Opinião
Ainda bem que meus colegas bancários da ativa e aposentados são treinados para explicar aos familiares e à sociedade que transações com grandes volumes de dinheiro em espécie não são coisas "normais"
Quando virei trabalhador da categoria bancária aos vinte anos de idade tive acesso a novos conhecimentos e a novos grupos de relacionamento como cidadão brasileiro. Passei a conviver com uma vida mais regulada e "normatizada", baseada em leis, normas e regras formais, que variam de tempos em tempos. Antes, nem declaração anual de imposto de renda eu fazia, como grande parte do povo brasileiro não faz.
Antes de ser bancário, tinha trabalhado quase uma década como criança e adolescente pobre nos mais diversos tipos de trabalhos braçais - ajudante de encanador, entregador de remédios, em lanchonetes etc - e alguns menos braçais como em escola de idiomas, mas todos os trabalhos eram ou informais ou formais como alguém não qualificado.
Como trabalhador do sistema financeiro brasileiro aprendemos noções básicas sobre dinheiro, moeda, capital, operações bancárias etc. Um ensinamento básico para um bancário é ter atenção redobrada quando qualquer operação envolve dinheiro vivo em pacotes, malas e volumes grandes de dinheiro em espécie. Fazemos cursos sobre isso, sobre lavagem de dinheiro, crime financeiro ou crime organizado.
Basta estudar minimamente um pouco de história das sociedades humanas para saber que a informalidade favorece alguns grupos e pessoas e prejudica outros. Numa sociedade informal se ferram o Estado e as maiorias que vendem sua força de trabalho para sobreviver: os trabalhadores.
Nas sociedades capitalistas, trabalhador vender sua força de trabalho sem contrato e registro é prejuízo na certa pra ele, porque ele não tem direito algum a nada: salário fixo, descanso remunerado, férias e 13º salário, licença maternidade, não tem acesso a saúde e previdência, aposentadoria etc. A vantagem da informalidade é toda do dono do dinheiro, do capitalista que compra essa mão de obra barata ("desonerada").
O Estado (o erário público) só se ferra com isso também porque os recursos públicos vêm de impostos e contribuições das atividades produtivas e dos bens e propriedades particulares. Por que será que atividades como jogo do bicho são ilegais? Por que será que jogadores de futebol multimilionários vivem com pendências com o fisco por não pagarem impostos corretamente? E esses "empresários" que sonegam até o último centavo do que devem de impostos ao Estado? Vai um produto sem nota fiscal aí?
Me lembro que no dia a dia do trabalho bancário, quando alguém chegava na boca do caixa com um pacote de dinheiro já era algo por si só pouco usual, não era normal se fazer operações bancárias com pacotes ou malas de dinheiro em espécie. Além do risco de assalto e mortes por causa disso, na agência nós tínhamos que parar alguém para contar o dinheiro, registrar com documentos a origem do dinheiro e a pessoa que estava portando aquilo tudo.
Pois é...
Após o golpe de Estado em 2016, que interrompeu um governo eleito democraticamente pelo povo brasileiro, um governo sem ilícitos e sem corrupção - o governo de Dilma Rousseff -, nós passamos a viver num país onde foram desfeitas e alteradas todas as leis, normas e regras construídas por décadas pela sociedade civil. Reformas extinguiram os direitos sociais do povão. Normas de proteção ao meio ambiente foram desfeitas. Regras republicanas de gerir o Estado foram pro saco com a milícia no poder.
Passamos a viver numa sociedade cínica, hipócrita, canalha. Algumas instituições do Estado nacional foram corrompidas em suas essências, em suas regras básicas, nas suas bases de existência.
Hoje, vemos no noticiário como algo "normalizado" uma família (um clã) possuir mais de uma centena de imóveis, sendo a metade adquirida em dinheiro vivo, em espécie, coisa de milhões e milhões de reais, como se isso fosse uma operação bancária ou empresarial "normal". Façam uma operação simples: calculem os salários oficiais de parlamentares desse clã e vejam se a renda lícita chega a 1% de todo esse patrimônio...
Qualquer pessoa minimamente honesta e com alguma ética sabe que esse patrimônio todo adquirido em dinheiro vivo não é normal, não parece ser legal, não é moral. Vivemos num país onde as leis, normas e regras são aplicadas ao povão, aos trabalhadores assalariados, aos comuns. Só.
Um trabalhador bancário passa umas três décadas de sua vida para adquirir com muito sacrifício um ou dois imóveis para suas famílias. O mesmo se dá com as principais categorias profissionais do Brasil - professores, metalúrgicos, comerciários, funcionários públicos da base da pirâmide, pequenos empreendedores etc. Já os "empresários" e uma maioria de "políticos", que pertencem a um seleto grupo social, o 1%, acumulam dezenas, centenas, milhares de imóveis e tudo bem, fica por isso mesmo. Os ideólogos da casa-grande atuam para "normalizar" essas fortunas como coisas normais.
A família dos 100 imóveis com a metade adquirida em dinheiro vivo é a família que chegou ao poder central do país após o golpe de 2016 e após as eleições fraudulentas de 2018, eleições que tiveram interferência política de agentes públicos de órgãos do Estado como a operação Lava Jato (lawfare) que prendeu o principal candidato do campo popular em 2018, Lula.
Que nojo dessa hipocrisia descarada de setores de sociedade brasileira que se intitulam "gente de bem" e que acham normal tudo que o clã no poder faz e representa! Que nojo!
Ainda bem que meus colegas bancários da ativa e aposentados são treinados para explicar aos familiares, amigos e conhecidos que transações financeiras e comerciais em grandes volumes de dinheiro em espécie não são coisas "normais", pelo contrário, são coisas bem suspeitas como aprendemos nos cursos sobre lavagem de dinheiro.
É ou não é, colegas bancários?
William