Refeição Cultural
Osasco, 20 de abril de 2022. Quinta-feira.
Ando sem vontade alguma de escrever. Estou pensando com seriedade em deixar todas ou algumas das mídias sociais que se tem por aí. Essas mídias das plataformas das big techs acabaram mudando o comportamento humano, os seres humanos. Mesmo sabendo disso, não é fácil deixar de existir nas redes sociais e virtuais. Desconectar-se é mais difícil que deixar de usar qualquer droga ou abandonar um vício ou hábito. No mundo de hoje não existir nas redes é quase como não existir em carne e osso. E não é fácil desaparecer do mundo virtual e só existir, ser natureza. Aliás, as sociedades modernas com essas tecnologias virtuais nos obrigam a estar catalogados e "logados" até para acessar os direitos mais comezinhos da cidadania.
Ao andar por aí, fico observando de forma discreta, meio de soslaio, as pessoas ao meu redor. Os humanos parecem robôs, animais mamíferos andando por aí como os gados em pastos ou granjas (cercadinhos ou bolhas virtuais e presenciais), como os semoventes das propriedades capitalistas - animais que pertencem a alguém, do tipo vaca, galinha, humano escravizado -, somos animais humanos com as caras nas telas dos aparelhos conectados nas plataformas das big techs. Nunca imaginaria ser tão real aquela cena do filme Matrix (1999) na qual todos os humanos estão em ovos cheios de tubos, usados como baterias de energia do sistema central daquela sociedade distópica (estamos na distopia?).
Observo as pessoas ao meu redor ou nas imagens dos mundos virtuais: as pessoas caminhando no Parque do Sabiá no fim da tarde - tão diferentes, mas tão iguais, pois elas têm padrão determinado pelo sistema -; as pessoas no pequeno zoológico de Uberlândia, o pai chamando de "raposinha" um cachorro do mato com a placa de identificação bem na frente dele - estamos nos tornando analfabetos -; a atendente com quase trinta anos de idade que não sabe ou nunca ouviu falar do país chamado Cuba; um adulto hoje mal sabe o nome de uma ave comum de sua região - sabiá, bem-te-vi, joão-de-barro viraram tudo "passarinho".
O mundo todo foi terceirizado e uberizado, ninguém sabe mais porra nenhuma de assunto nenhum. As fontes de informação são fontes de desinformação e as referências do gado humano são influenciadores que não sabem porra nenhuma de assunto nenhum. Mas falam de tudo e influenciam milhões de animais humanos. As plataformas de busca virtuais têm algoritmos por trás e qualquer busca é direcionada de forma parcial, enviesada, com ideologia ou com objetivos de lucro no resultado de qualquer pesquisa on-line.
Com a vitória da desinformação no mundo humano do século 21, não temos mais segurança para confiar em nada e em ninguém. Isso facilitou assassinar reputações de pessoas físicas e jurídicas honestas com fake news e acusações sem provas e facilitou a vida dos piores criminosos e corporações de seguirem impunes pelo poder que têm em pautar nas redes e grupos de poder suas versões das coisas (pós-verdade).
Aff... que cansaço descrever o mundo atual!
As tecnologias que nós humanos criamos foram usadas por grandes corporações do mundo do capital para mudar o nosso comportamento. A lógica da dominação de massas por pequenos grupos existe desde sempre, desde nossa evolução no mundo animal. O que mudou em relação aos povos e culturas e impérios do passado é a capacidade das novas tecnologias em dar escala à manipulação humana global.
Quando tento discutir a respeito da tendência atual do uso das tecnologias inviabilizarem a sobrevivência do homo sapiens sapiens com algumas pessoas que considero estudiosas ou intelectuais que estudam o mundo humano e que de alguma forma atuaram na política nas últimas décadas, praticamente todas dizem que não tem o que ser feito porque não se pode parar ou retroceder em tecnologias que criamos. Então, tá...
Entendo que os seres humanos já interromperam o uso de tecnologias que foram criadas no último século e que poderiam inviabilizar a espécie humana e todas as demais espécies animais e vegetais. A sequência de décadas desenvolvendo bombas atômicas em meados do século 20 deixou claro que se algumas delas fossem usadas a vida na Terra praticamente seria extinta. Com isso, tratados internacionais foram feitos naquele momento e soluções foram dadas para que não se tornasse algo corriqueiro ficar lançando bombas atômicas em comunidades humanas como fizeram os norte-americanos em Hiroshima e Nagasaki, no Japão, nos dias 6 e 9 de agosto de 1945.
Ou seja, se estão desfazendo os seres humanos por que não frear e rever essas tecnologias de redes sociais, algoritmos e IA?
As tais tecnologias de comunicação dominadas por algumas corporações, as big techs, têm hoje um poder de manipular e alterar o comportamento de forma permanente de bilhões de seres humanos, têm a capacidade de interferir nas decisões políticas das comunidades e inviabilizar a soberania de países do mundo inteiro, e estão fazendo isso, e essas tecnologias atuais se concentram cada dia mais e estão na mão de menos seres humanos, a ponto de podermos citar uns dez nomes de pessoas que dominam o mundo todo. Isso não pode continuar assim, mas parece que nada pode ser feito porque na hora de se debater sobre a questão os senões predominam - é a liberdade blá blá blá - e tudo segue como está seguindo... pro fim do mundo humano. Estudos têm demonstrado que os humanos estão perdendo suas capacidades humanas - comunicação, inteligência, sociabilidade etc.
E nós não conseguimos mais estabelecer diálogos entre nós humanos, não conseguimos porque nosso comportamento foi alterado e muitos de nós não percebemos isso. No meu espectro político de esquerda, por exemplo, não existe mais espaço para divergência de ideias, ou somos apoiadores de alguns líderes tratados como deuses inquestionáveis e infalíveis, ou não somos mais nada, somos vaporizados, já não existimos. Isso no campo da esquerda e dos grupos democráticos. No outro espectro o mundo sempre foi o do mandonismo de quem detém o poder e da obediência canina de quem não tem e quer sobreviver: "manda quem pode, obedece quem tem juízo".
Não temos mais paciência sequer com as pessoas mais próximas, na família, no rol de amigos e conhecidos. Se discorda de mim, já cresço a voz e o outro já sacode a cabeça negativamente. Ninguém está aberto a ouvir qualquer coisa que não seja uma concordância... é o que estamos nos tornando.
Enfim, já escrevi muito nesta postagem-desabafo.
O receio de não escrever é emburrecer, é deixar de ter a capacidade mínima de uma pessoa alfabetizada e com consciência e formação política. O cérebro é plástico e adaptável como nos ensina o professor e neurocientista Miguel Nicolelis. Se não usamos as capacidades que o nosso cérebro de 86 bilhões de neurônios desenvolveu ao longo do viver o cérebro se adapta rapidamente à nova realidade. Se aceitarmos sermos manipulados, seremos; se aceitarmos odiar, odiaremos; se aceitarmos o medo, seremos seres do medo (como diz Drummond); se não lermos e estudarmos mais, seremos seres menos lidos e estudados; se não refletirmos, seremos autômatos, seres de instintos (gado?); se não tivermos olhos pra ver e prestar atenção e refletir sobre o mundo ao nosso redor, seremos cegos que podendo ver não veem (como diz Saramago).
Está bem complicado viver, mas viver é oportunidade. Viver é uma luta diária para qualquer ser vivo. Seguimos vivendo, somos natureza.
William