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Mestre Machado de Assis. |
O Teles e o Tobias
– Machado de Assis
CONTOS DE MACHADO DE ASSIS, 1865 (11)
(conto atribuído a Machado)
Publicado originalmente em Semana Ilustrada 1865
(QUADRO DE
COSTUMES POLÍTICOS)
I
Empreendo uma Ilíada.
Canta, ó musa, a
cólera do juiz de paz Manoel Tobias e do subdelegado Chico Teles!
Naquele tempo,
antes dos movimentos políticos de 1848, que deram em terra com um partido, e
fizeram subir outro, que mais tarde caiu, por sua vez, como acontece no sistema
representativo, viviam em paz, na pequena vila de ***, o subdelegado Chico
Teles e o juiz de paz Manoel Tobias.
Ambos eram compadres, e tinham nisso a razão da
aliança doméstica, e chefes do mesmo partido, e era esse o motivo da aliança
política. Somente, como naquela vila não havia outro partido, eles vinham a ser
os senhores da vila, os chefes daquela orquestra passiva e submissa.
De quatro em quatro
anos fazia-se uma eleição; Manoel Tobias era sempre o primeiro juiz de paz...
por unanimidade; os três outros eram criaturas nulas, sem influência, nem
iniciativa, de modo que durante o
quatriênio só havia um juiz de paz de fato: Manoel Tobias. Este tinha, portanto,
uma influência perpétua. Quanto ao Chico Teles, cuja posição oficial dependia
do executivo, tinha conseguido perpetuar-se no cargo, batendo palmas a todos os
ministérios, a todos os presidentes da província e a todos os chefes de
polícia.
Chico Teles tinha
imitado este sistema de um deputado do seu conhecimento.
Viviam em paz os
dois amigos e compadres. Todos os domingos jantavam juntos, ora na casa de um
ora na casa de outro. As famílias já tinham contraído mesmo algumas alianças de
sangue. Cada um deles tinha um filho que os pais mandaram estudar na mesma
faculdade de direito, e que deviam tomar grau no mesmo dia.
Não podia haver
maior intimidade, e aquele quadro extasiava a população da vila.
S. Francisco era o orago da matriz da vila. Chico
Teles era o presidente da irmandade, mas para que Manoel Tobias não deixasse de
ter a sua parte na irmandade, Chico Teles fê-lo eleger protetor perpétuo, o que
lhe dava o direito de apresentar-se nos dias de festa com a sua comenda ao
peito e uma vela enfeitada na mão.
Chico Teles também tinha uma condecoração,
arranjada por esforços de Manoel Tobias, que tinha no ministério um amigo, e
que mandou para o Rio de Janeiro uma carta, acompanhada do desenho de uma
ponte, cuja construção dizia ser devida ao subdelegado, mas que, na realidade,
não tinha sido levada a efeito. A ponte foi tomada a sério no Rio de Janeiro, e
o ministro apressou-se a mandar a Chico Teles um hábito da Rosa.
Chico Teles quando
recebeu o hábito deu dois abraços apertados no compadre e convidou-o a comer de
parceria um leitão. Daí a dias havia festa na matriz, e Chico Teles estreou a
condecoração.
Ora, como é que
dois amigos deste gênero chegaram a romper a amizade, e puseram-se em guerra
aberta?
É o que os leitores
vão saber no próximo número.
II
Chico Teles possuía
um gato, Manoel Tobias tinha um passarinho. Depois de Tobias, o que Teles mais
estimava era o gato; depois de Teles, as afeições de Tobias eram pelo
passarinho. Minto: o gato e o passarinho tinham mesmo a precedência no coração
dos dois funcionários.
Ora, realmente o
gato era um belo animal, e o passarinho enchia o olho a quem o via. O gato era todo branco, gordo, grave,
tirando neste ponto ao próprio subdelegado. O passarinho era um sabiá da praia, cantor suave e verdadeira delícia
da casa. Nas horas da fadiga e de aborrecimento o pássaro distraía o juiz
de paz com o seu canto; e as carícias graves do gato encantavam a alma do
subdelegado.
Onde quer que Chico
Teles fosse ia o gato com ele, mesmo quando se tratava de alguma diligência
remota.
Uma tarde de junho,
achavam-se os dois funcionários juntos na casa do juiz de paz. Conversavam
pacificamente acerca das próximas eleições, e até estavam ambos mordidos pela
ideia de pregar uma ligeira derrota ao presidente da província, que aliás
também queria fazer o mesmo ao governo central, vindo assim a encontrar-se
neste ponto os intentos do ministério com os dois potentados da vila de ***.
Tomavam café, fumavam e conversavam. O gato deixou
por alguns minutos a sala e foi brincar com o sabiá; de repente ouvem-se gritos
do passarinho, correm dentro, e Manoel Tobias teve a dor de ver o seu pobre
sabiá meio devorado pelo gato de Chico Teles.
Houve um grito, mas de furor, de ódio, de vingança.
Manoel Tobias não se pôde ter; travou de um cacete e com tanta certeza o atirou
sobre o gato que o estendeu morto.
Tal foi a causa que separou em guerra os dois altos
funcionários da vila. Nem a intervenção do juiz municipal, nem os conselhos do padre
vigário, nada pôde reconciliá-los. Estavam irremediavelmente separados, e
aberta a guerra.
E que guerra!
Não houve meio, não
houve arma que não fosse empregada por um contra o outro!
Mas então deu-se um
fato singular.
Até então havia
apenas um partido, cujos chefes principais eram o Teles e o Tobias. O povo da
vila vivia em plena paz como um rebanho de carneiros. A eleição fazia-se no
meio do maior silêncio e tranquilidade. O governo central mandava o nome do
candidato ao presidente da província, o presidente mandava ao juiz de paz e ao
subdelegado, e os dois, que arranjavam entre si os eleitores, faziam triunfar
os nomes indicados sem oposição nem abalo.
Mas desde que desgraçadamente as exigências
gástricas do animal de Chico Teles reduziram a nada o animal de Manoel Tobias,
o partido dividiu-se, e os dois capitães ficaram em face um do outro.
Então começou a
luta. Cada um dos chefes usou da influência que tinha, e conseguiu grupar à
roda de si uma parte da população da vila.
Heitor
e Aquiles estavam prestes a vir às mãos.
III
A vila tinha um
jornal, que servia aos dois chefes do único partido que havia antes.
Denominava-se o Farol. Tinha um redator, amigo de ambos. Mas, com a
dissensão passou a folha a ser de Tobias, que a fundara. Teles fundou logo
outro jornal, denominado Atalaia.
Entretanto, o pobre
redator do Farol, como o Tobias ficasse com a folha, foi despedido,
por ser amigo de ambos os contendores.
Foi quem perdeu no
joguinho.
Perdeu até certo
ponto, porque dois meses depois, zangado com toda a história, fundou um jornal
seu, ao qual deu por título O
Azorrague.
De maneira que veio
a vila a ganhar, ficando com três jornais, e mais a vida que lhe daria a luta
da imprensa.
O Azorrague combatia
as outras duas folhas.
O primeiro número
da Atalaia começava assim:
Entrando no campo da publicidade, a nossa missão é defender os
verdadeiros interesses da vila, profligar os abusos, louvar as autoridades
honestas e cumpridoras do seu dever.
Está claro que neste número não entra o famoso juiz de paz que há tanto
tempo pesa sobre esta infeliz população, criatura desprezível, etc., etc.
O mesmo número
trazia esta notícia:
O sr. subdelegado Teles continua no gozo de sua importante saúde. O seu
filho Benjamim já se acha melhor da febre intermitente de que foi recentemente
atacado. Fazemos votos pelo seu restabelecimento.
O seguinte número
do Farol respondeu por estes termos:
Apareceu finalmente a folha do sr. Chico Teles. É um amontoado de
tolices e infâmias, e mostra bem a pessoa que se lembrou de fundar tão imundo
jornal. Quanto ao que diz a respeito do respeitável sr. Tobias, toda a
população desta vila protesta.
O noticiário
do Farol dizia o seguinte:
Temos a dor de anunciar que o honrado sr. juiz de paz Manoel Tobias indo
ontem a passeio caiu do cavalo e contundiu um ombro. Foi logo medicado pelo
honrado sr. dr. B. Desde então até à hora em que escrevemos, mais de cinquenta
pessoas gradas têm visitado o ilustre juiz de paz.
A folha do Chico
Teles não se pôde ter. Depois de responder ao artigo de fundo, em termos acres,
disse na gazetilha:
Queríamos saber quais foram as pessoas gradas que têm visitado o sr.
Tobias, depois que caiu do cavalo. A não serem o taberneiro Arruda, o picador
Matias, e outros que tais, gente conhecida por toda a vila, não podemos saber
quem seja.
Acudiu o Farol:
... Em todo o caso o sr. Tobias não foi visitado pelo sr. Chico Teles,
cujo caráter desprezível arreda a toda a gente de bem.
A isto respondeu
a Atalaia:
O sr. Teles não visita bêbados...
Estavam as coisas
neste pé quando apareceu o Azorrague, redigido pelo sr. Anselmo,
ex-redator do Farol. Eis a introdução:
No meio da comédia a que assiste a vila, desde que
apareceu o Atalaia, e que se travou o tiroteio entre ela e o Farol,
aparece hoje o Azorrague, disposto e dizer que tanto um como outro
jornal são dois truões de força. Quem quiser rir dos srs. Teles e Tobias venham
assinar esta folha, mas declaramos desde já que não somos folha de partido.
Ou fosse a
franqueza da linguagem, ou simpatia que merecesse o sr. Anselmo, o certo é que
o Azorrague adquiriu logo popularidade.
IV
Para bem encaminhar
esta narração, é preciso fazer entrar novos personagens, aos quais está
destinado um brilhante papel.
Teles tinha um
filho a estudar em S. Paulo; Tobias tinha uma filha em casa, moça de seus vinte
anos, bonita, viva, verdadeira flor da vila, onde aliás não escasseavam
mulheres bonitas.
Criadas juntas as
duas criaturas, tinha-se desenvolvido entre ambas um sentimento mais vivo e
menos desinteressado que a simples afeição fraternal dos seus primeiros anos. O
que é certo é que a designação de minha mulher — e meu
marido — conservou-se até à idade adulta, entrando muito nos
cálculos dos dois pais ligá-los realmente pelos laços matrimoniais.
O rapaz chamava-se Alfredo Teles; era, nem mais, nem
menos, um homem inútil. Fiado na fortuna do pai, desajudado de talento, o filho
do subdelegado descurou os estudos jurídicos, e só alcançou simples aprovação
em todos os anos, isso mesmo pela influência de um dos lentes que contava com o
auxílio eleitoral do pai do Alfredo.
A vida de Alfredo
em S. Paulo era nula: folgava, passeava, gastava; não tinha uma ocupação séria
e definida; vocação só se lhe conheço uma, e decidida, era a dos anagramas.
Alfredo gastava horas inteiras a fazer anagramas, com a mesma atenção com que
estudaria um ponto de direito. Fora disso, não prestava para nada, o que não
quer dizer que prestasse para muito.
Pouco tempo depois
do rompimento de hostilidades entre os dois potentados, concluiu Alfredo Teles
os seus estudos e encaminhou-se para a vila.
Elisa, a filha do juiz de paz, não era águia, mas
tinha alguma viveza, e neste ponto valia mais que o maridinho;
gostava dele, pela razão de que muita gente gosta do amarelo. Amor sincero ou
costume, o que é certo é que morria por ele. Assim que, quando se anunciou a
próxima chegada do Alfredo à vila, Elisa mostrou-se toda garrida e festiva, e
disposta a recebê-lo como dantes, apesar da luta dos pais, porque, dizia ela, o
amor não entende de política.
Mas o juiz de paz
pôs embargos à ligeireza. Chamou-a e disse-lhe que não pensasse mais em casar
com o rapazola, que era tão bom como o pai; a moça rogou, mas em vão; o pai
tapou-lhe a boca com a razão da sua vontade, e a pobre foi obrigada a calar-se.
Alfredo, estando a
duas léguas da vila, parou em um pouso para refazer-se e descansar. Enquanto o
camarada tratava dos animais, Alfredo conversava com um viajante que vinha da
vila. O viajante pouco sabia do que lá se passava, porque apenas se demorara
meia hora, mas, para divertir-se no caminho, tinha comprado o último número
da Atalaia.
— É novo este
jornal na vila, disse Alfredo.
— Parece que
é; este é o número 6.
— Quem é o
redator?
— Redator e
proprietário é o sr. Francisco Teles.
— Meu pai!
deixe ver.
Alfredo percorreu o
jornal, deu logo com as seguintes linhas:
A vila de *** está contente com as suas finanças, com a sua lavoura, com
o seu vigário, com os seus médicos, com o seu subdelegado, só não está com o 1º
juiz de paz Manoel Tobias, eleito pela força das baionetas.
Alfredo não pôde
deixar de sorrir-se ao ler isto; ele bem sabia que a eleição de Tobias foi a
mesma que levantou Chico Teles, e que além disso, não podia ser feita por
baionetas, visto que os poucos soldados que existiam na vila tinham apenas uns
trabucos velhos.
Até aqui chegava o
espírito de Alfredo, e por isso ele riu; mas o que ele não podia apreciar é que
a acusação das baionetas era apenas uma figura de retórica eleitoral, usada
sempre pelas facções vencidas.
Riu-se o rapazola,
mas não deixou de espantar-se vendo assim desquitados os dois chefes da vila, e
sobretudo lembrou-lhe a filha do juiz de paz de quem ia ficar separado à vista
daquilo.
Chico Teles foi
receber o filho, e dar-lhe os parabéns.
Tomou-lhe a
clássica folha, em que ele levava o diploma de bacharel, e mandou que a mulher
a guardasse em lugar de respeito.
Alfredo pediu-lhe
explicações do que vira na Atalaia, e Chico Teles explicou-lhe
tudo.
— Quanto à
filha daquele pelintra, acrescentou o pai, não penses mais nela. Hás de ter
mulher mais digna de ti. Tens por exemplo, a afilhada do padre vigário...
— Não, meu
pai, não; nesse caso não me saco.
— Não me saco?
Que quer isto dizer?
— Perdão, meu
pai, é um anagrama: saco é anagrama de caso. Eu queria dizer não me caso.
E foi tirar as
botas.
Cumpre acrescentar
que o filho de Manoel Tobias, que estudava em S. Paulo, e devia tomar grau no
mesmo dia que Alfredo, não pôde fazê-lo por ter tido um mau exame, o que lhe
ocasionou tanto desgosto, que se resolveu a não aparecer ao pai.
Esse rapaz, que se
chamava Luciano Tobias, era inteligente, mas preguiçoso; a reprovação
ofendeu-lhe os brios, e ele não quis aparecer ao pai, senão regenerado.
V
Alfredo não ficou
convencido com as palavras do pai; gostava da rapariga, e até faria por ela o
sacrifício de renunciar aos anagramas; abandoná-la por uma divergência entre os
pais, era coisa que ele não entendia. Entrou a pensar o que faria.
Entretanto,
aproximava-se a festa da matriz; os leitores hão de lembrar-se que Chico Teles
era o presidente da irmandade, e Manoel Tobias protetor perpétuo. Antes da
festa haveria eleição da mesa, e foi esse o campo de uma grande batalha.
Infelizmente, Chico
Teles só lutou pela defensiva; o cargo de Manoel Tobias não era sujeito à
eleição; mas o seu era, e Tobias moveu toda a vila, para apeá-lo do cargo.
Oito dias antes, as folhas dos dois
contendores começaram a agitar a questão. O Farol, de Manoel Tobias,
começou por um artigo de fundo estirado e indigesto; o jornalista, querendo
provar que Chico Teles não podia exercer o cargo que ocupava, viu-se obrigado a
remontar aos gregos, e a descrever o ostracismo. A resposta de Chico
aproveitou-se da alusão histórica, e lembrou que também Aristides fora
desterrado, apesar de justo, mas que ele confiava no bom senso do povo da vila.
Três dias antes da eleição fervia tudo;
circularam as chapas, umas verdes, outras amarelas; faziam-se visitas, e até as
folhas adversárias deram suplementos todas as tardes, cheios de artigos
coruscantes.
O sr. Anselmo
aproveitou esta situação, e disse no Azorrague:
Parece que não é um presidente de irmandade que se vai eleger, mas um
papa dos doidos, e a irmandade há de ver-se atrapalhada para escolher entre o
Teles e o Tobias. O nosso conselho é que escolha ambos.
Enfim, raiou o dia.
Teles vestiu-se de
ponto em branco, pôs a sua comenda, e encaminhou-se para a matriz; já lá estava
Manoel Tobias, igualmente enfeitado; conversava com o padre vigário, mas via-se
pelo olhar vago que ele não se preocupava muito com a reverendíssima conversa.
Chico Teles tinha
arranjado de véspera uns vinte capangas, que se foram postar à porta da igreja
para dar-lhe vivas, apenas ele assomasse. Assim aconteceu. Chico Teles fez-se
muito comovido, e agradeceu com o chapéu aquela manifestação de popularidade.
Fez-se a eleição.
Foi muito solene; Teles contava sair, e Tobias estava certo de derrotá-lo: o
candidato apresentado por este era uma figura secundária, mas a sua influência
dava-lhe valor.
Para vencer este
pleito tinham ambos posto em prática os meios mais engenhosos; promessas,
nomeações, e até hábitos de Cristo, tudo. Que
luta! No fim de alguns minutos, porém, tudo estava acabado; Teles venceu, e
estava presidente da irmandade por mais um ano.
Tobias saiu da
sacristia, e não voltou, senão à hora do sermão, por pedido do padre vigário,
que nesse dia impingia um pot-pourri de Bourdaloue
e Antônio Vieira.
Teles deu um grande
jantar a vários amigos, e festejou desse modo o seu triunfo.
No dia seguinte
o Atalaia publicava uma longa narração da festa, e quanto à
eleição do presidente dizia:
Apesar das cabalas e da torpeza de certo caturra desta vila, o sr.
Francisco Teles foi reeleito presidente da irmandade de S. Francisco. Foi um
verdadeiro triunfo. Nem podia deixar de ser assim. Quem possui a popularidade
de tão distinto chefe não deve temer nunca.
Para prova de que o sr. Teles é o querido do povo basta ver como a
opinião pública o recebeu à porta da igreja com vivas e aclamações.
Honra à população desta vila!
No dia em que saiu
este artigo, os vinte capangas da véspera foram à casa de Chico receber um
suplemento ao donativo que já lhes havia este fornecido. Quando os viu à porta,
Alfredo que assistira à cena da véspera, e lera a folha do dia, foi correndo
chamá-lo:
— Meu pai! meu
pai! aí está a opinião pública.
VI
Manoel Tobias não
podia sofrer impunemente a derrota. Retirou-se às suas tendas e entrou a
refletir nos meios de tirar uma desforra tremenda, e aniquilar de uma vez o
subdelegado Chico Teles.
Muitas lhe
lembraram, mas Tobias, apesar do fervor em que estava, podia refletir no perigo
de uma nova derrota, se o plano não fosse inteiramente eficaz.
Mortificava-o
sobretudo a ideia de que ele, juiz de paz tão estimado do povo, pudesse ser
vencido na ocasião da eleição da irmandade de S. Francisco. É verdade que nesse
pleito não estavam empenhados os interesses políticos da vila; todavia, o bom
juiz de paz assustou-se com a direção que iam tomando os espíritos, e meditou
profundamente nas modificações da opinião pública.
O que lhe pareceu
mais sensato, no fim de uma hora de reflexão, foi aguardar as eleições municipais
e políticas que se deviam fazer naquele mesmo ano.
Entretanto não lhe
pareceu desacertado lançar algumas sementes à terra, e começou enviando para o
governo do Rio de Janeiro uma coleção do Farol, com os artigos que
descompunham Chico Teles marcados a tinta vermelha.
O ministro recebeu
os jornais, e sem abri-los, deu-os a um filho, que fez da prosa de Manoel
Tobias chapéus armados e canudos.
Novo presidente foi
tomar conta da província, e uma circular dirigida a todas as autoridades
declarou-lhes que a administração nova seguiria os passos da primeira.
Quando a circular
chegou às mãos de Manoel Tobias, conversava este com o padre vigário.
— É um novo
presidente, disse Tobias.
— Safa!
exclamou o vigário, é quase um por mês. Parece que o governo não tem outro fim
senão dar às províncias o espetáculo de novas caras. E a política?
— É o status
quo.
No dia seguinte as
duas folhas adversárias harmonizavam-se num ponto: era em lançar às ventas do
novo presidente o turíbulo da adulação.
Faltavam poucos
meses, e o novo presidente, que fora apenas com o fim de presidir à manifestação da
opinião pública, começou a ativar neste sentido as forças e as influências
locais.
Manoel Tobias e
Chico Teles foram contemplados no número dessas influências, e receberam ordens
positivas da capital. A lista dos candidatos à deputação era toda definida; não
se podia duvidar das opiniões dos futuros representantes; mas a verdade é que a
vila não os conhecia.
Manoel Tobias, cuja
autoridade nascia do voto popular, acatava, todavia, a influência do governo,
era um homem do governo, destes de votar em lista fechada, ainda que vote
contra si.
Chico Teles, porém,
apesar do seu amor às ordens de cima, teve uma ideia infernal: a de dar de mate
à influência de Tobias, substituindo o último nome da lista, por outro de sua
escolha: desde que o seu candidato fosse eleito estava morto o Tobias.
O caso era
arriscado, e o menos que lhe poderia acontecer era a demissão do cargo, depois
de acabadas as eleições.
Mas Chico Teles
fiava-se em duas coisas: primeiramente no tato com que arranjaria as coisas, de
modo a saber-se tarde da sua traição; depois na influência que gozava na vila.
A vitória da irmandade de S. Francisco tinha-lhe inchado muito os odres da
vaidade, e o subdelegado já se dava ares de Júpiter Tonante.
Quem seria o
candidato? Aqui estava a dificuldade. Chico Teles não queria abrir-se com
qualquer dos homens principais do lugar, sem estar certo do ocorrido. Teve uma
ideia: convidar o sr. Anselmo, redator do Azorrague, para uma liga
da qual resultaria vencer a chapa governista, e dar baque à influência de
Tobias.
Foi, com efeito, à
casa do jornalista.
— V. S. por
aqui?! exclamou o sr. Anselmo.
— É verdade,
meu caro, apesar das nossas dissidências. Venho propor-lhe uma liga.
— Uma liga!
para quê?
— Promete que,
no caso mesmo em que não aceite a proposta, nada revelará?
— Prometo.
— Pois bem. É
chegada a ocasião de dar baque ao Tobias. A vila não pode continuar mais a
suportar um ente nulo, desprovido dos recursos intelectuais, sem amor ao bem
público, antítese do cargo que lhe conferiu o voto popular...
Chico Teles, sem
querer, estava repetindo o artigo que na véspera publicara na Atalaia, o
que fez sorrir o sr. Anselmo.
— Mas, enfim,
que quer V. S.?
— É simples:
quer o senhor ser deputado?
— Eu?
— Sim, é meu
candidato; eu suprimo o último nome da lista mandada pelo presidente, e faço
elegê-lo. Quer?
— Não posso,
sr. Teles; eu não me ligo, nem a V. S. nem ao juiz de paz. Eu estou só, e não
ambiciono cargo algum na república.
— Mas eu não
lhe falo em república... Não é uma revolução o que quero fazer...
O sr. Anselmo
sorriu.
Nisto entrava um
tipógrafo com provas do Azorrague, para o sr. Anselmo.
— Olhe, disse
este, veja se eu posso ligar-me a algum dos senhores. Eis o que eu digo de
ambos amanhã:
A vila vai naturalmente gozar de um espetáculo raro e de graça: é a luta
eleitoral entre os srs. Teles e Tobias. Já na irmandade de S. Francisco deu-se
uma amostra do que podem valer estes dois indivíduos; mas agora há de ser
melhor. Ora, a população e o governo podem praticar um ato edificante e
patriótico: é mandar passear os dois contendores...
O sr. Anselmo ainda
lia, e já Chico Teles batia longe, fulo de raiva.
VII
Chegando à casa
Chico Teles começou a refletir; estava desarmado; dali em diante o sr. Anselmo
podia atacá-lo por todos os modos; ele não podia responder...
Entretanto, era
preciso a todo o custo achar um candidato; Chico Teles continuou a trabalhar
para descobri-lo, até que bate com a mão na testa, exclamando:
— Achei!
Mandou chamar
Alfredo, e disse-lhe:
— Meu filho,
vou propor-te uma ideia grandiosa.
— Fale meu
pai.
— Quais são as
tuas ambições?
— Casar-me com
a filha do Tobias.
— Mau! já te
disse que não olhes para ali. Ligar-me eu a um Tobias, não faltava mais nada!
— Mas o que eu te pergunto é se não tens aspirações políticas?
— Isso...
— Tens, deves
ter.
— Por que
pergunta? disse Alfredo com algum interesse.
— Queres ser
deputado?
— Deputado!
— Geral.
— Queres ir ao Rio de Janeiro, falar da tribuna, interpelar os ministros,
deitá-los abaixo e quem sabe? ser tu mesmo conselheiro da coroa?
— Mas como?
— Já te vás
interessando. Como? É facílimo. Queres?
— Quero,
decerto.
— Pois conta
com o diploma.
E Teles entrou a
explicar ao filho o seu pensamento, pedindo-lhe o maior segredo. O plano assentado
foi que Alfredo se apresentaria candidato, ao passo que o pai defenderia a
lista vinda do presidente, parecendo assim achar-se em oposição ao filho; isto
era apenas para iludir o presidente e o ministério, até depois da eleição. O
essencial era que as personagens da vila soubessem do caso, a fim de ter a
derrota de Tobias todo o valor.
Alfredo era tão
vaidoso quanto seu pai; aceitou a candidatura, parecendo-lhe até que esse seria
um meio fácil de se aproximar da filha do Tobias.
— Desde que eu
for deputado, o juiz de paz abate as bandeiras e eu caso-me...
As eleições estavam
próximas. Os candidatos começavam a aparecer e a visitar as influências;
formaram-se as listas de eleitores, e cada um dos dois contendores fez a sua,
escrevendo para o presidente que respondia pelos homens escolhidos. O único que
entrara em ambas era o padre vigário. Este vigário vivia em paz no meio do
temporal, graças ao sistema que adotara de jantar alternativamente com os dois
heróis, aos quais distribuía exortações de paz e de concórdia.
Que fez, porém, o
sr. Anselmo? A proposta de Chico Tobias abriu-lhe os olhos. Por que não seria
ele candidato? A sua folha tinha influência, era a de maior circulação. Os
jornais do Rio de Janeiro tinham mesmo transcrito alguns dos seus artigos. Ele
não tinha compromissos oficiais; era independente. Resolveu, pois, ser
candidato e furar a chapa ministerial.
Assim ficaram as
coisas, quanto às eleições políticas.
Restavam, porém, as
eleições municipais, e Teles viu desde logo que havia a maior vantagem em dar
esse primeiro golpe, o mais importante de todos, em Manoel Tobias; Manoel
Tobias por seu lado compreendeu que da primeira batalha dependia a sua
influência na vila, e reuniu todas as suas forças.
Quando faltavam
quinze dias apenas para as eleições municipais, a vila tomou um novo aspecto:
era tudo eleição. Rolava o dinheiro, choviam os empenhos, as folhas saíam
recheadas de louvores e invectivas. Reunião e banquetes não faltavam. Era uma
confusão.
Surgiu finalmente o
dia da eleição.
Nessa manhã dizia
o Farol:
Hoje a vila de *** vai mostrar se possui ou não as virtudes do amor e da
gratidão. O benemérito sr. Manoel Tobias, juiz de paz há tantos anos, amigo do
povo, levantado pela opinião pública, caráter verdadeiramente romano, adoçado
pelas mais puras virtudes patriarcais, apresenta-se de novo ao povo para lhe
pedir o batismo eleitoral.
Nenhuma compressão, nenhuma influência indébita será exercida contra o
votante; fica-lhe livre o voto, mas se ele quer que o voto seja digno é votar
no ilustrado e integérrimo juiz de paz.
Votantes, às urnas! às urnas!
Chico Teles não se
descuidara de imprimir um contra-veneno, e disse na Atalaia desse
dia:
Depois de uma opressão de longos anos, apresenta-se hoje aos votantes
desta vila uma nova lista para juízes de paz.
Votar nessa lista, e dar derrota à lista contrária, é decretar e
felicidade do povo, é mostrar que desde 1789 caíram os tiranos, e que as
cabeças fumantes dos déspotas são as lições das populações que se prezam.
O desprezível Manoel Tobias não pode continuar a dominar esta vila, e os
homens livres devem protestar contra ele, apeando-o do cargo.
Um lavrador, que
era assinante das duas folhas, leu os dois artigos, e disse para a mulher:
— Ó Teodora,
em quem devo votar? Um diz que vote no sr. comendador Tobias, outro diz que
não. Que devo fazer?
— Antônio, o
melhor é não te meteres nisso...
— Mas eu devo
votar...
— Então vota
em ti.
— Dizes bem,
mulher. Em mim, no Antônio, no Arruda, e no Ezequiel.
— Aí está.
Fez-se a eleição, e
ambos tiveram vitória. Como? A chapa de Tobias venceu por um voto.
Nenhum deles ficou
contente.
Tobias não pôde
mesmo assistir à vitória; quando se ia ler a última cédula, que era a decisiva,
o juiz de paz desmaiou.
VIII
O filho de Chico
Teles andava todo cheio com a eleição. Já se estava a se ver na câmara, diante
das galerias apinhadas, e dominando com o olhar o ministério assustado e
receoso de si.
Esta perspectiva
política fez apagar muito a imagem da filha do Tobias; e a pobre menina, que
até então se carteava com o candidato, às ocultas, começou a duvidar do amor
dele, desde que as missivas começaram a rarear.
Ato contínuo, teve
uma febre intermitente.
O médico chamado a
ver a doente, ou porque soubesse do fato, ou porque tivesse a ciência de
adivinhar, o certo é que declarou ao juiz de paz que o verdadeiro motivo da
moléstia da moça era o amor por Alfredo.
— E nesse
caso, disse o médico, julgo melhor casá-los.
— Não! não!
clamou Tobias, atirando com os óculos pela janela fora, isso nunca! Há de haver
algum remédio em substituição a esse.
— Paliativos,
disse o médico.
— Casar com
ele é unir minha família à daquele biltre! O que não haviam de dizer os meus
correligionários políticos?
— Deixe-se
disso, sr. Tobias. Os seus correligionários não têm direito a impedir que o
senhor case sua filha.
— Mas a honra
do partido!
— Qual,
partido!
— Cale a boca,
doutor! Lembre-se de que eu tenho uma folha, e posso...
— Uma folha de
que eu sou assinante.
Tobias que já
contava ameaçar o médico, ficou macio quando este lhe lembrou a circunstância da
assinatura, e foi pouco e pouco moderando o seu ardor político.
A conversa morreu
sem que Tobias tomasse decisão alguma.
Entretanto, de um
lado, e do outro, ativavam-se os elementos para a grande batalha campal da
eleição.
Teles tinha um
irmão rico, cuja fazenda distava dez léguas da vila; escreveu-lhe pedindo uma
remessa de dinheiro para auxiliar a liberdade do voto.
Alfredo lembrou-se
de ter lido alguma coisa a respeito de meetings ingleses, e
disse ao pai que era um excelente meio de consolidar a sua candidatura. O pai
aceitou a ideia; mas para que não arguissem de cumplicidade nesse fato, Teles
retirou-se da vila durante dois dias, e deu assim tempo a que o filho pudesse
pôr em prática o meio eleitoral.
Não custou pouco ao
rapaz reunir gente para o meeting, mas afinal conseguiu. O local
era o largo da matriz. Uma espécie de tribuna erguia-se no centro da praça, e
era o lugar destinado ao orador.
Algumas velhas,
vendo o aparato do largo da matriz tiveram a indiscrição de perguntar se havia
nesse dia teatro de bonecos. Responderam-lhes que era uma sessão preparatória
de eleição.
Chegou o dia
aprazado; os vereadores e algumas outras autoridades assistiram ao meeting;
os curiosos eram em grande número.
Alfredo foi o único
orador.
— Meus
senhores, disse ele do alto da tribuna; dentro de poucos dias tem de haver a
eleição de deputado; eu apresento-me candidato a um dos lugares da lista. Bem
sei que o voto agora restringe-se aos eleitores, e que vós, povo, não tendes
mais o direito de votar: mas o que eu peço, é que a alta consciência dos
eleitores seja um tanto influenciada pela voz da opinião pública que é a
senhora do universo. É a ti, opinião pública, que eu me dirijo, é aos teus pés
que eu deponho os meus poucos méritos, é de ti que eu desejo o batismo.
— O batismo!
rosnou o barbeiro da vila; parece que o sr. Teles esqueceu-se de mandar o filho
à pia...
O orador desceu,
entretanto, os degraus da tribuna, no meio de alguns vivas, soltados por dois
ou três capangas, anteriormente pagos.
O povo ficou ainda
algum tempo a esperar por mais, até que veio a noite, e cada um foi para casa,
com a cara à banda.
Alfredo também se retirava, quando um moleque se
chegou a ele, e entregou-lhe o seguinte bilhete:
Alfredo, se me amas, vem buscar-me,
fujamos hoje mesmo; apesar de doente, irei contigo; se não vieres, mato-me.
O bilhete era da
filha de Tobias. Alfredo franziu a testa, e releu o bilhete. Embora não tivesse
já os primeiros ardores pela moça, todavia ainda gostava dela, e a ideia de uma
catástrofe devia impressioná-lo.
No meio das suas glórias eleitorais, vinha o amor
aguar-lhe o prazer — Que idiota! — Quantos há que por um amor
sincero, ardente, puro, dariam eleições, câmaras, ministérios, e tudo!
Alfredo foi para
casa, e gastou a noite em meditar no que devia fazer. Depois de muito tempo
mandou à namorada o seguinte bilhete:
Tente bem, se o mamão...
A moça leu
espantada este bilhete; não compreendia o que era; mas de repente uma triste ideia
a assaltou.
— Se Alfredo
estivesse louco!...
Nisto teve um
desmaio. Quando deu acordo de si, estava nos braços do pai, a quem confessou
tudo, para poder contar os seus tristes receios.
Tobias ralhou com a
filha, mas lá se alegrou no interior por ver doido o candidato, tanto que no
dia seguinte lia-se a seguinte notícia no Farol:
Afirmam-nos que se acha atacado de
alienação mental o sr. Alfredo Teles. Este jovem merecia as simpatias das
pessoas sensatas da vila, apesar do pai.
Nessa manhã
venderam-se mais vinte exemplares do Farol, e a notícia chegou até
o lugar onde se achava Chico Teles, que amarrotou o jornal, e veio para a vila
disposto a deitar tudo abaixo.
Pobre Alfredo! O
que ele queria dizer era entretanto simples. O hábito do anagrama foi a causa
daquilo. Ele queria dizer:
Não te mates meu bem.
E escreveu:
Tente bem, se o mamão...
Até onde vai um mau
costume!
IX
Antes da chegada de
Chico Teles à vila, já Alfredo tinha feito das suas. O artigo do Farol pô-lo
tonto. Amarrotou o jornal e jurou vingar-se do indigno redator; mas de todos os
meios que lhe ocorreram, nenhum lhe quadrou. Estava nessa indecisão quando
Chico Teles chegou.
O subdelegado
entrou em casa furioso.
— É indigno! é
infame! exclamou ele.
— É infame! é
indigno! respondia Alfredo, como um eco.
Acalmados os
primeiros furores, entraram ambos na apreciação do artigo de Manoel Tobias.
Ignorando a causa do artigo, o pai e o filho julgaram logicamente que Manoel
Tobias aludia ao meeting.
Depois de muitas
horas de reflexão e discussão, assentaram em não dizer palavra na Atalaia,
a respeito do artigo do Farol, e guardar a vingança para a eleição
que estava próxima.
— Sim, dizia
Chico Teles, fia-te em mim: demos àquele miserável a melhor resposta possível,
que é a de uma derrota para sempre; havemos de mostrar-lhe que o seu partido
nada vale. Envidemos os nossos esforços e matemos o bicho...
— Sim, matemos
o bicho, disse Alfredo pondo aguardente em dois copos e oferecendo um ao pai.
Chico Teles olhou
admirado para o filho, e esvaziou um trago.
Entretanto a filha
de Tobias continuava inconsolável. A ideia de que o seu amante estava doido era
coisa que a não consolava; a rapariga tinha um fraco pelo rapaz, e contava
vencer as dificuldades para unir-se a ele. Tudo porém, quanto imaginara caiu
diante daquele desastre.
Manoel Tobias
contava com uma resposta da parte da Atalaia, e ficou admirado de
não ver nada no dia seguinte.
Respondeu-lhe
porém, o Azorrague. Disse esta folha:
O Farol disse ontem que o sr. Alfredo Teles estava
doido, fazendo assim crer que ele teve juízo algum dia...
Tobias leu até aqui
com um sorriso nos lábios; mas caiu-lhe o queixo quando leu o resto, que dizia
assim:
... Sim, tanto ele como o sr. Chico
Teles e o sr. Manoel Tobias são três famosos malucos!
É inútil dizer que
os dois adversários ficaram furiosos com este artigo.
Entretanto Alfredo
Teles, estando a folhear uns papéis, deu com uma tira em que achou o primeiro
borrão do anagrama que mandara à filha do Tobias; riu-se, e mandou-lhe um
bilhete, explicando-lhe o caso.
A pobre moça quase
morreu de alegria, e foi dizer ao pai que Alfredo não estava doido; Manoel
Tobias pediu explicação do fato. Deu-lha a rapariga, e o pai fez proscrever de
casa pena e papel. A filha jurou consigo que havia de sair daquele cativeiro.
Os dias corriam, a
candidatura de Alfredo ia tomando certo corpo, e mais ainda a do redator
do Azorrague, que tinha as simpatias da vila.
Finalmente
chegou-se à véspera da eleição. Foi essa uma noite de trabalho insano, em todos
os campos litigantes. Prepararam-se artigos ardentes, e fez-se provisão de
manjares para regalar os estômagos da soberania nacional.
Às 11 horas da noite, retirou-se Alfredo para o seu
quarto que dava para o terreiro da chácara, e preparava-se para descansar e
levantar-se mais fresco no dia seguinte quando sentiu que lhe batiam à janela.
Espantou-se daquilo e foi buscar um revólver, e abriu a janela... Céus! que viu
ele! — A filha de Tobias, montada em um cavalo branco, com uma trouxa na
garupa e os cabelos desgrenhados.
— Que é isto?
— Fujo ao desespero! Venho buscá-lo para
sairmos daqui.
— Mas, entre,
entre...
— Não! não
entro... E a minha honra? — Saia você, traga um pajem, e vamos para a
fazenda de minha tia, que é daqui a uma légua; ela está à nossa espera; lá nos
casaremos, e voltaremos depois para pedir perdão a nossos pais.
— Mas, meu anjo...
— Assim é preciso... quando não, vou atirar-me
ao rio!
Alfredo compreendeu
que não podia lutar com a moça; fechou um pouco a janela, vestiu-se, chamou o
pajem, por quem mandou aprontar os animais, e depois de lançar um olhar de
saudade para a cama, dirigiu-se para o terreiro.
Já lá estava o pajem com os animais. Seguiram todos
para a fazenda, onde a moça ficou, voltando Alfredo para a vila, onde chegou às
duas horas da manhã.
No dia seguinte,
que era o da eleição, Alfredo levantou-se ao ouvir esta apóstrofe do pai:
— Pois quê!
meu tratante! dormes até às 9 horas num dia de eleição, e quando se vai decidir
do teu futuro político! Levanta-te, mandrião.
Alfredo demorou-se
ainda na cama, o tempo preciso para ver se podia fazer da palavra mandrião um
anagrama, mas não atinava, e pôs-se de pé.
Almoçaram e foram
para a câmara municipal, acompanhados de alguns eleitores mais íntimos.
Alfredo ia trêmulo
com a lembrança do que lhe acontecera na véspera, e temendo receber de algum
capanga uma sova intempestiva. À porta da câmara municipal estava Manoel
Tobias, risonho e tranquilo, o que fez impressão no espírito de Alfredo. Tobias
ouvia a alguns eleitores, acerca das probabilidades da eleição, e passava as
suas cédulas muito honradamente.
Entretanto
aproximava-se a hora do combate. Tobias foi tomar conta da presidência da mesa.
— Então o que
há? perguntava Chico Teles, a um eleitor enquanto Alfredo corria diversos
grupos.
— Tudo vai
bem...
— Acha que meu
filho pode...
— Se pode! Eu
conto com grande maioria...
— Ah! Deus o
queira.
E Chico Teles foi
ter com outro eleitor.
Quanto ao eleitor
que acabava de animá-lo, apenas Teles se retirou, aproximou-se de um capanga de
Tobias e disse: — Então? Os cavalos? — Já estão em sua casa. —Quatro.
— Bem; dê cá a lista; afirme que eu votei contra o Alfredo.
X
A casa da câmara
regurgitava de povo, oferecendo um espetáculo único — um espetáculo
eleitoral.
No centro estavam a
mesa e a urna, com os mesários à roda, e o presidente à cabeceira. A urna, a
duvidosa vestal política destes tempos, estava ainda fechada com os sete selos
do apocalipse.
Era um falatório
geral; grupos de um lado e de outro discutiam a eleição, trocavam listas,
riscavam nomes, tomavam notas; daqui engendrava-se um protesto, dali
imaginava-se um distúrbio, no caso de perda da eleição. Era um caos. Finalmente
começou a chamada, e os eleitores foram paulatinamente deitando na urna as suas
cédulas.
O sr. Anselmo,
apesar de ser o mais sério de todos os candidatos, nem por isso deixava de
apresentar a feição característica daquelas ocasiões, e cabalava como qualquer
dos outros; dizia-se que ele seria eleito, mas ninguém ousava afirmar que
Alfredo Teles deixaria de sê-lo igualmente, e nesta esperança se consolava o
filho do subdelegado.
Recolhidas as cédulas, começou o trabalho da
apuração. Venceu a chapa do governo, exceto em um dos nomes, que foi
substituído pelo do sr. Anselmo.
Alfredo Teles saiu suplente em décimo lugar.
A lista vencedora
foi esta:
Luís Barreto (primo do presidente da província).... 69 votos.
Antônio Barreto (afilhado de crisma do ministro do Império).... 67 votos.
Pantaleão Soares (oficial de uma secretaria no Rio de Janeiro) .... 59 votos.
Pedro Mota (credor de dois ministros).... 59 votos.
José Batista (ex-adversário do governo).... 58 votos.
Honório Bandeira (cunhado de um oficial maior).... 58 votos.
Jerônimo Gouvêa (primo de um cunhado da mulher do chefe de polícia da
província).... 57 votos.
Anselmo (redator do Azorrague).... 56 votos.
Caio Barroso (filho do general das armas).... 55 votos.
Quando este
resultado foi proclamado, houve uma gritaria geral. Alfredo Teles, ajudado pelo
pai, queria turvar águas, e tinham já dado de olho a alguns capangas, para
agredirem a mesa, destruírem as listas e os papéis todos, talvez mesmo o
presidente, e anular deste modo a eleição.
Quos vult perdere
Jupiter dementat. Chico Teles estava azafamado, passava a palavra aos capangas, e já ia
começar a barafunda, quando um oficial de polícia, às ordens de Tobias, pôs-lhe
a mão em cima, e foi levá-lo à presença do adversário.
Quando Manoel
Tobias viu diante de si o famoso Chico Teles, fulo de raiva e de humilhação,
não pôde conter um sorriso de satisfação. O oficial expôs-lhe o caso, Chico
Teles protestou, dirigindo algumas palavras injuriosas ao juiz de paz. Este
levantou-se com o lábio trêmulo, e gritou:
— Levem-no
para a cadeia!
A estas palavras
levantou-se uma grita horrenda: protestos, reclamações, vivas, morras, tudo
isso temperado por alguns sopapos anônimos e cachações invisíveis.
Mas Tobias
persistiu na sua ordem, e Chico Teles saiu dali para a cadeia, gritando contra
os abusos de autoridade, a ira dos tiranos, e a imolação dos direitos e
liberdades, palavras todas que os prelos da Atalaia já estavam
cansados de imprimir.
Alfredo Teles fazia
coro com o pai.
Tobias saiu
triunfante e dirigiu-se para casa no meio de uma ovação.
Mas, ai! lá o
esperavam grandes dores.
Elisa Tobias, como
os leitores da Semana sabem, tinha sido
raptada, na véspera, por Alfredo Teles, e dera ordem a um escravo de nada dizer
a seu pai, senão depois da eleição. Quando Manoel Tobias chegou à casa achou
tudo em alvoroço.
— A menina
desapareceu, diziam todos.
Tobias caiu em uma
cadeira.
Tinha achado
a rocha Tarpéia ao lado do Capitólio.
Entretanto,
convinha obrar e não lamentar-se. Manoel Tobias indagou da hora em que se dera
o desaparecimento, e como era natural, atribuiu a Alfredo a cumplicidade do
fato.
Quis mandar buscar
o rapaz debaixo de vara; mas ocorreu-lhe que já entrara muito pela via do
arbítrio, e resolveu-se ir ele próprio falar ao filho do seu contendor.
Alfredo estava em
casa, e preparava um artigo furibundo para a Atalaia, cuja redação
em chefe assumiu, quando lhe anunciaram a visita de Manoel Tobias. Mandou-o
entrar.
— Que me quer
V. S.? disse ele apenas viu o juiz de paz.
— Venho saber
o que é feito de minha filha?
— Não sei.
— Não sabe!
Mas eu sei... Há de dizer-me onde ela está, ou eu mando-o fazer companhia a seu
pai na cadeia.
Estas últimas
palavras foram um raio de luz para Alfredo Teles.
— Eu sei onde
ela está.
— Ah! sim! Onde
é?
— Oh! isso
não! Ela por ele: a filha pelo pai; entrego-lhe Elisa, mas V. S. há de passar
já já o mandado de soltura do sr. Chico Teles, meu pai.
— Mas isso!...
— É se quiser.
XI
Tobias estremecia a
filha; quis resistir, mas não pôde. Passou ordem de soltar Chico Teles, mas
guardou-a no bolso, à espera da declaração de Alfredo. Este foi leal e disse
onde se achava a moça. Tobias entregou o papel ao rapaz.
Nisto entrou um
rapaz trazendo café. Alfredo ofereceu uma xícara a Tobias, que aceitou;
saborearam o moca conversando tranquilamente.
Não pareciam já os
adversários da véspera.
Finalmente, Tobias
saiu para ir buscar a filha, e Alfredo para ir buscar o pai.
Uma vez solto,
Chico Teles voltou para casa, encerrou-se nos seus aposentos e entrou a ver por
que meios estrondosos tiraria a sua desforra. Lembrou-lhe um: fazer um
relatório circunstanciado das últimas ocorrências, assinado por grande número
de pessoas e mandá-lo ao ministério.
Entretanto Manoel
Tobias foi à fazenda de sua irmã, onde se achava Elisa. A moça, quando viu o
pai, enfiou; este declarou positivamente que ela voltaria para casa; a tia
protestou; Tobias gritou; Elisa, depois de ouvir tudo, tomou a palavra, e disse
estar disposta a não ir para casa senão casada com Alfredo Teles.
Debalde Manoel
Tobias desenvolvia a sua lógica, para mostrar as inconveniências políticas de
semelhante casamento; Elisa persistia nos seus propósitos, acrescentando que,
no caso de não casar com Alfredo, possuía um meio fácil e rápido de terminar a
existência.
Manoel Tobias saiu
desesperado.
Chegando à casa,
escreveu carta sobre carta, fez circular o boato de que estava doente: mas a
nada disso movia-se a filha — até que o pobre juiz de paz mandou um recado
a Alfredo, dizendo que lhe fosse falar.
Quem recebeu o
recado foi Chico Teles, que respondeu negativamente ao portador.
A esse tempo,
porém, Elisa, que não dormia, tinha escrito ao namorado, e desde a véspera que
este se achava na fazenda.
Elisa, de acordo com a tia, e o capelão da fazenda,
tinha organizado um plano do casamento, que foi submetido a Alfredo, e aprovado
por este. O pobre Alfredo, desenganado da política, voltava às suas primeiras
ilusões: todo o amor, que sentia por Elisa, reaparecera, e já era impossível
ter mão nos dois amantes. A prova de que Alfredo sentia-se feliz é que fazia,
termo médio, cinco a seis anagramas por dia.
Fez-se o casamento
na fazenda, na ausência dos pais.
Entretanto o Farol,
redigido por Manoel Tobias, tinha interrompido a publicação, e os assinantes
começaram a reclamar; a Atalaia tirava partido da situação do
adversário, e perguntava por que motivo, depois da sua vitória, não dava sinal
de si o juiz de paz.
Uma manhã, porém,
estava Manoel Tobias em casa, triste e aflito, a ver como lhe voltaria a filha,
quando aparece aos seus olhos o filho de Chico Teles.
— Que me quer
o senhor?
Alfredo
lança-se-lhe aos pés.
— O seu
perdão!
— Por quê?
— Sou seu
genro.
— Meu genro!
Mas como, senhor? Sem meu consentimento?...
— É por isso
que lhe peço perdão; eu não podia resistir ao amor por D. Elisa, nem ela por
mim, e resolveu-se casar, esperando da sua inesgotável bondade um perdão às
nossas culpas!
— Levante-se,
senhor!
— Oh!
obrigado!
— Mas onde
está ela? Na fazenda?
— Não; está na
vila; quer ir vê-la?
— Vamos.
Alfredo e Tobias
adversários dias antes, saíram assim de braço, causando espanto a todos quanto
passavam e os viam tão congraçados.
Entretanto à mesma
hora em que Alfredo entrava em casa de Tobias, Elisa entrava em casa de Chico
Teles, e caía-lhe aos pés.
— Que é isso,
menina? perguntou Chico Teles.
— Quero o seu
perdão.
— Por quê?
— Promete que
nos perdoará...?
— Nos
perdoará?... Então?
— Eu sou sua
nora.
— Essa!...
— Mas
perdoe-nos; o mal, se isto é mal, está feito! vamos perdoe!
— Perdoo, sim;
boa menina... Você sempre vale mais do que seu pai...
— Oh!...
— Onde está o
Alfredo?
— Aqui perto;
vamos lá; dê-me o seu braço...
Chico Teles, saiu,
dando o braço à nora.
Estas cenas
simultâneas, arranjadas pelos dois recém-casados, deviam ser seguidas de outra,
tendo por teatro o largo da matriz.
Ali com efeito
apareceram, de pontos diversos os dois pais; Teles e Tobias enfiaram, mas
caminharam sempre até formarem um só grupo.
Aí Teles abraçou o
filho, Elisa o pai.
Depois, os dois
casados abraçaram-se; os dois pais com ar suficientemente esquerdo, assoviavam
e olhavam para o céu.
— Então que
fazem? perguntou Elisa. Vamos, um aperto de mão... Reconciliem-se...
Os dois velhos recusaram; mas tais eram as
instâncias, tanto pediam, que não tiveram remédio, e as mãos dos dois
adversários confundiram-se num aperto significativo.
Dali foram para
casa de Chico Teles, que deu um jantar aos noivos, convidando para isso as
primeiras autoridades do lugar.
Mas nem tudo são flores. Estavam à
sobremesa, alegres e felizes, no meio das saúdes e protestos de amizade, quando o correio entregou um ofício a cada
um dos velhos.
Era o presidente da província que, depois de um
histórico dos fatos anteriores, mandava demitir Chico Teles, e suspendia Manoel
Tobias.
Caiu-lhes o queixo;
e esta desgraça súbita foi o que tornou então indissolúveis os laços da
amizade.
É assim que termina
a história do subdelegado Chico Teles e do juiz de paz Manoel Tobias.
FIM
COMENTÁRIO
Em se tratando de descobrir sobre Machado de Assis e
sua obra, mais vale ler do que não ler.
Digo isso porque tenho comigo que não posso desperdiçar
meu parco tempo livre com leituras diversas, tidas como obrigatórias pra mim no
campo da política ou das chamadas leituras engajadas.
O tempo vai passando, o corpo morrendo e eu vou ficando
sem cumprir minha lista de desejos literários em nome das obrigações sociais em
que me enfiei.
O conto não tem nada de excepcional, mas distraiu-me
nesta manhã de feriado nacional – proclamação da república brasileira -.