho de base, ouvir os trabalhadores e fazer políticas que trouxessem diferença na vida deles. 

Como dirigente político nos espaços de poder, não perdi a referência na minha origem e nas bases que representava. Isso me trouxe o ódio dos adversários e inimigos, mas acredito que me salvou até o fim de minha representação política.

Presidente Lula, parabéns pelo aniversário! Muito obrigado pela inspiração e pela referência! Lula Livre!

Lula Livre!

William


Tempo (VI)



Refeição Cultural

Estudos de textos teóricos sobre o tempo

Sigo com a leitura do texto de Benedito Nunes, O tempo na narrativa. Estou no capítulo 5 - "A desenvoltura temporal do romance".

O autor vai abordar uma questão que para a maior parte dos leitores é de difícil distinção: qual a diferença entre romance, novela e conto. Também vai falar da questão da "ilusão de simultaneidade" nos romances, e volta à questão da duração dos tempos, tempo cronológico, tempo psicológico etc. 

"Costuma-se dizer que o conto, instantâneo de uma situação, é refratário às anacronias de alcance extensivo e de considerável amplitude; a novela abrange situações diversas, encadeadas cronologicamente ou por uma casualidade que pode ser rigorosa. Dado o tronco comum da tradição oral de que essas formas procedem, é legítimo afirmar que a novela é uma composição maior do que o conto. Mas já seria falsear o romance considerá-lo apenas como sendo mais extenso do que a novela. Essas duas espécies de ficção, conforme mostrou o formalista russo B. Eikhenbaum, são heterogêneas." (NUNES, 1995, p. 49)

Nunes nos mostra que o romance foi se consolidar com a ascensão da burguesia, algo bem recente se considerarmos textos e gêneros discursivos em narrativas e dramas desde a Antiguidade.

"Ao contrário da novela, que teve como matriz a anedota, o romance, de existência embrionária desde a Antiguidade, mas cujo desenvolvimento teria de esperar pela fase de ascensão da burguesia, absorveu as expressões da cultura livresca - narrativas epistolares, relatos de viagens, crônicas históricas, estudos de costumes e investigações psicológicas das paixões e do caráter." (p. 49)

O professor Nunes nos explica algumas características do romance.

"A extensão da obra romanesca casa-se com o sincretismo ou o hibridismo de sua forma, que combina elementos díspares - digressões, comentário, expressão lírica e apresentação dramática - como diferentes 'centros de interesses', podendo narrar uma ou mais de uma história num discurso de andamento variável, que tende a continuar, ao contrário da novela, para além do ponto culminante da ação principal." (p. 49)

Nunes cita Lukács para afirmar que "o tempo se encontra ligado à forma". (p. 50).

O texto fala novamente da ascensão da burguesia ao fazer referência ao tempo cronometrado nas novas formas de trabalho do século XIX.

"A época do romance é a época do surgimento da História moderna e, não por acaso, também aquela em que está começando a cronometria do trabalho e da produção, que levou o controle dos relógios mecânicos, depois que se tornaram mais precisos, a estender-se sobre toda a vida social." (p. 50)

Cita o tempo dos personagens de Balzac: "No romance do século XIX, predominaria a temporalidade cronológica, que os textos de Balzac ilustram. O tempo dos personagens balzaquianos é sempre, com todos os seus recuos, o tempo dos relógios." (p. 50)

SIMULTANEIDADE - Uma questão a ser resolvida pelo romance é a questão da simultaneidade porque no texto existe a linearidade do signo linguístico, assim como o caráter consecutivo da linguagem verbal, nos explica Nunes. Os textos terão que criar uma "ilusão de simultaneidade".

Uma das estratégias criadas é o uso de advérbios para ligar capítulos ou fragmentos das ações contadas e interrompidas pelo narrador - enquanto isso, no mesmo momento, naquele dia.

Nunes cita vários exemplos de autores que trabalham com formas muito inteligentes de simultaneidade em seus romances, cita John dos Passos (Paralelo 42, de 1930), cita Flaubert com Madame Bovary, ainda no século XIX, dentre outros que trabalham com montagem de diálogos para sincronizar discursos e tempos.

FINTAS DE STERNE - Nunes nos dá o exemplo de um romance revolucionário em relação às técnicas narrativas para lidar com os tempos diversos: A vida e opiniões de Tristam Shandy, de Sterne.

"O tempo do ato de escrever é tão fugidio como o tempo cronológico, que se desloca de um ponto a outro - nisso consistindo a técnica do salto temporal (time-shift), gerador de anacronias, sem preenchimento dos períodos vazios (...) As anacronias em série de Vida e opiniões de Tristam Shandy complicam-se, ainda, em decorrência do recorte do tempo cronológico pelo tempo vivido, que contrasta, por sua vez, com o tempo do ato de escrita, que contrasta com o presente da narração, que contrasta com a temporalidade do leitor... A essa zombaria do tempo, o narrador opõe as fintas do discurso, legitimando o seu relato pelo efeito humorístico da trama temporal de uma narrativa episódica 'digressiva e progressiva' que, sem ter propriamente um enredo, enreda, conjuntamente, narrador e leitor." (p. 55)

Louco isso, heim!? Agora, após muitos anos de leitura de Machado de Assis, pelo menos uns 25 anos lendo o mestre do Cosme Velho, começo a entender por que ele cita Sterne em relação às técnicas de algumas de suas obras. Machado faz muito isso em seus contos e romances.

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"MACHADO DRIBLA - Como Sterne, Machado de Assis ousa fintar a fugacidade do tempo, com a diferença de que o dribla em lances mais extensivos, como em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), contando uma história a partir do fim, da morte do narrador para trás. Para trás caminha o Bentinho de Dom Casmurro (1899), num movimento de vaivém." (p. 55)

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No século XX, veremos novas mudanças nas formas de narrar dos romances. Nunes resume bem isso num parágrafo onde mostra a diferença de autores do XVIII e XIX para o XX:

"É claro que, tendo o privilégio de empregar os verbos relativos a processos internos, a narrativa ficcional nunca descurou da subjetividade, a que se inclina, por vocação, o romance. Enquanto, porém, os grandes ficcionistas dos séculos XVIII e XIX, como um Goethe, um Dickens, um Balzac, um Zola, 'interpretavam com segurança objetiva as ações, estados e caracteres de seus personagens', um Proust, descendo através da memória ao passado do narrador, ou uma Virgínia Woolf, adentrando-se na intimidade dos personagens - dos quais narra as mínimas alterações de pensamento -, interpretam ações, caracteres e estados pelo ângulo oscilante e incerto da experiência interna, a partir do qual as situações externas e objetivas se ordenam. O fluxo de consciência - the stream of consciousness, expressão de William James - será, na criação romanesca, o eixo principal da transformação do enredo." (p. 57)

O capítulo vai finalizando e o professor Benedito Nunes fala sobre a "duração interior" na questão do tempo no romance.

"A contrastação da duração interior com a impessoalidade e a objetividade do tempo cronológico é um dos principais condutos da tematização do tempo no romance." (p. 57)

Bergson vai dizer que a "duração interior" (durée) é o tempo verdadeiro. Achei isso muito interessante! E atual.

É isso, tive bons ensinamentos neste capítulo do livro O tempo na narrativa.

William



Bibliografia:

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. Série Fundamentos. Editora Ática, São Paulo, 1995.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

O beijo - Conto de Tchekhov



"A água corria não se sabia para onde e para quê. Correra de maneira idêntica em maio. Ainda em maio, saíra de um ribeiro para se derramar no grande rio, passara depois para o grande mar, evaporara-se, transformara-se em chuva e talvez fosse a mesma água que nesse instante corria aos olhos de Riabóvitch... Para quê? Com que fim?" (TCHEKHOV, 1995, p. 130)


Refeição Cultural

Após tomar contato com os primeiros contos de Anton Tchekhov - "Um caso clínico" e "Vanka" -, agora inicio a leitura das narrativas do autor contidas em um livro que tenho em casa, da coleção Imortais da Literatura Universal, que traz a peça teatral "As três irmãs" e mais alguns contos.

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O beijo - Tchekhov

O narrador nos apresenta uma brigada de artilharia que se prepara para montar acampamento e pernoitar na aldeia de Miestietchko. O tempo é apontado com exatidão: "Às oito horas da noite de 20 de maio...".

Os oficiais recebem a visita de um homem à paisana, montado num "cavalo estranho", que comunica a eles o convite do proprietário de terras local para que compareçam à casa dele para um chá. É o general Von Rabbek quem os convida.

Os oficiais foram a contragosto porque tinham lembrança de outro evento parecido no qual tiveram que passar a noite acordados ouvindo um conde se vangloriar de tudo. Mas de cara souberam que o convite era protocolar e nada parecido com o evento anterior.

O narrador nos apresenta o Capitão Riabóvitch como "o mais tímido, o mais modesto e o mais incolor dos oficiais de toda a brigada". Após o chá, os oficiais se reúnem aos demais convidados do general, familiares diversos, num salão com músicas e danças.

Riabóvitch, após andar pelo casarão com outros oficiais, se encontra só num salão escuro e recebe um beijo inesperado:

"(...) Nesse ínterim, inesperadamente para ele, ouviram-se passos apressados e um frufru de vestido, uma ofegante voz feminina murmurou: 'Até que enfim!' e dois braços macios, cheirosos, indiscutivelmente femininos, envolveram-lhe o pescoço; uma face tépida apertou-se contra a sua e, ao mesmo tempo, ressoou um beijo..." (TCHEKHOV, 1995, p. 120)

Após essa "pequena aventura" na casa dos Rabbek, a vida seguiu para Riabóvitch e os demais membros da brigada.

Assim como nos dois outros contos que li de Tchekhov, a estória não tem aquela estrutura tradicional de contos conforme nos ensina Poe em sua Filosofia da composição

Esse conto me lembrou a explicação que a professora Viviana Bosi nos deu sobre o autor russo, que nos seus contos "não necessariamente precisam acontecer coisas extraordinárias que se desenvolvam num clímax e desenlace óbvios" (BOSI, Viviana. Introdução a Tchekhov)

Para o personagem Riabóvitch, aquela aventura passou a fazer parte de suas boas recordações, assim como se lembrar dos entes queridos.

"Nas horas de ócio ou nas noites de insônia, quando lhe dava na veneta lembrar a infância, o pai, a mãe, em geral o que era próximo e querido, lembrava invariavelmente também Miestietchko, o cavalo estranho, Rabbek, a esposa dele, que lembrava a Imperatriz Eugênia, o quarto escuro, a fenda iluminada da porta..." (p. 128)

É isso, mais um conto de Anton Tchekhov.

William


Bibliografia:

TCHEKHOV, Anton. As três irmãs e contos. Coleção Imortais da Literatura Universal. Nova Cultural, 1995.


domingo, 25 de outubro de 2020

Vanka - Conto de Tchekhov


Tchekhov, imagem Wikipedia.

Refeição Cultural

Li hoje o segundo conto de Tchekhov. É um conto de gênero narrativo, mas é um conto dramático, porque é difícil não sentir o coração apertar ao ler a estória do garoto Vanka, uma criança órfã de nove anos de idade.

Segue abaixo alguns apontamentos que fiz durante a leitura.

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Vanka - Tchekhov


A estória introduz o garoto Vanka Jukov, de 9 anos de idade, deixado 3 meses antes em uma casa de sapateiro, Aliákhin, para que aprendesse o ofício. É noite de Natal. Vanka não saiu para a missa com os patrões e demais aprendizes. O garoto se prepara para escrever.

O garoto começa a escrever para seu avô. Cito abaixo. As aspas são do próprio texto.

“Querido vovô, Constantin Macáritch! – escreveu – te escrevo uma carta. Dou-lhe os parabéns pelo Natal e desejo a ti tudo o que te possa dar Deus, nosso Senhor. Não tenho pai nem mãezinha, só me ficou você no mundo”.

O avô de Vanka é guarda noturno em outra propriedade: “É um velhinho miúdo, magricela, mas extraordinariamente vivo e ligeiro, de uns 65 anos, com rosto sempre risonho e olhos ébrios”. Anda com dois cachorros, a velha Kachtanka e o machinho Viun “assim chamado por causa de sua cor preta e do corpo comprido, como de uma lontra”.

Após o narrador caracterizar o avô de Vanka, a narrativa retorna para o garoto e o leitor passa a ler o conteúdo da carta ao vovô Macáritch. É duro de ler, comovente, porque o menino descreve todas as infelicidades que enfrenta desde que foi deixado com Aliákhin.

“Vovozinho querido, não aguento mais, vou morrer. Eu já quis fugir para ir a pé até a aldeia, mas não tenho botas estou com medo do frio...”.

O garoto se lembra de tempos melhores do que o que está vivendo, quando estava na antiga casa onde vivia, antes de sua mãe Pielaguéia falecer, época inclusive em que lhe ensinaram a ler e a contar até cem.

“Vanka suspirou convulsivamente e fixou novamente os olhos na janela. Lembrou-se...” – o garoto segue com suas lembranças, mas quem nos conta é o narrador: 

“Quando ainda era viva a mãe de Vanka, Pielaguéia, e trabalhava de arrumadeira em casa dos senhores, Olga Ignátievna dava caramelos a Vanka e, por não ter o que fazer, ensinara-lhe as letras, contar até cem e, mesmo, dançar quadrilha. Mas, depois que Pielaguéia morreu, Vanka foi encaminhado para junto do avô, na cozinha da criadagem, e da cozinha para Moscou, à casa do sapateiro Aliákhin...”

O final deste conto tem um pouco de semelhança com o final do outro conto que li, “Um caso clínico”. O leitor tem um final aberto, com um fio de esperança para o personagem ou esperança no amanhã.

Na minha opinião, fica clara a postura de Tchekhov ao abordar tema tão duro como esse de maus tratos às crianças, tema de denúncia social sobre condições adversas para determinados grupos sociais. A condição do pequeno órfão Vanka é desesperadora.

Gostei dos textos de Tchekhov que li até agora.

William

Bibliografia:

TCHEKHOV, Anton. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo, Max Limonad, 1985.

Um caso clínico - Conto de Tchekhov


Tchekhov, imagem Wikipedia.

Refeição Cultural

Eu ainda não havia lido Anton Tchekhov. Não havia aparecido a oportunidade. Hoje, tomei contato com o autor através do conto "Um caso clínico", de 1898. 

O conto é muito interessante e muito atual em relação à temática que aborda: a condição da classe operária e as idiossincrasias que o modo de produção capitalista traz para as pessoas e para as relações sociais, inclusive de parcela dos beneficiários do sistema.

A leitura do conto está inserida no contexto de estudos da disciplina de Literatura Comparada II, que estou cursando com a professora Viviana Bosi, em meu curso de Letras na Universidade de São Paulo.

Segue abaixo, anotações que fiz durante a leitura do conto. É uma espécie de fichamento com observações que achei pertinentes em face dos textos que estou lendo sobre o tempo nas narrativas ficcionais.

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Um caso clínico - Tchekhov


Conto narrado em 3ª pessoa, discurso indireto livre. Narrador demiurgo, sabe o que personagens pensam e sentem.

Conforme li no texto de Benedito Nunes - O tempo na narrativa -, o conto utiliza tempos verbais no pretérito perfeito e no mais-que-perfeito, características comuns nas narrativas.

“O professor recebeu um telegrama da fábrica dos Liálikov...” 1º parágrafo. “O professor não foi pessoalmente, mas enviou seu assistente, Korolióv.” – fim do 1º parágrafo.

O 2º parágrafo é uma descrição de lugar e das coisas. Vemos tempos verbais de pretérito imperfeito, de ações continuadas, e verbos no gerúndio: “O cocheiro usava chapéu com pena...”; “Korolióv estava maravilhado com o entardecer...”.

No 3º parágrafo, que fala sobre o assistente Korolióv, temos o uso do mais-que-perfeito: “Ele nascera”; “nem visitara”; “tivera ocasião”. O narrador demiurgo, que tudo sabe, demonstra isso ao saber o que o personagem pensa: “pensava que”; “adivinhava em seus rostos”.

Descrição da moça adoentada, herdeira das fábricas: “Foram ver a doente. Completamente adulta, grande, de boa estatura, mas feia, parecida com a mãe, com os mesmos olhos pequenos (...), causou a Korolióv, no primeiro instante, a impressão de uma criatura infeliz, indigente, agasalhada por piedade naquela casa, e custava-lhe crer que fosse herdeira de cinco enormes edifícios”. 

Quando a moça começou a chorar, a imagem que Korolióv fazia dela mudou e ficou menos rude: “Via agora uma expressão suave e dolorida, tão inteligente, tão comovedora, e toda ela pareceu-lhe esbelta, feminina, singela, inspirando já uma vontade de acalmá-la...”. 

Ao ser solicitado para passar a noite na casa da convalescente, o assistente Korolióv observa o cenário do ambiente e nos transmite o que pensa, através do narrador demiurgo: “A cultura ali era pobre, o luxo, casual, sem sentido e sem conforto, como aquele uniforme...”. 

Através da governanta Khristina Dmítrievna, ficamos sabendo da condição da família. O marido Piotr Nicanóritch havia morrido há mais de um ano e viviam na casa as três: ela, a patroa e a filha de saúde frágil. Khristina estava com a família há onze anos e disse “É como se eu fosse da família”.

Exploração faz mal à saúde dos trabalhadores: o assistente Korolióv, após tentar ser convencido pela governanta que os operários da fábrica eram muito bem tratados – havia ali espetáculos teatrais e assistência médica -, avalia de forma magnífica o que significa a não condição de saúde do proletariado explorado. Descrição fantástica:

“Na qualidade de médico, aprendera a fazer juízo acertado sobre os males crônicos, de causa essencial desconhecida, o que os tornava incuráveis, e olhava para as fábricas como um mal-entendido, cuja causa era igualmente obscura e impossível de afastar. Quanto aos melhoramentos na vida dos operários, não os considerava supérfluos, mas comparava-os ao tratamento das doenças incuráveis”. 

A conclusão do assistente Korolióv é impressionante: quase dois mil trabalhadores explorados, uns cem chefetes que controlam eles, a dona da fábrica e a filha que nada aproveitam da situação, sendo infelizes e doentes, e só a governanta (a instruída) que tira proveito de tudo aquilo, comendo esturjão e tomando vinho bom. Fantástica análise do narrador/autor: 

“(...) e somente dois ou três dos chamados patrões aproveitam as vantagens de tudo aqui, embora absolutamente não trabalhem e desprezem aquela chita inferior. Mas, quais são essas vantagens e como são aproveitadas? Liálikova e a filha são infelizes, inspiram compaixão, e somente Khristina Dmítrievna, solteirona um tanto idosa e estúpida, de pince-nez, tira todo o prazer de sua vida ali. Conclui-se, portanto, que se trabalha naqueles cinco pavilhões e vende-se chita ordinária nos mercados do Oriente, unicamente para que Khristina Dmítrievna possa comer esturjão e tomar madeira.”

Tchekhov introduz uma questão fantástica no conto: o diabo. “Somente a governanta sente-se bem aqui e a fábrica funciona unicamente para satisfazer seus prazeres. Mas ela parece ser apenas uma espécie de testa-de-ferro. O mais importante de todos, aquele para quem se faz tudo aqui, é o demônio”.

As aspas acima são do próprio texto, ou seja, é o pensamento do personagem Korolióv.

O narrador alerta o leitor logo em seguida, a respeito das crenças do assistente: “E ele pensou no diabo, em quem não acreditava, e ficou olhando para as duas janelas iluminadas pelo fogo”. (a imagem descrita é perfeita)

A crítica do texto ao modo de produção capitalista é muito clara, ao menos para nós leitores do século XXI. “(...) no entanto, na mixórdia da vida cotidiana, na confusão de toda a miuçalha de que são tecidas as relações humanas, aquilo já não era uma lei, mas uma contradição, uma incompatibilidade lógica, pois tanto o forte como o fraco tombavam vítimas de suas relações mútuas, submetendo-se involuntariamente a alguma força diretriz, desconhecida, situada fora da vida, estranha ao homem”. 

A jovem Lisa, sozinha e acordada na madrugada, conversa com o assistente Korolióv e releva a ele que mais do que um médico, ela precisaria de uma pessoa amiga. Diz ler muito e ser solitária. “Os solitários leem muito, mas falam e ouvem pouco, a vida é um mistério para eles: são místicos e enxergam, muitas vezes, o diabo onde ele não está...”. 

O conselho que o assistente teria que dar a ela é que saísse daquele local, onde o diabo com olhos de fogo (a imagem da fábrica e as janelas iluminadas pelo fogo) espreitava ela o tempo todo: “E ele sabia o que lhe dizer. Via claramente que ela deveria deixar o quanto antes aqueles cinco pavilhões e o milhão, se o possuía; e deixar aquele demônio que ficava olhando de noite...”. 

A parte final do conto é muito boa. Da forma que lhe é possível, o assistente diz para Lisa que ela tem uma insônia de peso de consciência por saber da condição privilegiada que tem, uma “insônia digna”. O assistente Korolióv nutre alguma esperança no amanhã, com um mundo mais justo e igualitário, que sua geração não vai ver, mas que as próximas gerações verão.

Ótimo conto para conhecer Anton Tchekhov! O texto é de 1898.

William


Bibliografia:


TCHEKHOV, Anton. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo, Max Limonad, 1985.

Tempo (V)



Refeição Cultural

Domingo de chuva amena em Osasco, São Paulo. Diria que o tempo está belíssimo, posto que a chuva é refrescante e a natureza se beneficia dela. Nas últimas horas, o clima alternou sol e chuva.

Estou às voltas com textos teóricos que tratam das temáticas tempo, narrativa, história, literatura. Meus estudos se dão no contexto da disciplina que estou fazendo neste semestre na Universidade de São Paulo, a disciplina Literatura Comparada II, com a professora Viviana Bosi.

A primeira leitura do dia foi o capítulo 4 "Ó tempos! Ó verbos!" do livro de Benedito Nunes - O tempo na narrativa. Muito interessantes os conceitos abordados. Segundo Harald Weinrich, teríamos tempos verbais mais comuns à situação de narrar e outros à situação discursiva, de comentário. Porém as situações se mesclam também:

"Sem serem estanques, as duas situações de locução, narrar e comentar, se interpenetram. Podemos narrar empregando o presente e discorrer no pretérito se nosso interesse é o de conhecer o passado. O pretérito assinala que há narrativa, e não o fato de que esta se realiza para trás no tempo que passou." (NUNES, 1995, p. 40)

Nunes nos explica uma das relações criadas entre o autor e o leitor em uma obra ficcional narrativa, a criação de um conceito de "quase-passado". Vou citar o conceito abaixo porque ele chama muito a atenção. Nunes cita um autor no trecho, Paul Ricoeur.

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"Mas por que a narrativa ficcional, até a que transpõe para o futuro, 'conta o irreal como se o irreal fosse passado'?, pergunta Paul Ricoeur. Por que o passado subsiste e insiste na forma do pretérito? O pretérito guardaria esse privilégio devido à voz narrativa.

      disfarce fictício do autor real. Uma voz fala contando aquilo que se realizou para ela. Ingressar na leitura é incluir no pacto entre leitor e autor a crença de que os acontecimentos reportados pela voz narrativa pertencem ao passado dessa voz (Ricoeur).

É pois o leitor a quem essa voz se dirige, que atualiza o passado épico como um quase-passado. Em última análise, o tempo da narrativa não decorre somente das relações entre o autor fictício e o texto, mas depende também, das relações entre o texto e seu destinatário, o leitor." (p. 44)

Essa questão do pacto entre leitor e autor ou entre leitor e narrador ficcional é muito importante na leitura literária.

Textos teóricos como esse de Benedito Nunes, que citam diversas obras clássicas, deixam a gente ora meio diminuídos por não termos lido diversas delas, ora nos deixam orgulhosos quando já lemos algumas das obras citadas. 

Nunes já citou A montanha mágica (Mann), Cem anos de solidão (Márquez), Admirável mundo novo (Huxley), O processo (Kafka), A causa secreta (M. de Assis), obras que já li (eba!). Mas já citou tantas obras que não li, aff! Exemplos: Orlando (Woolf), O nome da rosa (Eco), Memorial do convento (Saramago), O castelo (Kafka) e por aí vai...

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Enfim, o roteiro da disciplina que estou fazendo é excelente, instigante! Agora vou ler a respeito de Tchekhov, e vou ver dois contos dele - Um caso clínico e Vanka. Na aula anterior, trabalhamos com Baudelaire, poeta que praticamente não conheço. Lemos alguns poemas dele.

Seguimos estudando, independente da fase da existência em que nos encontramos. Todo dia é dia de aprender algo novo. É melhor ocupar a mente com estudos do que com ódios e sentimentos destrutivos.

William



Bibliografia:

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. Série Fundamentos. Editora Ática, São Paulo, 1995.

sábado, 24 de outubro de 2020

241020 - Diário e reflexões



Refeição Cultural

Sábado, mais um dia que termina. Ontem não foi um dia muito diferente de hoje, o presente que escorre pelo ralo de um mundo-esgoto. O dia de amanhã pode ser igual, se não houver a morte, se o imponderável não alterar a rotina. 

Passado, presente e futuro ficaram muito iguais no mundo necrocapitalista, no mundo chato e insuportável da necropolítica do ódio e das fake news, do mundo sob pandemia mundial de um coronavírus, e com a maior parte da espécie humana idiotizada e robotizada pela ignorância multidimensional. 

O tempo físico avança inexoravelmente. O tempo psicológico está passando rapidamente. O tempo histórico dá sinais de que nós não vamos muito longe no tempo geológico de nosso mundo. Somos tão recentes e ao mesmo tempo somos tão finitos, tão insignificantes no planeta Terra e no Universo. 

Durante muito tempo em minha vida, vivi com uma muleta para meu caminhar capenga: eu dizia a mim mesmo que estava procurando alguma coisa, algo, talvez um sentido, felicidade ou o mais louco de tudo, paz. Eu havia escrito na minha lista de objetivos a alcançar que eu buscava a paz. Que loucura e falta de compreensão da existência! A balada da banda U2 era a minha música: I Still Haven't Found What I'm Looking For...

Minha busca está chegando ao fim.

A cada dia nos últimos meses mais percebo as coisas. Minha busca está chegando ao fim.

Eu esperava encontrar algo, um significado, um sentido, e começo a entender melhor as coisas. Tinha a ilusão de alcançar um estado de ser que não é possível, não da forma inocente e até infantilizada que imaginava. Paz, amor, felicidade, solidariedade, liberdade, amizade... 

Minha busca está chegando ao fim.

Por que escrevo ainda neste blog? Já me perguntei se escrevo por vaidade, por solidão, por engajamento, por querer compartilhar o que sei. Talvez seja por tudo um pouco. 

Um jornalista escreve porque é jornalista. Um escritor escreve porque é escritor. Um "produtor de conteúdo" escreve porque é "produtor de conteúdo". Intelectuais, educadores, cientistas, políticos, filósofos e pensadores escrevem para divulgar suas opiniões e seus conhecimentos.

As pessoas escrevem porque querem escrever, porque podem escrever.

Chega por enquanto. 

William


Tempo (IV)



Refeição Cultural

Muito interessante a leitura do capítulo 3 do livro O tempo na narrativa, de Benedito Nunes. O educador nos fornece novos conceitos após nos explicar sobre o tempo da história e o tempo do discurso.

Em linhas gerais, a obra literária épica ou narrativa possui 3 planos: "o da história, do ponto de vista do conteúdo, o do discurso, do ponto de vista da forma de expressão, e o da narração, do ponto de vista do ato de narrar." (NUNES, 1995, p. 27)

O tempo da história é o do imaginário, ele é pluridimensional, diferente do tempo do discurso, que é em geral linear.

É comum nos textos literários uma anacronia nos tempos, uma discordância entre o tempo do discurso e o tempo da história. É possível narrar um longo acontecimento da história dentro do romance de forma rápida e o contrário também, contar um acontecimento rápido de forma mais longa no discurso, no texto escrito ou narrado verbalmente.

"AS VARIAÇÕES NO TEMPO - O tempo da narrativa, explicitado pela teoria da literatura, é, ao lado do ponto de vista o foco, do modo de apresentação e da voz, uma das categorias do discurso." (p. 30)

ORDEM - Os acontecimentos no romance podem ser narrados de diversas formas, pelo início mesmo, pelo fim ou pelo meio da ação, chamado de in media res.

As formas de composição da narrativa são variadas e muito interessantes. Os retrospectos (analepse) e as prospecções (prolepse) são muito utilizados.

"Assim, a narrativa pode desenvolver-se na ordem inversa à cronológica, deixando em aberto sequências posteriormente completadas num movimento para trás..." (p. 32)

Olha que interessante o começo do Cem anos de solidão, de García Márquez, no qual Benedito Nunes denomina a composição como "antecipação de um retrospecto (prolepse analéptica)":

"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que seu pai levou-o a conhecer o gelo." (p. 32)

DURAÇÃO - O texto nos explica a questão das variações de duração, entre o tempo dos acontecimentos na história narrada e o tempo despendido para narrar os acontecimentos. Nunes cita A montanha mágica, de Thomas Mann para nos dar exemplos. Esse clássico felizmente eu li.

"Em suma, a história que leva um tempo imaginário breve, cronologicamente delimitado, pode desenvolver-se num discurso longo, em desproporção com aquela, e ainda assim parecer de curta duração. No entanto, para compreendermos essa aparência, bem como o seu inverso, a longa duração de uma história, cronologicamente dilatada dentro de um discurso reduzido, teremos que abandonar o referencial quantitativo da extensão ou do comprimento (longo/curto) pelo qualitativo de andamento, que importa em diferença de velocidade (vagaroso ou lento/célere ou rápido)." (p. 33)

E cita Mann:

"Sabe-o o próprio narrador de A montanha mágica ao dizer-nos que o tempo do conteúdo da história pode ultrapassar enormemente o da duração da narrativa, por uma espécie de exageração, semelhante ao processo mórbido, familiar aos tomadores de ópio, da passagem célere, em poucos minutos, de algumas dezenas de anos, e que é um 'feitiço hermético' da arte de narrar." (p. 33)

FIGURAS DE DURAÇÃO - Aqui Nunes nos lembra das ferramentas muito comuns nos romances: o sumário, a cena, o alongamento, a pausa e a elipse.

O sumário, comum nos romances românticos ou realistas, "abrevia os acontecimentos num tempo menor do que o de sua suposta duração na história, imprimindo (...) rapidez à narrativa.

O alongamento tem efeito oposto ao do sumário, o tempo do discurso dura mais do que o da história. Entre eles está a figura da cena. "Um movimento requer paragens e interrupções, assim como a narrativa, pausas e elipses. O tempo da história pára e o do discurso prossegue, na pausa que corresponde à descrição, um quadro estático salientando o espaço na ficção realista-naturalista. Equivalente ao corte na linguagem cinematográfica, a elipse é um curto-circuito: anula o tempo do discurso enquanto prossegue o da história." (p. 35)

FIGURAS RETÓRICAS - "Pode-se ver, então que o sumário, o alongamento, a cena, a pausa e a elipse são figuras retóricas avalizadoras do estatuto fictício do texto..." (p. 35)

FREQUÊNCIA - "noção distinta das de ordem e duração, certamente não fica à parte desse sistema, porquanto se relaciona com a repetição, um dos dados preliminares da experiência comum do tempo..." (p. 36)

A frequência é a capacidade do discurso de "reproduzir" os acontecimentos recorrentes. O verbo no imperfeito permite isso: 

"O imperfeito marca o prolongamento de um estado, como escreveu Proust a propósito da diferença dos modos de representar as ações e as coisas, que resultam da transição sutil, característica do subjetivismo de Flaubert em A educação sentimental, no emprego desse tempo em contraste com o presente do indicativo, o particípio presente e o pretérito perfeito. Esse último é o tempo canônico da narração, que singulariza as ocorrências." (p. 37)

Fim do capítulo...

William


Bibliografia:

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. Série Fundamentos. Editora Ática, São Paulo, 1995.


sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Tempo (III)



"Enquanto Macondo festejava a reconquista das lembranças, José Arcadio Buendía e Melquíades sacudiram a poeira da velha amizade. O cigano estava disposto a ficar no povoado. Tinha estado à morte, realmente, mas tinha voltado porque não pôde suportar a solidão. Repudiado pela sua tribo, desprovido de toda faculdade sobrenatural como castigo pela sua fidelidade à vida, decidiu se refugiar naquele cantinho do mundo ainda não descoberto pela morte, dedicado à exploração de um laboratório de daguerreotipia. José Arcadio Buendía nunca tinha ouvido falar desse invento. Mas quando se viu a si mesmo e a toda a sua família plasmados numa idade eterna sobre uma lâmina de metal com reflexos, ficou mudo de espanto..." (MÁRQUEZ, Record-Altaya, p. 52/53)


Refeição Cultural

"Tinha estado à morte, realmente, mas tinha voltado porque não pôde suportar a solidão."

Que expressão profunda essa! Fiquei imaginando as vítimas da pandemia de Covid-19 isoladas em biombos, com toda a parafernália tecnológica que salva vidas, ou sem elas, se não houver recursos, a suportar a solidão, e lidando com o risco de morte. Dura realidade que poderia ocorrer em quantidade menor de casos, se as vítimas não estivessem em grandes países sob controle político de trogloditas "liberais" de direita.

E pensar que os políticos de direita que causam a morte de milhares de pessoas por Covid-19, por fazerem o oposto das recomendações das autoridades de saúde, são os legítimos representantes das elites e das casas grandes que simbolizam séculos de exploração e dominação das maiorias de pessoas sem posses, sem direitos e sem cidadania.

Estou lendo o livro O tempo na narrativa, de Benedito Nunes, é já tomei conhecimento de diversos conceitos a respeito do tempo. Já fazia um certo tempo que havia estudado a temática e a leitura está me trazendo de volta conceitos e reflexões que vieram em momento muito pertinente, tanto para a minha vida pessoal, quanto para o momento social e coletivo em que nos encontramos.

Na Poética, de Aristóteles, temos uma rara referência ao espaço em relação ao tempo: "Silencia a respeito do espaço, e apenas uma vez, para reforçar a distinção entre epopeia e tragédia, refere-se expressamente ao tempo. Enquanto a tragédia limita-se, tanto quanto possível, ao período de um dia, a epopeia tem duração ilimitada." (NUNES, 1995, p. 7)

Na sequência da citação acima, o texto segue apresentando conceitos e referências. Uma tragédia, apresentação dramática através de personagens e com público presente, não deve passar de algumas horas de apresentação. Mas tanto a tragédia quanto a epopeia são gêneros que se baseiam na mimese: "a mímesis praxeos, imitação ou representação da ação, que cada uma realiza de forma diferente, a primeira pela atuação dos personagens, e a segunda pela narração." (p. 7)

Depois, vimos os conceitos de tempo físico e psicológico, tempo cronológico e tempo histórico, tempos linguísticos e tempos verbais. Aqui podemos lembrar rapidamente de temas como a hora que não passa quando estamos no aguardo de algo que queremos; as eras que já marcaram a vivência dos povos do mundo; as diversas formas que as línguas têm de marcar os tempos como modo, pessoas, aspectos etc.

Leitura do capítulo três, "Os tempos da narrativa". Em relação à obra literária de caráter épico ou narrativo, existem 3 planos: "o da história, do ponto de vista do conteúdo, o do discurso, do ponto de vista da forma de expressão, e o da narração, do ponto de vista do ato de narrar." (p. 27)

Citando Todorov, Nunes nos explica a diferença entre o tempo do discurso e o tempo da história, podendo ser o tempo da história pluridimensional. A história, o enredo, pode ter diversos eventos ao mesmo tempo, mas todos devem ser apresentados de forma linear no tempo do discurso.

(É um saco quando eventos externos, do ambiente externo em relação ao local onde estamos concentrados na leitura, nos atrapalham a leitura. encerro o estudo neste momento)

William


Bibliografia:

MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Tradução de Eliane Zagury. Coleção Mestres da Literatura Contemporânea. Editora Record/Altaya.

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. Série Fundamentos. Editora Ática, São Paulo, 1995.


quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Cem anos de solidão: Macondo e a pandemia



Refeição Cultural

Cem anos de solidão... O tempo de cem anos poderíamos contar como um tempo físico ou natural, cósmico, de cem movimentos de translação da Terra sobre o Sol. Mas imaginem um tempo desse na condição que o qualifica: de solidão. É um tempo psicológico duríssimo! É muita solidão!

Ao reler algumas dezenas de páginas do clássico de Gabriel García Márquez, voltei a sentir a emoção que nos abraça a cada página da história dos Buendía. A ficção nos põe a todo instante em contato com situações e contextos que espelham a nossa dura realidade num mundo de pandemia mundial de Covid-19, num mundo de ignorância e misérias impensáveis para uma época posterior a séculos de ciências e avanços nas culturas humanas.

Por mais que José Arcadio Buendía altere momentos de completa loucura e alucinações e momentos nos quais ele é o líder e a referência de toda sua aldeia - Macondo -, gostaríamos de um comportamento minimamente responsável como o dele por parte de nossos governantes no caso da pandemia do novo coronavírus, que virou disputa política e dane-se a população. O personagem teve um comportamento digno ao lidar com a peste da insônia. Infectada toda a família Buendía, e depois toda Macondo, ele tentou evitar que a peste se alastrasse para outras pessoas e outras comunidades.

"Quando José Arcadio Buendía percebeu que a peste tinha invadido a povoação, reuniu os chefes de família para explicar-lhes o que sabia sobre a doença da insônia, e estabeleceram medidas para impedir que o flagelo se alastrasse para as outras povoações do pantanal..." (MÁRQUEZ, Record-Altaya, p. 49)

Após as medidas de isolamento social e quarentena feitas pela comunidade de Macondo, foi possível que os locais tentassem retornar a sua vida cotidiana e desenvolvessem técnicas para conviver com as consequências da peste da insônia. Os forasteiros não podiam comer e beber em Macondo, para não se contaminarem e espalharem a doença para outras localidades... juro pra vocês, esse romance foi escrito e publicado em 1967 e reflete nesta passagem o que estamos enfrentando mundialmente com os piores líderes que poderíamos ter em grandes países.

"(...) Não se lhes permitia comer nem beber nada durante a sua estada, pois não havia dúvidas de que a doença só se transmitia pela boca, e todas as coisas de comer e de beber estavam contaminadas pela insônia. Desta forma, manteve-se a peste circunscrita ao perímetro do povoado. Tão eficaz foi a quarentena, que chegou o dia em que a situação de emergência passou a ser encarada como coisa natural e se organizou a vida de tal maneira que o trabalho retomou o seu ritmo e ninguém voltou a se preocupar com o inútil costume de dormir." (p. 50)

Assim são os clássicos da literatura universal.

William



Bibliografia:

MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Tradução de Eliane Zagury. Coleção Mestres da Literatura Contemporânea. Editora Record/Altaya.

Tempo (II)



"Daí a irreversibilidade do tempo físico, que tem uma direção. Irreversível é também, de outra maneira, o tempo vivido, pois que ficou para trás o sabor do ovo comido ontem e o prazer da água há pouco bebida. Mas a sua direção, que lhe empresta o atributo da finitude, segue, de momento a momento, entre passado e futuro, a linha fugidia dos instantes vividos, encurtada à proporção que a vida se alonga, aproximando-nos da morte." (NUNES, 1995, p. 19)


Refeição Cultural

O que é o tempo? Existe passado e futuro, ou só o presente? Existe o presente, já que a cada instante o presente já se tornou passado? Os acontecimentos de ontem no mundo são passado ou fazem parte de um tempo presente? As coisas a serem feitas (coisas cotidianas programadas) ou que vão acontecer amanhã ou depois de amanhã, ou até mesmo no próximo mês, são futuro ou pertencem ao presente?

Estou lendo textos que refletem essa antiga e intrigante questão humana sobre o tempo. Quando paramos para refletir sobre o tempo, algo estranho sentimos. A coisa nos incomoda. Deve ser por isso que pouca gente pára para pensar no tempo, ninguém gosta de sentir incômodo ou desconforto. "Pensar dói?" já questionava um artigo de Thomaz Wood Jr. que li tempos atrás (ler aqui) e que avaliava o quanto os seres humanos do mundo pós tecnologias da comunicação e redes sociais estavam deixando de pensar com profundidade sobre as coisas.

Existem vários conceitos de tempo e lendo o livro O tempo na narrativa, de Benedito Nunes, é possível compreender um pouco essa questão tão presente em nossa existência.

"Alinhamos cinco conceitos diferentes - tempo físico, tempo psicológico, tempo cronológico, tempo histórico e tempo linguístico - que diversificam uma mesma categoria, combinada à quantidade (tempo físico ou cósmico), à qualidade (tempo psicológico) ou a ambas (tempo cronológico), esse último aproximando-se do primeiro pela objetividade e opondo-se à subjetividade do segundo, cuja escala humana difere da do tempo histórico e da do tempo linguístico, ambos de teor cultural." (p. 23)

Ontem, olhava papéis e documentos que fazem parte da minha história enquanto pessoa e nossa história enquanto ser social, que se insere em um mundo real, que pertence ou pertenceu a determinadas comunidades e agrupamentos, a um lugar, enfim, registros do passado individual e coletivo. Ao trazê-los ao presente, não tem como não sentir coisas diversas, saudosismo, indignação, tristeza, orgulho. E o que vale o passado vivido neste presente que vivemos? Praticamente nada. Quase nada.

Devo aceitar que a vida é assim?

William


Post Scriptum: as primeiras reflexões sobre as leituras dessa temática estão na postagem que fiz ao ler o primeiro texto teórico da disciplina de Literatura Comparada II, com a professora Viviana Bosi, texto de Mircea Eliade. Ler aqui.


Bibliografia:

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. Série Fundamentos. Editora Ática, São Paulo, 1995.


segunda-feira, 19 de outubro de 2020

7. Las venas abiertas de América Latina - Eduardo Galeano



"Es mucha la podredumbre para arrojar al fondo del mar en el camino de la reconstrucción de América Latina. Los despojados, los humillados, los malditos tienen, ellos sí, en sus manos, la tarea. La causa nacional latinoamericana es, ante todo, una causa social: para que América Latina pueda nacer de nuevo, habrá que empezar por derribar a sus dueños, país por país. Se abren tiempos de rebelión y de cambio. Hay quienes creen que el destino descansa en las rodillas de los dioses, pero la verdad es que trabaja, como un desafío candente, sobre las conciencias de los hombres. Montevideo, fines de 1970." (GALEANO, 2010, p. 337)


Refeição Cultural - Cem clássicos

Terminei hoje a leitura desta obra clássica monumental, Las venas abiertas de América Latina (1970), do escritor e jornalista Eduardo Galeano, que faleceu em abril de 2015. A obra tem a idade de uma vida humana, a minha, por exemplo. A leitura é angustiante, apesar de necessária. 

Se eu tivesse que indicar somente um livro para os jovens latino-americanos, um só, eu indicaria este livro. Sem dúvidas, ele despertaria nos jovens com algum grau de consciência política e patriotismo o desejo de lutar por Nuestra América, como dizia José Martí.

Ganhei esta edição de minha companheira em 2015, quando era dirigente nacional de uma entidade de saúde de autogestão, por sinal uma entidade que representa tudo aquilo que Galeano aborda em seu maior clássico: uma associação de trabalhadores sul-americanos que tenta sobreviver de forma sustentável e solidária em meio a um mercado capitalista de saúde, mercado imperialista, com concorrência desleal por parte do setor que tem ainda o apoio dos governantes de plantão.

Como já descrevi nas postagens que faço, o livro de Galeano era mais um dos diversos livros que leio ao mesmo tempo, que inicio e nunca termino. O meu livro tem uma peculiaridade: ele viajou comigo por aí. Foi comigo à terra natal do autor, Uruguai, a Montevidéu e Colônia de Sacramento. 

A leitura havia se dado em 2016, o ano do golpe de Estado no Brasil. Naquele momento, eu havia lido os capítulos um e dois da primeira parte - "La pobreza del hombre como resultado de la riqueza de la tierra" - e a descrição que ele fazia era como se estivesse descrevendo o que estava ocorrendo no Brasil sob golpe com os mesmos atores de sempre, os Estados Unidos e as burguesias vira-latas de séculos. Foi demais pra mim! Era muito deprê... Acabei parando a leitura.

Ao retomar a obra de Galeano agora, com o Brasil e o continente Sul-Americano destroçados por golpes de Estado e sob domínio do império americano, foi necessário resgatar muita força de vontade interior e seguir lendo e estudando; afinal de contas, só o conhecimento nos liberta do jugo da ignorância e nos faz pessoas melhores e mais conscientes, mesmo que não possamos mudar o mundo e a realidade sob domínio da violência do necrocapitalismo.

O livro de Eduardo Galeano é um livro que congrega diversos gêneros discursivos e literários, é um livro de Economia, de História, de Geografia; é um livro de Antropologia e Geologia. Não deixa de ser um romance histórico e uma autobiografia, sobretudo porque é uma autobiografia dos povos originários, de criollos e de latino-americanos. É um senhor clássico da literatura universal.

Antes, eu fazia postagens demasiadamente trabalhosas, com diversas citações da obra lida. Não vejo mais sentido nisso hoje. Está feito o registro do quanto o livro é fantástico e necessário. Aos que se interessarem, leiam e se libertem do jugo ideológico do capitalismo imperialista que nos escraviza e nos destrói.

William


Bibliografia:

GALEANO, Eduardo. Las venas abiertas de América Latina. Siglo Veintiuno Editores, Buenos Aires, 2010.


domingo, 18 de outubro de 2020

6. Cem anos de solidão - Gabriel García Márquez



"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos..." (MÁRQUEZ, Record-Altaya, p. 7)


Refeição Cultural - Cem clássicos

Uma das lembranças que mais se destacam em minhas memórias quando penso no clássico de Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão (1967), é a ressonância que o nome da obra estabelecia dentro de mim desde muito cedo em minha vida. Acho que o nome já me impactava desde que era trabalhador braçal até uns vinte anos de idade. 

A ideia de uma solidão secular martelava dentro de minha cabeça... cem anos de solidão... eu me identificava muito com essa ideia, com esse conceito, mesmo sem saber ao certo o porquê.

Na edição que tenho está registrada a data de novembro de 1999 como data final da leitura do livro. Eu tinha 30 anos de idade. 

Me lembro de uma frase em inglês que de vez em quando vinha em minha mente quando o sentimento de solidão aparecia: "alone in the crowd". A sentença era de um livro de inglês no qual estudei na adolescência e o texto vinha ilustrado com a foto de uma mulher numa mesa de café entre diversas mesas de café em uma calçada dessas de lugares turísticos. Estar sozinho mesmo em meio à multidão...

Cem anos de solidão... o conceito é profundo! Acho que a ideia pode sintetizar o que nós latino-americanos sentimos ao longo de nossas vidas de cidadãos de países subdesenvolvidos e explorados pelos imperialismos seculares. 

Aquele tipo de solidão que significa impotência, desesperança, fundo do poço. Solidão é a coisa que poderia sintetizar aquilo que sentimos neste momento da história, vivendo sob a pandemia mundial de Covid-19 que desgraçou a vida dos mais pobres e da classe trabalhadora e vivendo sob a eterna dominação do imperialismo do Norte, que destrói há séculos a todos nós, como denuncia Eduardo Galeano em As veias abertas da América Latina.

Estamos sós, talvez como nunca antes. Não temos um Estado que nos apoie, não temos um governo que esteja ao nosso lado. As instituições do Estado, do Estado burguês, elas não funcionam mais. Tudo se desfez após o golpe de 2016. As organizações formais que deveriam nos dar alguma esperança ou noção de não estarmos sós, elas também estão burocratizadas, endurecidas, anos-luz de nós, inclusive os partidos, sindicatos e organizações coletivas. Estamos sós... parece uma solidão como o nome da obra de García Márquez.

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"Por fim, numa terça-feira de dezembro, na hora do almoço, soltou de uma vez todo o peso do seu tormento. As crianças haviam de recordar pelo resto da vida a augusta solenidade com que o pai se sentou na cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado pela prolongada vigília e pela pertinácia da sua imaginação, e revelou a eles a sua descoberta:

- A terra é redonda como uma laranja...

Úrsula perdeu a paciência. 'Se você pretende ficar louco, fique sozinho', gritou. 'Não tente incutir nas crianças as suas ideias de cigano'. José Arcadio Buendía, impassível não se deixou amedrontar pelo desespero da mulher que, num impulso de cólera, destroçou o astrolábio contra o solo" (p. 11)

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Como leitor e cidadão do mundo que se acaba no século XXI, só posso concordar com Úrsula ao achar que José Arcadio Buendía era louco mesmo... qualquer um hoje em dia sabe que a Terra é plana como nos ensinam os líderes de direita e as seitas que infestam o mundo físico e virtual que habitamos.

Ironias à parte, a literatura e as ficções são criações tão maravilhosas que muitas vezes autores e estórias superam temporalidades, épocas, estilos, modelos, geografias, e se perpetuam como narrativas a serem lidas para sempre (enquanto durem ou enquanto dure o mundo dos humanos).

Cem anos de solidão é uma das obras clássicas que me marcaram muito antes de ler, durante a leitura e nestes anos todos após a leitura. Gostaria de reler o clássico, inclusive tenho uma bela edição comemorativa de 40 anos da publicação, na língua original, e quem sabe um dia eu não releia essa estória fantástica.

William


Bibliografia:

MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Tradução de Eliane Zagury.  Coleção Mestres da Literatura Contemporânea. Editora Record/Altaya.


sexta-feira, 16 de outubro de 2020

5. A morte de Ivan Ilitch - Lev Tolstói



"'Será possível que eu me tenha enfraquecido tanto mentalmente? - disse de si para consigo. - Bobagem! É tudo tolice, não devo entregar-me à hipocondria e, tendo escolhido determinado médico, preciso seguir estritamente o seu tratamento. É assim que vou agir...' (...) Era fácil dizê-lo, mas impossível executar. A dor do lado não cessava de atormentá-lo, parecia cada vez mais forte, tornava-se permanente, o gosto na boca era cada vez mais esquisito, estava com a impressão de ter hálito asqueroso, e cada vez tinha menos apetite, menos forças. Não podia mentir a si mesmo: acontecia nele algo terrível, novo e muito significativo, o mais significativo que lhe acontecera na vida. E era o único a sabê-lo, todos os que o cercavam não compreendiam ou não queriam compreender isso, e pensavam que tudo no mundo estava como de costume. E isto atormentava Ivan Ilitch mais que tudo..." (TOLSTÓI, 2007, p. 41)


Refeição Cultural - Cem clássicos

Estou fazendo um apanhado geral das leituras de livros clássicos que li ao longo da vida. 

O momento no qual nos encontramos é propício para isso, porque a vida parou após o aparecimento da pandemia mundial de Covid-19. O mundo parou. Depois recomeçou. E o novo "normal" não é normal, é uma porcaria. 

De certa forma, os avanços sociais que haviam sido conquistados em décadas e séculos de lutas dos povos retrocederam em favor dos poucos donos do mundo, os capitalistas. 

Presos à nova realidade, aqueles que têm como se manter, têm uma oportunidade de preencherem o espaço de seus tempos ociosos com coisas desse tipo - ler, escrever, criar, organizar coisas domésticas -, coisas a serem feitas no espaço de seus lares, confortáveis lares em geral, já que os que podem fazer isso são a minoria das minorias. 

A maioria esmagadora precisa estar na rua, buscando uma forma de sobreviver, está lá fora com o vírus e com a violência do necrocapitalismo. Todos - privilegiados e desassistidos de tudo - estão sob o risco da morte morrida, aquela de AVC, infarto, câncer, doenças tratáveis e não tratadas, acidentes fatais etc. A maioria pobre e sem direitos sociais, porém, está sob o risco da morte matada, que são diversas as formas, e cujos responsáveis são, via de regra, os donos do poder.

Enfim, a postagem é para apurar minhas leituras clássicas. 

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Li A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, três vezes. Cada leitura contou com um contexto e com um leitor diferente. Como escrevi neste blog as impressões das três leituras, fiquei surpreso ao reler a postagem de cada uma delas. Muito interessantes!

A primeira leitura, em 2008, foi motivada pela história do jovem Chris McCandless, que ficou conhecido postumamente após vir a público sua aventura no Alaska, através do livro e do filme Na natureza selvagem. Nosso nobre Alex Supertramp, nosso superandarilho, tinha alguns livros contigo durante suas andanças e busca de felicidade. A morte de Ivan Ilitch era um deles. Eu fiquei acabado, destruído e demorei a me recuperar após ver o filme e ler o livro sobre Chris McCandless. Para ler a postagem é só clicar aqui.

Na segunda leitura, em 2012, eu havia concluído que precisava reler o clássico de Tolstói porque percebi que não havia fixado na memória as questões principais da novela sobre o senhor Ilitch. Minha sobrinha havia me perguntado sobre a obra e eu não soube falar a respeito dela. Também não tinha tanto encantamento pela novela quanto meus companheiros do movimento sindical. A releitura foi muito boa pelo que se percebe na postagem. Ler aqui.

A terceira vez que li a novela foi em 2017, eu era dirigente e gestor de saúde. Meu olhar na leitura teve muito dessa nova experiência que eu havia incorporado em minha vida. Também foi uma leitura bastante interessante. Ler comentário aqui.

É isso. Pelo que percebi, cada vez que abordo uma leitura clássica já realizada, buscando sentimentos e lembranças nas anotações e nas dobras da memória, vejo que ela teve alguma importância para mim, tendo consciência ou não a respeito dos efeitos da leitura. Os teóricos e críticos literários falam sobre isso, que as grandes obras nos marcam, independente de lembrarmos delas lá na frente ou não.

William


Bibliografia:

TOLSTÓI, Lev. A morte de Ivan Ilitch. Tradução de Boris Schnaiderman. Editora 34, São Paulo, 2007.