Enfraquecer
as organizações do movimento sindical constitui um objetivo do conservadorismo
brasileiro desde 1954
Por: Paulo Moreira Leite
Procura-se minimizar o Dia Nacional de Luta convocado pelas
centrais sindicais a partir de uma comparação cinematográfica com os protestos
de caráter político ocorridos em junho. É uma comparação indevida. A nova moda
ideológica é falar em “velho” e “novo”.
Aquelas mobilizações tiveram clara natureza política, apontando, difusamente,
para autoridades constituídas – fosse o prefeito, o vereador, o guarda da
esquina, o governador, a presidente da República e assim por diante. Eram
formadas por uma massa de jovens, em sua maioria estudantes, com ideias
diversas e até antagônicas. Sua direção era semi-secreta, movimentando-se por
sites, vídeos e blogs da internet. Havia anarquistas, libertários e fascistas,
que chegaram a carregar faixas pedindo a volta dos militares ao poder. Vídeos
com audiência nos milhões de pessoas pediram boicote a Copa e até a suspensão
de investimentos no país. Interessados em manter Dilma Rousseff sob pressão, os
grandes grupos de mídia adoraram. Divulgaram datas e locais dos protestos como
se prestassem um serviço para shows e peças de teatro.
Os protestos trouxeram benefícios palpáveis, como redução nas tarifas. Também
obrigaram as instituições políticas a responder a demandas há muito tempo
ansiadas pela população. Mas também deram curso a atos de demagogia e grande
oportunismo. O Congresso Nacional transformou-se numa usina de projetos
aprovados à toque de caixa, apenas para agradar a multidão. Uma das principais
questões colocadas pelas ruas – uma reforma de fundo em nosso sistema político
– pode ser destruída, ponto a ponto, em negociações destinadas a bloquear a
participação popular nas decisões. Velho? Novo?
O Dia Nacional de Luta foi um ato das lideranças de trabalhadores, que, como
apontou o jornal espanhol El País, pela primeira vez em 22 anos foram às ruas
numa mobilização nacional para defender seus interesses e cobrar providências
do governo. Não foi um grande espetáculo nem um ato de ruptura com o governo
Dilma, como gostaria a oposição.
Mas foi um aviso definido numa situação bem específica.
Em vários pontos de São Paulo, viveu-se um clima de feriado – ainda mais
notável porque as linhas de ônibus e o metrô funcionaram normalmente. Os
protestos em grandes empresas, no Paraná, em Goiás, foram vigorosos entre
categorias importantes. Um ato reuniu 15.000 pessoas no Recife e 10.000 em Belo
Horizonte. Ocorreram marchas em Cuiabá e em Brasília mas também em São Luís e
Fortaleza. Quatro mil trabalhadores de São Bernardo do Campo desfilaram pela
Via Anchieta. Se cabe registrar a denúncia de pagamento de ajuda de custo cachê
recebido por manifestantes da avenida Paulista, convém não tomar a árvore pela
floresta. A 25 de março, maior centro de comércio do país, foi paralisada,
evento nada desprezível. O Rio de Janeiro assistiu a um protesto de 20.000
pessoas.
É preciso muito esforço para não enxergar sua importância – apesar da
desvantagem numérica e da falta daquele glamour midiático de uma ação comandada
por pessoas com menos de 24 anos.
No Brasil de 2013, os juros estão em alta, o crescimento econômico encontra-se
em queda e os trabalhadores estão preocupados com o futuro de suas famílias. Ninguém
sabe até quando o desemprego permanecerá baixo. Nem até quando os salários
poderão subir sempre um pouco acima da inflação. Coisas “velhas”, com certeza.
Mas imagine o “novo” que pode estar a caminho.
Antes de acreditar nos ideólogos que em menos de 24 horas descobriram a nova
divisão do mundo e das pessoas, é bom lembrar que o trabalho assalariado não
foi abolido, apesar do desemprego estrutural crescer em vários países e versões
inesperadas de trabalho escravo terem surgido. Ter um bom emprego continua
sendo a principal referência de existência e conforto para a imensa maioria da
população, ao menos enquanto o mundo viver sob regras da economia atual e não
for possível criar uma sociedade do lazer ampla e irrestrita.
As questões deste universo, do trabalho foram colocadas pela manifestação de
ontem. Nada “novo,” é verdade. Mas dolorosamente real.
Os sindicatos pedem atenção às aposentadorias, questão essencial num país em
processo acelerado de envelhecimento. Também denunciam as políticas de
terceirização, que ameaçam progressos históricos obtidos a partir da CLT. Não
querem o “novo”, se isso significa criar um mundo pior que o “velho”.
Enfraquecer as organizações do movimento sindical de todas as maneiras
constitui um objetivo estratégico do conservadorismo brasileiro desde 1954,
quando Getúlio Vargas foi arrancado do Catete pelo tiro do suicídio. Essa meta
alimentou o golpe de 1964, e, com todas as nuances e correções, encontra-se por
trás de campanhas permanentes contra o sindicalismo brasileiro nos dias de
hoje. Como a CLT foi assinada em 1944, é vista como símbolo do “velho.” Mas era
o “novo” em relação a 1930, quando a questão social era “caso de polícia”.
Novo, velho? Não vale fazer papel de bobo.
Convém não esquecer que o atual governo não foi gerado em gabinetes da FIESP
nem em piqueniques acadêmicos, mas tem raízes nas greves de trabalhadores dos
anos 70.
E é evidente que dividir e enfraquecer o movimento sindical será um objetivo
essencial da oposição para 2014, quando se joga a sucessão presidencial de
Dilma Rousseff, desde já a mais difícil disputa política para os trabalhadores
desde 2002.
A principal crítica que se faz aos protestos foi ter, supostamente, um caráter
governista, de quem teria sido cooptado pelo governo em troca de favores e
presentinhos. Em tom de lamúria, lamenta-se que o sindicalismo tenha perdido a
vocação “autêntica” para assumir velhas práticas de conciliação e submissão.
Numa versão verde-amarela da estratégia thatcherista de deixar as entidades
sindicais sem recursos, estrangulando sua atividade com a falta de dinheiro,
volta-se a criticar o imposto sindical, que todo trabalhador pode se recusar a
pagar, sendo devidamente estimulado a fazer por funcionários de RH de grandes
empresas.
Falar em “acomodação” e “peleguismo” é uma ação de fundo eleitoral, para ajudar
aquele “novo” que ninguém sabe quem será. Tenta-se, com ela, esconder
benefícios reais conseguidos nos últimos anos.
A maioria dos trabalhadores votou na eleição de Dilma em 2010, assim como
assegurou as duas eleições de Lula. Obteve conquistas importantes, ainda que o
país não tenha, obviamente, chegado ao paraíso.
A renda média do cidadão brasileiro continua muito baixa. O salário médio não
permite à maioria dos brasileiros ter acesso a bens e confortos que são padrão
neste início de século XXI.
A falta de qualidade nos serviços públicos atinge um padrão vergonhoso.
Apesar disso, na última década os trabalhadores conseguiram melhorias
importantes, muitas inéditas. O desemprego caiu a um nível nunca visto. O salário
mínimo não parou de subir. O emprego formal cresceu e a desigualdade regional
diminuiu. Apresentado como filantropia de fins eleitorais, o Bolsa Família nada
mais é do que uma resposta dos poderes públicos a condição de miséria na qual
sobrevivem milhões de famílias de trabalhadores sem emprego decente, sem estudo
formal e sem qualificação profissional, a que todos deveriam ter direito.
O problema real é outro. Entregue aos solavancos e misérias do mercado, o mundo
encontra-se em sua pior crise desde 1929. Em toda parte, conquistas históricas
se encontram sob ameaça – quando não foram simplesmente revogadas.
A regressão é geral e muita gente repete que não há outra saída. É o novo
conformismo. Novo?
Este é o mal que ronda a Terra, como assinalou Tony Judt, um dos principais
historiadores de nosso tempo.
O debate realmente novo é impedir este processo de chegar ao País.
A oposição, em suas várias faces e muitas máscaras, está pronta para cumprir
seu papel. Recebe estímulos, favores e até carinhos. Fala através de eufemismos
e encontra-se bem protegida.
Por trás dela encontra-se o rumo das conquistas arrancadas depois de 2002 – e o
que será feito com elas no pós-2014.
Este é o debate que o Dia Nacional de Luta colocou. Convém não desprezá-lo.
Paulo Moreira Leite
Desde janeiro de 2013, é diretor da ISTOÉ em Brasília. Dirigiu a Época e foi
redator chefe da VEJA, correspondente em Paris e em Washington. É autor dos
livros A Mulher que era o General da Casa
e O Outro Lado do Mensalão.