sexta-feira, 30 de junho de 2023

Diário e reflexões - Junho


Momentos, seguimos nos movimentos...

Refeição Cultural - Junho

Osasco, 30 de junho de 2023. Sexta-feira.


INTRODUÇÃO

Fiquei olhando a lista de livros que li neste semestre e refletindo sobre eles. Foram leituras bem diversas. Pensei em alguns filmes que vi neste semestre. Pensei em algumas frases ou pensamentos ou coisas que tivessem me impactado, mexido comigo.

Em alguma data de aniversário, a respeito do tempo de vida, vi que disseram que a gente não tem a idade cronológica da gente, a gente só tem o tempo que nos resta. Achei a ideia profunda. É isso. 

Eu não tenho 54 anos. Não tenho. Tenho esse tempo do agora, do momento em que escrevo minha avaliação do semestre que passou. Quando acordei nesta sexta-feira 30, tive que decidir sobre o que fazer do meu tempo. É o que tenho enquanto vivo.

Fiquei indeciso se lia Os miseráveis até determinada página, se lia mais alguns poemas do 8º livro de poesias de Cecília Meireles, o Vaga Música, e pensei se lia ou escrevia o texto de fechamento do semestre em meu blog. Desde menino queria muito ler e não podia, meu tempo era dos outros, era de quem o comprava barato.

Decidi escrever ao invés de ler. Os porquês da escolha são diversos, são confusos, talvez inconfessáveis. Tem a ver com o que somos, humanos.

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PENSO, LOGO EXISTO

Quando penso no tempo que não tenho, o tempo passado, penso no filme Meu pai, com o excelente Anthony Hopkins. Eu não tenho alma na forma de espírito ou energia que continuará após minha morte. Isso é uma das diversas abstrações criadas pela mente deste animal fantástico homo sapiens. Por isso sofro ao pensar na situação do personagem do filme e nos personagens da vida real ao nosso redor.

Minha alma, minha essência, minha identidade e o que sou e penso sobre o mundo e a vida é meu cérebro com os seus 86 bilhões de neurônios e as incontáveis sinapses e idas e vindas de impulsos elétricos e o sangue que corre por essas veredas celulares alimentando a vida de cada célula. É o que nós animais somos. E esse cérebro nosso cria coisas inimagináveis para ursos, morcegos, cachorros, galinhas, baratas, lesmas, peixinhos dourados.

Neste momento de minha consciência humana, a possibilidade de perda de minha identidade ocupa um espaço das preocupações de meu tempo presente, porque um Acidente Vascular Cerebral ou alguma doença degenerativa pode fazer eu deixar de ser o que sou de um instante a outro, ou aos poucos. 

Se meu cérebro sofre uma pane, já era o William. Aí perco a minha alma. Aquela mesma que acreditava existir para além da matéria quando era criança e adolescente. Era tão mais fácil crer que poderia levar comigo para outra vida o que acumulasse de conhecimento... como são confortantes essas abstrações que nossa espécie cria!

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NÃO TEMOS MAIS O TEMPO QUE PASSOU...

Quando penso no tempo passado que não tenho, pois o passado pode não existir, ou pode existir de acordo com a narrativa que se impôs, penso no livro de Leonardo Padura, O homem que amava os cachorros. O que é a vida humana ao longo da história de nossa caminhada pelo planeta no qual vivemos? 

Qual passado nós teremos ou teríamos como agentes políticos? A mim e a você, qual passado restará? (não tenho o tempo passado) São os outros que decidem qual narrativa ficará de nosso passado... ou até mesmo o apagamento total, talvez nunca tenhamos existido.

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LULA E CHE, HOMENS SINCEROS E DE FÉ

Mais dois livros me deixaram pensando tanto tanto neste semestre... Os sentidos do lulismo, de André Singer, e Evocación, de Aleida March, companheira de Ernesto Che Guevara, livros que martelam tanto em meus 86 bilhões de neurônios que um conjunto de reações químicas são disparadas por meu corpo a ponto de meus olhos se encherem de lágrimas. É o que somos, humanos.

O livro de Singer, e as leituras de décadas sobre Lula e o PT e a CUT, e sobre Política e História me fazem compreender muita coisa do comportamento e do pensamento de Lula, essa figura extraordinária. Uma referência para mim, ontem e hoje, mesmo eu nunca tendo sido um "cristão bonzinho" como o Lula. Lula acredita demais nas pessoas e nas instituições. Às vezes, isso até incomoda, mas compreendo ele, Lula é uma pessoa fantástica, uma inteligência que desnorteia a gente!

Já o médico revolucionário Che Guevara... como não se surpreender a cada nova descoberta sobre esse homem de carne e osso, de saúde até frágil por causa de seus pulmões? (além da asma, Che teve pneumonia assim que venceram a guerra de libertação de Cuba) 

O livro confessionário de Aleida March mexeu muito comigo. Trouxe o livro de Cuba. Sua esposa e companheira de lutas e de vida nos conta sobre o Che que não conhecemos. O homem que declamava poemas pra ela e que deixou gravados poemas antes de se despedir para seguir nas lutas de libertação dos povos da África e de Nuestra América... Che viveu por sua fé no novo homem, numa nova sociedade. É de encher os olhos d'água...

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A CRÍTICA DEVE SER RESERVADA QUANDO EXISTE O ESPAÇO RESERVADO PARA A CRÍTICA (PENSO EU)

Eu entendo o que Lula quer dizer quando afirma que as críticas à esquerda não devem ser feitas de forma pública e sim de forma mais reservada. Eu entendo Lula porque fiz (não faço?) parte da história do movimento sindical surgido com Lula e com a companheirada da CUT: o Novo Sindicalismo. 

Eu tanto entendo que já falei para as pessoas que o maior problema é a barreira intermediária que se monta entre nós nas bases sociais e o líder, o Lula ou outra posição na estrutura hierárquica do movimento. Certas paredes são intransponíveis, e as ideias só chegam ao líder de forma pública porque seus intermediários bloqueiam tudo. É muito comum alguém da militância ter uma ideia, sugestão ou crítica construtiva e os intermediários nunca permitirem que a opinião da base chegue ao líder! Lidei com isso uns 20 anos.

No entanto, sempre achei lideranças como o Lula às vezes crentes demais na bondade humana e muito crentes no funcionamento das estruturas políticas que nós mesmos criamos. O movimento sindical e partidário mudou tanto, companheiro Lula, que hoje é quase impossível fazer alguma crítica de forma mais reservada... o crítico é cancelado, bloqueado, invisibilizado. Nas bolhas d@s "capas pretas (líderes)" só chegam os que elogiam e concordam com tudo. Aí a pessoa que pensa diferente acaba gritando ao mundo... é isso, querido Lula, o que acontece muitas vezes.

Vejam, por exemplo, os espaços que poderiam ser reservados para se pontuar questões, fazer críticas e sugestões, ou até mesmo se aproximar dos líderes da direção, companheiro Lula, as assembleias de base, os encontros e conferências e mesmo plenárias políticas... nos fóruns onde poderia haver divergências e embates de ideias. Uma parte hoje desses fóruns é não-presencial, é virtual, companheiro Lula. 

Assim evita-se até um senão diferente do pensamento da cúpula sindical ou partidária. E então os fóruns presenciais são muito mais controlados, já que não foram para aquela instância as divergências que poderiam existir. Pois é, fica difícil assim fazer críticas no reservado, presidente Lula.

Há exceções, felizmente, muitas bases sociais ainda fazem os fóruns democráticos de forma presencial. Com debates intensos de ideias, divergências, proposições, construção de unidade e convergência de encaminhamentos das lutas. 

Até congressos anuais históricos de trabalhadores de bancos públicos me parece que não ocorrerão mais... acho isso uma pena, uma oportunidade perdida de mobilizar a militância para os enormes desafios que podem surgir caso a política do país tenha uma reviravolta, afinal de contas, a vida real é dinâmica. Um dia estamos num governo progressista, no dia seguinte... aqui é o Brasil! 

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A DEMOCRACIA É RELATIVA... UM CONCEITO ELÁSTICO

Nesta mesma semana na qual o presidente Lula falou, com razão, sobre as formas preferenciais de se fazer a crítica no campo da esquerda, de forma mais "reservada" (se possível, penso eu), Lula também falou a respeito de democracia e suas diversas formas de interpretação.

Eu penso há muito tempo sobre essa questão da relatividade do que se chama de democracia. Após mais de três décadas estudando e lendo a respeito de história dos povos e das sociedades humanas, e mediante o que eu mesmo vivi como um adulto politizado no Brasil dos anos noventa até o momento, eu diria até mais sobre democracia ser algo relativo... eu chego a pensar que democracia é uma utopia, um desejo de, algo impraticável, na vida real. Por isso ela é relativa, é uma questão de interpretação e de força impositiva de seu conceito.

Não vou me alongar muito sobre essa questão, mas em linhas gerais poderia fazer alguns questionamentos para problematizar o que seria considerado democracia e o que não seria considerado democracia.

O sistema político dos Estados Unidos é democrático? Desde quando vivemos numa democracia no Brasil? Cuba e Venezuela não são países com sistemas democráticos? Existe democracia no movimento sindical? A democracia da antiga Grécia ou da Roma antiga era democracia? Democracia que exclui a maior parte das pessoas de participação nos processos de decisão política é democracia?

Fala sério, né! Nos Estados Unidos os caras colocam na presidência o candidato menos votado pelo povo, lembram do Bush filho? Os bushs, os clintons, Obama, Trump, Biden, o próximo presidente democrata ou republicano... essa tal eleição indireta norte-americana é o governo do povo desde quando? 

Os países do mundo são geridos por aristocracias, plutocracias, autocracias, teocracias (até do deus dinheiro) e por aí vai. Todos! Falar a favor de uns e contra outros é uma escolha arbitrária do falante, é um relativismo descarado!

E no Brasil dos golpes civis-militares desde a retirada do poder de Dom Pedro II, quando foi que teve democracia aqui? Excluir a maioria da população por voto censitário, não permitir que segmentos inteiros da sociedade votem como as mulheres até recentemente no Brasil e tirar o governante cada vez que ele ameaça favorecer um pouquinho o povão miserável é democracia desde quando? A democracia no Brasil sempre foi uma mentira, uma fake news, um faz de conta.

Aí ouço gente do meu lado da classe, da trabalhadora, dizer que não há democracia em Cuba, mas que há democracia nos EUA e no Brasil... sei...

Em Cuba, o povo escolheu em março deste ano os 470 deputados e deputadas da Assembleia Nacional do Poder Popular. Vejam lá quantas mulheres foram eleitas parlamentares... É atribuição da Assembleia Popular eleger o presidente e o vice-presidente do país.

Por que nos EUA é democracia aquela coisa de eleição indireta e em Cuba não é democracia? Seria porque lá tem dois partidos possíveis e em Cuba não? Qual a diferença mesmo dos democratas e republicanos em relação às questões centrais da sociedade? Nenhuma! E em relação ao poder imperial no mundo? Nenhuma!

Democracia no Brasil? E o golpe contra a presidenta Dilma, eleita com 54,5 milhões de votos e impedida "com o Supremo com tudo" para colocar a casa-grande lesa-pátria no poder? E esse parlamento eleito em 2022 com bilhões do orçamento público usado de forma secreta para comprar votos em milhares de municípios, fora a grana da casa-grande e Faria Lima e agro pop para colocar no legislativo centenas de representantes deles, do dinheiro? Democracia?

E a democracia nas centenas de sindicatos que existem no Brasil? E no movimento estudantil? As pessoas conhecem mesmo como funciona a dinâmica nos movimentos sociais? Gente, a prática é bem diferente da teoria e do desejo. Tem muita coisa boa por aí, mas também tem muito problema, desde sempre. Política é assim, é um eterno esforço para melhorar as organizações e instituições sociais.

Nem vou continuar... já foi suficiente esse registro cansativo sobre essa questão política em voga, a democracia.

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E A CASSI, UMA IMPRESSÃO SOBRE A NOSSA CAIXA DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE

Quando penso sobre a Cassi não é um leigo tirando conclusões baseadas em lugares-comuns como acontece normalmente com a ampla maioria dos associados e participantes do sistema de saúde privado Cassi, dos funcionários da ativa e aposentados do Banco do Brasil. 

Fui gestor eleito da nossa autogestão em saúde e nunca estudei algo tanto em minha vida quanto a nossa associação, sua história, nossas lutas, os dilemas, o mercado de saúde onde ela atua, os direitos e deveres dos participantes ao longo de décadas. Como disse, não sou um leigo sobre a Cassi e seu sistema de saúde.

A Cassi voltou a estar sob a influência de um governo legítimo e democrático como é o governo do presidente Lula. Nos últimos sete anos, entre 2016 e 2022, a Cassi esteve sob a influência de governos golpistas, governos cujas questões de saúde eram tratadas por gente da pior espécie, como aqueles ministros da saúde de Temer e Bolsonaro...

Enfim, quando penso em escrever sobre a Cassi me dá uma coisa esquisita no peito, porque eu gostaria que a autogestão mudasse a rota perseguida após janeiro deste ano. Até li hoje uma apresentação sobre algumas coisas que estão sendo implantadas sobre especialidades médicas em algumas unidades etc. Mas acho muito sério não se reverter o que fizeram na Cassi durante esses 7 anos.

Na minha visão de ex-diretor de saúde o que estão fazendo com a Cassi não vai reverter a lógica implantada de transformar a Caixa de Assistência numa mera empresa de mercado de saúde. E a Cassi não tem a menor chance de sobreviver assim no mercado no qual atua. É uma lógica liberal, eu diria, totalmente equivocada.

Essa descontinuidade do modelo de Estratégia de Saúde da Família por outro tipo de Atenção Primária à Saúde, com outra lógica, centrada no estímulo de demanda espontânea não tem como reduzir as despesas assistenciais de uma população quase fixa no tempo e que segue envelhecendo: aposentados e pensionistas e funcionários da ativa do banco. 

A lógica de APS que implantaram na Cassi na gestão dos governos golpistas e dos eleitos até o ano passado é equivocada para o perfil dos participantes da Caixa de Assistência. As CliniCassi e a entrada por telemedicina é só um ponto de atenção, e um gerador de demanda espontânea. Vejam o resultado econômico-financeiro após 7 anos terceirizando tudo e desfazendo a ESF... e recebendo muito mais recursos dos participantes...

Por que será que mesmo com tanto dinheiro a mais de receita e tanta redução de estrutura própria a Cassi não se tornou sustentável? A culpa é dos associados? Não está claro que tem algo errado nessa lógica dos últimos 7 anos de gestores do grupo político que estava lá e dos governos de extrema-direita de 2016 até o ano passado? O resultado operacional do 1º trimestre deste ano foi de 98 milhões de reais de déficit (Visão Cassi)

Enfim, se uma hora tiver estômago, escrevo sobre isso, mesmo sabendo que não se pode falar contra o "nosso" time do governo Lula...

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O BRASIL EM 2023

LULA - O presidente Lula é a melhor coisa a se falar do Brasil... disparado! 

O humanista e estadista Lula tem andado pelo mundo refazendo tudo que aquele regime genocida e criminoso destruiu durante os 4 anos de desgraças.

Lula é o homem com expressão política no mundo que está falando que é necessário mudar o rumo das coisas, ou adiar o fim do mundo, como diz Krenak. 

Lula está cobrando dos governantes do mundo e dos capitalistas que é preciso falar em paz e amor e sermos contra a guerra, que é preciso distribuir riquezas e ter a redução das desigualdades como pauta e meta dos países.

Lula está cobrando que os países façam sua parte contra o aquecimento global e parem de ser hipócritas ao olhar o cisco no olho dos outros sem lidar com a trave no próprio olho (para falar numa linguagem das religiões).

Lula está hoje muito mais à esquerda do que os movimentos sociais nos quais militamos a vida toda. É impressionante! Lula tem a minha admiração e o meu respeito, como sempre teve.

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bolsonarismo - O fascista genocida que esteve no poder do país até dezembro, colocado lá pela casa-grande e pelos donos do poder no Brasil, foi julgado em uma das ações contra ele no TSE e se tornou inelegível na data de hoje, sexta 30. É o assunto do momento. Parte do país está em festa.

Esses criminosos do clã bolsonarista serão julgados e condenados? Isso é o que importa, na minha opinião. Espero estar vivo para ver a justiça ser feita contra esses monstros que destruíram nossos biomas, que por ações e omissões fizeram com que meio milhão de pessoas morressem de forma vil por uma pandemia de Covid para a qual a ciência tinha medidas protetivas e vacinas. Esses mafiosos têm tanta coisa pra explicar como, por exemplo, sobre uma centena de imóveis adquiridos em dinheiro vivo e sem origem comprovada. Vínculos com assassinos e milicianos do Rio de Janeiro etc...

Eu nunca acreditei em se fazer justiça através do sistema de justiça dos países... mas torço para que se faça justiça. 

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PESSOALIDADES DO BLOGUEIRO:

LEITURAS

Os livros lidos têm um sentido para além dos estudos e reflexões de cunho pessoal. Dá um trabalhão fazer uma postagem algumas vezes. Lembro aqui o objetivo inicial do blog: compartilhar conhecimento! (receber milhares de acessos por mês me dá um sentimento de contribuição ao mundo da cultura e das ideias)

1 - A estranha vontade de um morto, Sandro Sedrez (comentário aqui)

2 - Torto arado, Itamar Vieira Junior (aqui)

3 - rio pequeno, floresta (aqui)

4 - Diário de um bandeirante ligeiramente atrasado e totalmente desarmado, Roberto Buzzo (aqui)

5 - Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels (aqui)

6 - Os sentidos do lulismo, André Singer (aqui)

7 - O homem que amava os cachorros, Leonardo Padura (aqui)

8 - A vida não é útil, Ailton Krenak (aqui)

9 - A Ilha, Fernando Morais (aqui)

10 - O trono no morro, José J. Veiga (aqui)

11 - O governo do futuro, Noam Chomsky (aqui)

12 - A impureza da minha mão esquerda, Henry Bugalho (aqui)

13 - A Quinta-Coluna, Ernest Hemingway (aqui)

14 - A comédia dos erros, William Shakespeare (aqui)

15 - A bíblia em crônicas livres, Roberto Buzzo (aqui)

16 - Evocación, Aleida March (aqui)

17 - Lawfare: uma introdução, Cristiano e Valeska Zanin e Rafael Valim (aqui)

18 - A megera domada, William Shakespeare (aqui)

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AS VIAGENS

Tenho viajado pouco. 

Bem diferente de quando tinha uma agenda de viagens intensa durante meu último mandato de representação na Cassi. Estive sempre nas bases sociais do país, todas as capitais por 4 anos. Era cansativo, mas fiz o que tinha que ser feito.

Neste ano pós-pandemia de Covid-19 em sua pior fase (a pandemia não acabou), além de viagens de família, conheci Guarapari (ES) com a esposa e realizei uma das viagens mais interessantes de minha vida: fomos a Cuba, meu filho e eu. Tenho escrito reflexões sobre essa experiência.

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A SAÚDE

Acredito que a alta quilometragem de meu organismo e sempre sob pressão intensa pelos desafios enfrentados pelas veredas percorridas acelerou o desgaste dos componentes dos meus sistemas corporais. Avalio que minha saúde e condição física poderia estar melhor para alguém da minha idade e com o conhecimento que tenho. Uma pena!

Neste mês de junho caminhei bastante, corri algumas vezes mesmo com dores no quadril e pedalei um pouco. No entanto, mesmo me alimentando com consciência e regrando as coisas da vida, sei que estou indo rápido demais para o envelhecimento físico. Uma pena!

Ainda tento fazer o que tem que ser feito, mas não é fácil quando o compromisso é só pessoal e privado. O que move um homo sapiens são as abstrações às quais ele está engajado e nas quais ele se move por fé e pertencimento. Somos máquinas de paixões...

Meus dependentes não têm com que se preocupar, mesmo quando acordo mals, tenho consciência de minha importância como ser social. E a vida é uma oportunidade, sempre. Se depender só de meus cuidados, estarei entre vós mais um tempo.

William


Post Scriptum: o texto anterior sobre abril e maio pode ser lido aqui.


quarta-feira, 28 de junho de 2023

Lembranças - Capítulo 9



Refeição Cultural

Osasco, 28 de junho de 2023. Quarta-feira.


"Epigrama

A serviço da Vida fui,
a serviço da Vida vim;

só meu sofrimento me instrui,
quando me recordo de mim.

(mas toda mágoa se dilui:
permanece a Vida sem fim.)

(Cecília Meireles, Vaga Música, 1942)


OS MISERÁVEIS (MISÉRIA MISÉRIA EM QUALQUER CANTO...)

Fiquei pensando em alguém com quem pudesse desabafar. Me veio à memória algumas pessoas... Não, não quero falar com ninguém. A minha tristeza é uma tristeza acostumada, estou acostumado a ela faz décadas. É o que sou. Sempre fui esse, mesmo nos momentos em que brilhei, em que fiz algo útil. No fundo era triste. A diferença era que tinha feito algo de bom. Isso pacífica o coração.

Hoje foi um daqueles dias em que precisei abrir o chuveiro ao acordar e ficar embaixo da água caindo na cabeça por um tempo, de olho fechado e sentindo a água cair. Me lembrei que fazia isso quando era diretor da Cassi e enfrentava uma máquina patronal contra mim. Os caras quase me destruíram durante o mandato. Aguentei firme até o fim. A saúde capenga que tenho hoje deve ter algum reflexo disso, afinal de contas, somos hoje o que sobrou de ontem.

Um dos conceitos que mais martelam na minha cabeça por esses dias é o da miséria, os miseráveis, as misérias gerais. Miséria miséria em qualquer canto, diziam os Titãs. Os miseráveis...

Eu me sinto tão esquisito que sinto que perdi o direito de me incluir entre os miseráveis porque não tenho dificuldades materiais. Como se os miseráveis dessa terra sofressem só de misérias materiais... claro que a maioria dos miseráveis da Terra padecem de carências materiais... é uma miséria nauseante, pois que proposital. Com isso, parece que perdi o lugar de fala e não posso me incluir entre os miseráveis dessa terra que padecem misérias mil, sejam elas materiais ou espirituais. 

Não me sinto um mal-agradecido, sou grato ao acaso da natureza por ter me tornado uma pessoa que viveu essas décadas que vivi. Olho para trás, de onde saí e aonde cheguei, e vejo que fui agraciado pela deusa Fortuna que define o destino de toda a humanidade como pensavam os povos antigos da Grécia. Sou um afortunado. Isso me tira o direito de reconhecer a tristeza que me sufoca? De sentir os efeitos das misérias que me afligem? As misérias para as quais não tenho poder de solução? Uma tristeza às vezes miserável nos tira o ar, comprime o peito, dilacera a alma (essa identidade que o homo sapiens tem em si).

As cenas que não posso evitar me apertam o peito, me derramam hormônios terríveis corpo afora. Estou aqui, não tem como evitar o mundo. O rapaz que ao entregar a marmita descobre que o restaurante só pagou a ele dois reais (dois reais!)... a aquisição de mais uma coisa sem necessidade em casa porque não se consegue suportar a cultura capitalista de destruição do mundo e criação de necessidades desnecessárias na vida das pessoas... a garrafa de cachaça vazia na bancada do jovem que anda destruindo seu fígado e rins, como as pessoas estão bebendo, meu deus!

O espanto do rapaz quase garoto ao ver que só pagaram dois reais para ele vir trazer a marmita me fez lembrar os trocados que ganhava ao lavar carros dos endinheirados do Umuarama quando eu era pequeno, eu nem alcançava o teto dos carros... Me lembrou de quando cruzava Uberlândia de uma ponta a outra de bicicleta pra entregar um remédio por alguns tostões de salário, aquele salário de miséria. Esses empregos de merda dos anos oitenta voltaram piores que naquela época nos dias atuais do capitalismo mundial, dias brasileiros de miséria após os desgraçados Temer e Bolsonaro e toda a canalha que banca o que eles fizeram e significam para a classe trabalhadora brasileira e mundial.

A dor de ver o mundo ao qual pertenci mudar tanto... miséria miséria em qualquer canto... Por que eu não consigo aceitar contribuir com o conhecimento que acumulei na vida laboral e sindical com pessoas de uma corrente política que ainda têm alguma consideração por mim e me pedem para escrever e dar palestras sobre algo que acumulei conhecimento por décadas de lutas da classe trabalhadora? Eu não sei! 

Talvez eu tenha uma espécie de gratidão fora de moda em relação ao movimento sindical que me fez mudar tanto na vida. Desde o início da vida sindical sentia que jamais me veria em outra corrente política ou outro partido. O modo de ser do movimento ao qual pertenci é hoje semelhante ao fazer sindical que combatemos a vida toda, e que triste isso! Dá uma tristeza danada ver o que ajudei a construir virar uma mesmice do que se tem por aí. E nunca fui expulso ou coisa do tipo, só fui escanteado, como uma fita cassete deixada num canto pra embolorar e virar lixo. 

Pensando no álcool que destrói corpo e alma dos jovens que amamos, e na exploração idêntica à escravidão nos poucos tipos de empregos que existem hoje e ainda no consumismo desnecessário imposto a nós goela abaixo pelas máquinas capitais de manipulação dos desejos, olho para trás e vejo o meu caminhar pelas veredas percorridas, e vejo que eu poderia estar na condição comum e predominante dos que bebem demais, dos que estão escravizados em subempregos, dos que consomem sem necessidade tendo ou não tendo recurso salarial pra isso. 

O que me fez ser o que sou foi um conjunto de casualidades da vida a cada vereda que fui tomando. E como sempre me lembro, nunca fui condutor, sempre fui conduzido (o acaso)... é como se houvesse mesmo essa ficção que os humanos inventam - deuses, destino etc. Nem meritocracia é, não foi porque tinha uma ética cristã de fazer bem-feito o que me comprometia a fazer desde quando quebrava cano de merda que terminei tendo uma previdência privada após trinta anos de trabalho bancário em banco público... foi o puro acaso que determinou a condição e o momento em que estou.

Eu bebi muita bebida alcoólica desde muito novo, desde que andava pelo bairro Marta Helena após os dez anos de idade, quando nos mudamos de São Paulo para Uberlândia. Foi lá que passei a brigar na rua, foi lá que amassei barata na cara no barraco de placa de muro onde moramos, foi lá que fiz diversos trabalhos braçais desde menino. Não trabalhei criança e adolescente porque quis ou por algum tipo de ética. Ética do caralho essa de pobre ter que ser escravo enquanto filho de rico curte a vida.

Eu quis ter um monte de bens materiais como todo mundo de meu ambiente cultural, isso é assim. Somos fruto da cultura local de onde vivemos. Queria casa, moto, mulheres, dinheiro na conta pra viajar, e nunca me esqueço o quanto queria trabalhar menos e poder dormir um pouco mais. Vivia cansado pelos cantos. Miséria miséria em qualquer canto... me lembro que tinha um encanto pelo mundo da cultura, queria poder ler ler e ler mais. E não conseguia. Quis bens materiais como todo mundo quer. É humano isso.

EM CADA VEREDA PERCORRIDA, UMA PESSOA INDICOU O CAMINHO A DESBRAVAR

As veredas foram sendo percorridas. Os caminhos foram sendo pisados, mesmo quando não havia caminho, mas no andar, os caminhos iam sendo feitos. Ser o que sou foi fruto do caminhar, das veredas, das pessoas com quem cruzei no caminho e foram elas que me conduziram, de verdade. Quando olho para trás, vejo uma pessoa na encruzilhada de cada caminho que enveredei... é incrível isso!

Quando descobri a história do jovem Chris McCandless e a frase que ele nos legou lá do meio do Alasca, percebi que aquele conceito de felicidade se encaixava um pouco no que tinha sido o meu viver: "Happiness Only Real When Shared".

É verdade essa questão da felicidade compartilhada. Me lembro de minha vida até os dez anos assim. Me lembro dos momentos na dura adolescência quando não estava só. Me lembro dos anos de depressão e fúria, dos momentos de querer morrer e de querer agredir o mundo, no salvamento e no alívio, nunca estava só. Me lembro do quanto amei e fui amado. Me lembro da compreensão que tiveram comigo. O que somos são as oportunidades que tivemos. É triste ver tanta gente com tão pouca oportunidade de se encontrar e ser feliz.

E a vida foi percorrida assim, de vereda em vereda, andando e abrindo caminhos.

O período de vida política e de representação sindical da classe trabalhadora foi repleto de aprendizagem e formação da ideologia e da ética que tenho hoje. 

A oportunidade do convívio com tanta gente de luta e progressista e com cultura de classe trabalhadora me modificou para sempre. Ao ir me incorporando ao movimento sindical cutista e da corrente política hegemônica fui me moldando como ser humano e por ser convidado a novos desafios o tempo todo, cresci e contribuí para o crescimento da corrente e do movimento. 

Devo minha ética à participação política na luta de classes, principalmente a partir do momento no qual virei membro da categoria bancária do país.

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Hoje, sinto que para mim tudo mudou. Até faço volume nas ruas, em algum encontro de militância partidária, mas não me sinto parte de algo como já senti. E sequer temos potência para mudar algumas coisas no âmbito pessoal e da vida do país.

A Cassi que defendi ontem, por exemplo, hoje incentiva demanda espontânea com apoio do próprio movimento sindical para o qual passei quatro anos explicando o modelo assistencial da autogestão, que deveria ser o inverso do que é hoje. Venceu a lógica do mercado, oferecer serviços e terceirização de tudo. E ainda com desculpa de que se está fazendo Atenção Primária. A Cassi virou quase uma oferta de "check-up" em saúde... Deve ser por causa daquele ditado que o rio segue pro mar... Viva a demanda espontânea ao invés do controle populacional de forma preventiva como era preconizado pela Estratégia Saúde da Família. 

O movimento sindical hoje é exatamente como o mundo no qual vivemos (materialismo histórico?), o mundo no qual fomos experimento de ferramentas tecnológicas que passaram a alterar o comportamento de bilhões de pessoas. É impossível fazer Política num mundo onde quem tem opinião diferente dos donos das bolhas é cancelado como os algoritmos fazem nas máquinas digitais e redes sociais.

Tenho várias teorias observando o mundo. Numa delas, penso que a linguagem escrita tende a perder a importância e seremos todos analfabetos, sociedades ágrafas (mas com escribas e sofistas manipulando as massas). Noutra teoria, imagino um novo ser humano menos homo sapiens, mais parecido com vacas e galinhas em pastos e granjas... com menos capacidade de reação para reverter essas misérias todas do mundo capitalista. Algo como zumbis digitais, como diz o neurocientista Miguel Nicolelis em entrevistas. 

Miséria miséria em qualquer canto...

William


Post Scriptum: para ler o texto anterior dessa série Lembranças, é só clicar aqui.


segunda-feira, 26 de junho de 2023

53. A megera domada - William Shakespeare



Refeição Cultural - Cem Clássicos

Osasco, 26 de junho de 2023. Segunda-feira.


Entre ontem e hoje li mais uma peça de William Shakespeare - A megera domada (1594), em inglês "The taming of the Shrew". Não gostei da estória. No entanto, li mais um clássico. Novo conhecimento...

Pelo que vi num pequeno texto de apresentação do autor inglês - "Vida e obra" -, texto de uma coleção da Nova Cultural com dezenas de obras-primas da literatura universal:

"A obra de Shakespeare é dividida em quatro períodos: o primeiro, até 1594; o segundo, de 1594 a 1600; o terceiro, de 1600 a 1608; e o quarto, após 1608. Ao longo desse tempo o estilo de Shakespeare evoluiu da retórica barroca ao lirismo despojado." 

Após ler essa segunda peça da coletânea que adquiri com 27 obras, fiquei pensando a respeito da qualidade das obras do autor inglês. As 4 tragédias que já li são fantásticas! Falo de Hamlet, Romeu e Julieta, MacBeth e Otelo, o mouro de Veneza

Talvez as peças dramáticas mais famosas sejam o ápice do dramaturgo, algo normal que se conheça o que de melhor ele tenha produzido. 

Dias atrás, quando li A comédia dos erros (comentário aqui), uma das primeiras de Shakespeare, até gostei da trama, e relevei o forte machismo e preconceito de época.

O texto da Nova Cultural diz ainda sobre essa primeira fase:

"O primeiro período foi caracterizado, até certo ponto, pela construção formal e versos estilizados. Estava em voga na época o gênero de peça histórica, e Shakespeare escreveu os afrescos Henrique VI entre 1589 e 1592 e Ricardo III entre 1592 e 1593. Também se destacam nesse período as comédias ligeiras A comédia dos erros, de 1592, A megera domada, escrita entre 1593 e 1594, e Os dois cavalheiros de Verona, de 1594, além da tragédia Tito Andrônico, de 1593/1594."

Bom, desses citados acima, minha coletânea só não tem Henrique VI. Talvez eu leia essas peças primeiro. Acho interessante ler a obra de escritores de forma cronológica de criação e ou lançamento, pois é possível ver a evolução ou mudança do estilo ou fases do autor ou autora.

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A MEGERA DOMADA

"Tenho meios, Petrucchio, de ensejar-te uma consorte bastante rica, mui formosa e jovem, e educada no jeito de fidalga. Seu único defeito — e que defeito! — é ser intoleravelmente brava, teimosa e cabeçuda sem medida, a tal ponto que, embora meus haveres fossem menores, não a desposara por uma mina de ouro." (from: "Box Grandes Obras de Shakespeare (27 peças: Hamlet, Rei Lear, Romeu e Julieta, Otelo, O Mercador de Veneza, Sonho de uma Noite de Verão...)" by: William Shakespeare)


A peça contém 5 atos e se passa em Pádua.

No começo, achei bem interessante ver que a trama teria uma história dentro de outra história, mas no final a moldura não se completou e o dramaturgo não retomou ou finalizou da forma que iniciou o enredo.

Explico: no prólogo, um lorde volta de uma caçada e ao ver um bêbado dormindo ao relento, decide brincar com ele, mandando seus criados recolherem o sujeito e fingirem que ele acordou dum longo pesadelo onde era um ninguém e agora voltava a ser um lorde com posses, esposa e criados. O bêbado se chama Sly.

A peça que o lorde verdadeiro e o bêbado achando que era lorde assistem se chama "A megera domada". E a peça começa com os 5 atos.

A peça: duas irmãs, Catarina e Bianca, filhas de um homem de posses em Pádua - Batista -, são pretendidas em casamento. Bianca é disputada por vários pretendentes. Catarina é considerada uma jovem de difícil trato, brava até falar chega. Entre os pretendentes à mão de Bianca está Lucêncio, filho de um nobre de posses em Pisa, Vicêncio. Aí a trama se desenvolve.

Escravidão - Assim como a peça anterior que li dias atrás, o cotidiano da idade média é muito complicado para nossa consciência do século 21. A escravidão e a compra e venda de pessoas é algo comum. Além da violência nas relações hierárquicas.

Em A comédia dos erros, os irmãos gêmeos Drômio de Éfeso e Drômio de Siracusa, criados dos também gêmeos Antífolo de Éfeso e Antífolo de Siracura, foram comprados para servir aos filhos do casal de posses assim que eles nasceram.

Em A megera domada, vemos a mesma relação de poder com senhores espancando criados a todo momento.

As mulheres são coisas, compradas e negociadas da mesma forma. 

Essas primeiras peças de Shakespeare não trazem questões filosóficas ou críticas sociais como vi nas tragédias que já conheço. Essa é a minha opinião.

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LER OS CLÁSSICOS É MELHOR QUE NÃO LER OS CLÁSSICOS (CALVINO)

É isso! Com essa leitura, conheci mais uma obra de William Shakespeare. 

Sigamos lendo os clássicos. Como nos ensina Italo Calvino é melhor ler que não ler os clássicos.

Esse foi o 18º livro lido no ano.

William


Bibliografia:

SHAKESPEARE. William. As grandes obras. Capa, paginação e tradução: Mimética. Imagem da capa: John Taylor: retrato de Chandos (1610). Copyright: Mimética, 2019.

Vida e Obra: Shakespeare. Fascículo da coleção Obras-Primas da Nova Cultural.

sábado, 24 de junho de 2023

Diário e reflexões - Cuba XXVI (24/06/23)



Refeição Cultural - Cuba (XXVI)

Osasco, 24 de junho de 2023. Sábado.


"Félix Varela nos ensinou a pensar, Martí no ensinou a lutar e Fidel nos ensinou a vencer" (Armando Hart)


No início deste ano decidi que iria estudar um pouco a respeito de Cuba e de seu povo aguerrido (e insurgente). Já sabia desde meados do ano anterior que iria conhecer o país de regime socialista. A viagem correu tudo bem e por duas semanas pudemos vivenciar na Ilha um pouco do dia a dia do povo cubano.

Passados seis meses de leituras sobre o tema Cuba, eu diria que sigo sabendo menos do que gostaria, contudo posso afirmar que sei um pouco mais do que sabia antes. 

Já tenho alguma noção sobre a história de Cuba e seu povo, sobre José Martí, sobre Fidel Castro, sobre Ernesto Che Guevara, sobre a importância da educação e cultura para o povo e o regime socialista cubano. Repito, não sei quase nada, mas já tenho algumas noções sobre Cuba. Se considerar que vivemos num mundo de gente meio sem noção das coisas, já é alguma coisa conhecer um pouquinho da história da Ilha.

Hoje li o 2º capítulo do livro da doutora e mestra em Educação Maria Leite - Cuba insurgente: identidade e educação (2023). É muito interessante ler sobre o país socialista depois de ter estado lá por alguns dias. É alentador saber da importância da educação na manutenção do regime após mais de seis décadas de Revolução, um processo revolucionário de libertação do povo iniciado por insurgências populares no mínimo desde 1868. Algumas referências retroagem a 1511, como é o caso do cacique Hatuey.

EDUCAÇÃO EM CUBA E NO BRASIL - Quando me lembro da situação da identidade e da educação do Brasil após o golpe de Estado de 2016, após os dois governos de destruição nacional, dois canalhas que tinham como meta desfazer os poucos avanços do povo brasileiro em mais de um século de lutas, e quando me lembro ainda da reforma do ensino médio brasileiro, que acabou de vez com qualquer chance de uma educação universal de verdade, fico muito decepcionado ao não ver o Novo Ensino Médio (NEM) cancelado pelo nosso governo. 

Sabemos das dificuldades de um governo de composição, de frente ampla, mas não revogar o NEM até agora é frustrante. O NEM é um projeto de destruição da educação do Brasil, projeto mais que neocolonial, um projeto de ampliação da desigualdade de conhecimento entre os ricos e seus filhos e a ampla maioria de pobres do país em relação ao acesso à educação de qualidade.

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A LEITURA

No 1º capítulo, vimos sobre a formação da sociedade cubana (ler breve comentário aqui).

Neste 2º capítulo, foram abordados os seguintes subtemas:

A REVOLUÇÃO CUBANA: Logros, retrocessos e avanços.

2.1 A anatomia do entusiasmo

2.2 A educação como pedra angular da revolução

2.3 A universalização do ensino fundamental

2.4 Os organismos políticos e de massas em Cuba

2.5 A retificação de erros.


ALFABETIZAÇÃO E PARTICIPAÇÃO SOCIAL

"A Campanha de Alfabetização conjurou dialeticamente diversos fatores, contribuindo para que o fazer educativo assumisse uma forte dimensão político-social e o ensino fosse convertido em instrumento participativo." (p. 65)

A INSPIRAÇÃO DO MOVIMENTO 26 DE JULHO, LIDERADO POR FIDEL CASTRO EM 1953: MARTÍ

"Foi a partir desta conjuntura que um pequeno destacamento, autodenominado Generación del Centenario, de diversas procedências geográficas e sociais, adotaram a estratégia insurrecional. Para esse grupo de jovens, era impossível tolerar passivamente que, 100 anos depois do natalício de Martí, reinasse na nação o despotismo e a entrega das riquezas da Ilha, sem manifestações da rebeldia, que o próprio 'apóstolo' da independência demonstrara desde sua infância e sua juventude." (p. 66)

FIDEL CASTRO: A HISTÓRIA ME ABSOLVERÁ

"Durante o julgamento, celebrado na raiz do assalto ao Quartel Moncada, o líder da Revolução Cubana não menciona Marx e Lenin, nenhuma vez, porém em mais de quarenta citações faz alusão a Martí, centrando suas ideias na identidade nacional. Esse manifesto se resumia a seis pontos: uso da terra, industrialização, moradias, emprego, educação e saúde." (p. 67)

FIDEL: É A ECONOMIA... ALÉM DA EDUCAÇÃO

Pensamentos de Fidel antes da Revolução Cubana, durante a prisão no regime do ditador Batista.

"Na missiva, ele apontava que tudo o que se fizesse relativo à técnica e à organização do ensino, nada valeria a pena sem alterar de maneira profunda o status quo econômico da nação." (p. 67)

NÃO BASTA UMA REVOLUÇÃO, É PRECISO SUPERAR A INCULTURA E MUDAR O ESPÍRITO DE UM POVO

Dois pensamentos de José Martí que foram referências nos primeiros anos da Revolução Cubana:

"A pobreza mais difícil de ser vencida era a incultura"

e

"El problema de la independencia no era el cambio de formas, sino el cambio de espiritu." (p. 69)

OPÇÃO PELOS POBRES

Superada a etapa de expulsão do ditador Fulgencio Batista e no dia a dia dos primeiros anos de Revolução, Fidel Castro e os líderes revolucionários tiveram que optar por uma das classes internas na sociedade cubana que estavam em disputa pela hegemonia na Ilha: a burguesia ou os pobres.

O movimento 26 de Julho e a guerrilha fizeram a opção pelos "pobres de la tierra" como dizia Martí.

E as leis de reforma agrária foram centrais nessa opção pelos pobres e mais humildes.

A REAÇÃO BURGUESA

A burguesia cubana reage e passa a financiar contrarrevolucionários. Os primeiros anos foram muito difíceis para Fidel, Che e demais líderes da Revolução.

"(...) a burguesia nacional passou a adotar atitudes de agressão e boicotes no processo, dentre os quais se destacam: o abandono da direção das empresas, a recusa em comercializar produtos e serviços e o financiamento de grupos contrarrevolucionários. Esse fato levou à estatização de 383 empresas industriais e comerciais de capital nacional e a função bancária passou a ser exercida unicamente pelo Estado." (p. 72)

QUARTÉIS VIRAM CENTROS DE ESTUDOS

Uma estratégia muito simbólica por parte dos líderes revolucionários foi transformar diversos quartéis e antigos presídios e centros de tortura em escolas e centros de formação de professores. 

"Em 9 de janeiro de 1960, foi iniciada em toda a Ilha a demolição dos muros dos quartéis. Após 19 dias, centenas de operários da construção, estudantes universitários e contingentes da população, em jornadas de trabalho de três turnos diários, converteram o sombrio Quartel Moncada na Ciudad Escolar 26 de Julio, com capacidade para 2 mil crianças. A Ciudad Libertad, que foi até 1959 o Colúmbia, uma típica e vasta instalação militar, onde se gestaram as piores causas, passou a ser um enorme conjunto com escolas de ensinos primário, secundário, especial e superior, na qual a pista de aviões de guerra transformou-se em um enorme organopónico (hortas orgânicas urbanas). Nesse contexto, teve transcendência política e moral a conversão de 69 quartéis em escolas com capacidade para 40 mil alunos." (p. 72)

O POVO PASSA A TER ACESSO A ASSISTÊNCIA MÉDICA UNIVERSAL

"Graças a esses esforços, a população cubana até a atualidade destaca-se pelo elevado nível de escolaridade e pelo usufruto de serviços de saúde pautados pela lógica da prevenção e do direito universal, com a promoção de iniciativas como o Programa del Médico y la Enfermera de la Familia.

O modelo de saúde cubano começou ainda na Sierra Maestra, quando os camponeses passaram a ser atendidos por Che Guevara e seus companheiros profissionais de saúde.

A EDUCAÇÃO COMO PEDRA ANGULAR DA REVOLUÇÃO

"A primeira etapa da Revolução favoreceu mudanças que estabeleceram novos fundamentos educacionais, inspirados em Martí, com alicerces fincados na autoctonia. A busca do homem novo pela reapropriação da natureza humana, tornou-se o centro da mobilização da sociedade. Segundo Guevara (1988, p. 16), 'o homem novo alcançaria sua plena condição humana quando produzisse sem a compulsão da necessidade física de vender-se como mercadoria." (p. 75)

UNIVERSALIZAÇÃO DO ACESSO À EDUCAÇÃO

Alguns eixos são centrais na nova etapa educativa em Cuba.

"A criação das bases do novo modelo tentava transformar a saúde, a educação e a cultura em direitos de toda a população." (p. 76)

e

"Produziu-se, portanto, a reforma integral do ensino, que representou um primeiro esforço para estruturar um sistema escolar harmônico." (ibidem)

Martí, sempre uma referência:

"Al venir a la tierra, todo hombre tiene derecho a que se le eduque y después, en pago, el deber de contribuir a la educación de los demás." (p. 77)

CHE GUEVARA E OS IDEIAS DO HOMEM NOVO

"As ideias que Guevara (1988) legou à educação podem ser sintetizadas na tarefa de criar um 'homem novo', pelo desenvolvimento da consciência participativa na produção socialista." (p. 78)

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COMENTÁRIO 

A universalização do ensino fundamental foi abrangida pela autora no item 2.3 do capítulo e no item 2.4 os organismos políticos e de massas em Cuba.

Os subtemas são tão importantes que eu teria que citar muitas partes do texto.

Nada substitui a leitura do livro por parte dos interessados neste conhecimento que a professora Maria Leite compartilhou conosco.

DISCIPLINA - A pedagogia educacional em Cuba trabalha muito a questão da disciplina como um meio para se atingir os objetivos e uma questão socializante também, cooperativa e coletiva.

"O cumprimento das metas estabelecidas por todos só era possível com uma direção firme. Por isso, os alunos tinham consciência de que a disciplina não era um fim, mas um meio, um recurso para vencer as dificuldades." (p. 80)

VOLUNTARIADO - Outro tema importante na sociedade cubana é o trabalho voluntário, cooperativo.

ORGANISMOS POLÍTICOS E DE MASSA - Numa nova sociedade como a cubana, organismos sociais com espírito de pertencimento são fundamentais como, por exemplo, o Partido Comunista de Cuba, os sindicatos de categorias profissionais, os Comitês de Defesa da Revolução, a Federação das Mulheres Cubanas, a União dos Jovens Comunistas, dentre outros.

Com o avanço das conquistas socialistas do povo cubano, a pedagogia foi se aperfeiçoando através das experiências e participações de especialistas da área.

"Em dezembro de 1975, foi editada a Tese de Política Educacional, que oficializava a pedagogia de cunho marxista-leninista, sem perder de vista o pensamento educativo martiano e a herança histórica do pensamento educacional cubano de todos os tempos. O tripé formado pelo Estado, as organizações de massa e o PCC passou a constituir a base do socialismo adotado na Ilha." (p. 83)

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Finalizo a leitura do capítulo com uma preocupação ao me lembrar do Brasil em 2023. 

Aqui, apesar de suspenso para consulta pública, as bases da educação fundamental do governo Lula é o Novo Ensino Médio (NEM). 

A suspensão só ocorreu por causa do grande esforço feito pelas entidades da sociedade civil envolvidas com educação e direitos sociais e as denúncias dão conta de que o NEM é uma esculhambação, um modelo aprovado pelos governos golpistas.

É isso! Deu trabalho fazer a postagem, mas enquanto escrevi, forcei meu cérebro a se exercitar... isso é bom!

William


Post Scriptum: clique aqui para ver a última postagem com o tema Cuba.


Bibliografia:

LEITE, Maria do Carmo Luiz Caldas. Cuba insurgente: Identidade e Educação. Editora CRV, Curitiba, 2023.


sexta-feira, 23 de junho de 2023

Diário e reflexões - Linguagem II



Refeição Cultural

Osasco, 23 de junho de 2023. Sexta-feira.


UM MUNDO DE ANALFABETOS

A primeira postagem deste blog de cultura foi o conto "O alienista" de Machado de Assis, postagem feita em 23 de dezembro de 2007 (ler o conto e comentários aqui). Lembro aos leitores que a obra de Machado é de domínio público: pode ser reproduzida e divulgada sem pagar direitos autorais. Fico contente ao olhar para trás e ver o início desta jornada de leituras, escritas e reflexões: começar com Machado de Assis foi um acerto deste blog.

Machado de Assis, em seu tempo, tinha uma percepção perspicaz de que quase não havia leitores no Brasil do século 19. Eram raras as pessoas que iriam ler o que ele escrevesse nos meios da época, jornais e revistas. Livros tinham públicos menores ainda porque eram de pouco acesso às massas populares. E pouca gente tinha dinheiro também, coisa óbvia num país escravocrata e com poucas pessoas detendo todos os meios materiais: a nobreza e a casa-grande e seus apaniguados, agregados e lacaios.

Ao darmos um salto no tempo, saindo do século 19 de Machado de Assis para o século 21 do Brasil pós-golpe de Estado em 2016, após os governos de merda de Temer e Bolsonaro, e pós-pandemia mundial de Covid-19, vemos um cenário dramático no que diz respeito às perspectivas de acesso à educação formal e às oportunidades de formação intelectual da população brasileira, principalmente quando imaginamos a formação política e cultural da classe trabalhadora e das pessoas sem acesso aos direitos básicos da cidadania.

O cenário atual para a formação do ser humano, na minha opinião, é dramático.

Para além da complexidade das dimensões centrais da vida humana no que diz respeito ao acesso aos meios de sobrevivência - emprego, moradia, assistência médica etc -, tenho uma preocupação cada dia maior com o não aproveitamento das potencialidades inatas ao cérebro humano, essa máquina fantástica desenvolvida na espécie animal homo sapiens ao longo de milhões de anos. 

Tenho uma teoria a respeito da alteração rápida que vem ocorrendo em nossa linguagem humana com o uso das atuais ferramentas tecnológicas que criamos - as redes sociais e aparelhos de comunicação -, que facilitaram a comunicação sem a necessidade de escrever as mensagens. 

Outra preocupação é pelo fato de o domínio dessa tecnologia de comunicação estar concentrado nas mãos de poucos seres humanos, falo das big techs, concentradas em poucas e poderosas corporações. Viramos commodities, dados comercializáveis com o objetivo de lucro. E nos tornamos coisas manipuláveis...

Após a criação e popularização das redes sociais e a ampliação da comunicação social através de vídeos e áudios, a linguagem escrita - uma invenção humana recente e de poucos milhares de anos - vem perdendo relevância e com isso até as pessoas alfabetizadas e de bom grau de instrução formal começam a perder a capacidade de se expressar através da produção de textos escritos. 

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As pessoas ainda são alfabetizadas nas fases escolares, mas depois passam a perder a capacidade de produção de texto escrito por absoluta falta de uso da língua escrita.

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Faz pouco mais de duas décadas, só duas décadas, que as tecnologias de comunicação foram se popularizando rapidamente e cada vez mais pessoas passaram a se comunicar por áudio e vídeo, sem a necessidade de produzir textos escritos. Isso foi fazendo com que as bases da linguagem escrita padrão começassem a se perder: acentos, ortografia, construção sintática, uso de palavras com sentidos semânticos adequados etc. O cérebro humano é muito plástico, se adapta a tudo o tempo todo, se não faz parte de nossa vida ler e escrever, essas habilidades serão deixadas de lado pelo cérebro humano.

Comecei esta postagem falando de nosso grande escritor Machado de Assis e finalizo a reflexão com ele. 

Machado tinha noção da falta de leitores em sua época, e diversos estudos nas últimas décadas abordam a genialidade do Bruxo do Cosme Velho ao criar diversos tipos de leitores e leitoras em seus romances, contos e demais textos e gêneros discursivos. 

Fico pensando o risco que estamos correndo de nos tornarmos uma sociedade mundial ágrafa, sem o registro escrito, após milhares de anos de avanços da sociedade humana justamente por causa dessa invenção revolucionária: a escrita. 

- Ah, William, isso não aconteceria, que exagero!

Entendam a preocupação: se a maioria da população mundial se tornar analfabeta - analfabetismo real, funcional e até político -, se não souber mais o símbolo linguístico, se não tiver boa capacidade de interpretação de textos, ficando o texto escrito restrito a uma pequena porcentagem de pessoas que têm as habilidades de escrever, ler e produzir registros de cultura, teremos um retrocesso incalculável no conhecimento humano produzido ao longo de milênios.

Machado de Assis escreveu como poucos escritores de sua época, e felizmente alcançou no futuro mais leitores que na época da produção de suas obras geniais. Agora corremos o risco de uma população mundial regredir na habilidade inventada por nós de registrar o conhecimento humano através de símbolos linguísticos.

Por incômodo com o tema, talvez volte a ele mais vezes. Aliás, sou só mais um humano na sociedade humana perdendo a capacidade de ler e escrever. Se eu não ler e escrever com regularidade meu cérebro focará em outras coisas para seguir com sua função animal de sobrevivência.

Reflitam sobre isso. Aliás, reflexão leva tempo. Transformar informação em conhecimento leva tempo de reflexão. Vocês conseguem parar com seus cliques e dedinhos subindo telas para refletirem por algum tempo?

William


Post Scriptum: ler aqui postagem anterior sobre Linguagem. A postagem seguinte sobre esta série pode ser lida aqui.


quinta-feira, 22 de junho de 2023

Leitura - Lawfare: uma introdução



Refeição Cultural

Osasco, 22 de junho de 2023. Quinta-feira. 


"Lawfare é o uso estratégico do direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo"


LAWFARE?

Após conversar nos últimos anos com pessoas do meio jurídico, econômico e político e perceber que ao usar a expressão "lawfare" elas não sabiam o que isso queria dizer, algumas sequer tinham ouvido falar sobre isso, achei interessante adquirir algum material que falasse a respeito do tema. Vai que eu estivesse falando alguma bobagem...

O livro Lawfare: uma introdução (2019), de Cristiano Zanin, Valeska Zanin Martins & Rafael Valim traz de forma concisa noções gerais sobre a questão. O conceito é muito novo, ainda mais no Brasil. Cristiano e Valeska usaram o termo "lawfare" pela primeira vez em 10 de outubro de 2016 para explicar o caso Lula.

Uma das motivações para o estudo e desenvolvimento do tema no Brasil por parte dos autores foi efetivamente o processo de perseguição sofrido pelo presidente Lula por parte de agentes do Estado brasileiro, processo político que o levou a uma condenação e prisão por supostos crimes sem materialidade alguma. Felizmente, foram descobertas as farsas por trás das condenações e Lula recuperou seus direitos, apesar de ter ficado 580 dias preso injustamente.

No entanto, neste momento, dezenas ou talvez centenas de casos seguem acontecendo no Brasil e mundo afora. Isso não pode continuar assim, o Direito não pode ser usado de forma tão vil para destruir pessoas, instituições e países.

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LAWFARE EXPLICADO DE FORMA ACESSÍVEL 

"(...) para manifestar a minha preocupação relativamente a uma nova forma de intervenção exógena nas arenas políticas dos países através da utilização abusiva de procedimentos legais e tipificações judiciais. O lawfare, além de colocar em sério risco a democracia dos países, é geralmente usado para minar processos políticos emergentes e tende a violar sistematicamente os direitos sociais. A fim de garantir a qualidade institucional dos Estados, é essencial detectar e neutralizar esse tipo de práticas que resultam de uma atividade judicial imprópria combinada com operações multimidiáticas paralelas." (autores citando fala do Papa Francisco, p. 21/22)


O livro é de leitura possível para pessoas que não sejam do meio jurídico ou acadêmico, usa linguagem cotidiana e exemplos que esclarecem os conceitos jurídicos apresentados.

Não diria que este livro seja um livro para um ou outro segmento de pessoas conforme suas visões ideológicas de mundo. A agressão ao Direito e aos direitos por causa do uso indevido das leis para fins políticos, geopolíticos, comerciais e outros fins (lawfare) é ruim para todos porque afasta a crença das pessoas na importância do sistema jurídico e de justiça dos países.

No final do livro, os autores citam 3 casos de lawfare: um comercial, envolvendo a Siemens; outro vitimando um senador republicano do Alasca (EUA); e o caso brasileiro contra o presidente Lula, através da operação Lava Jato.

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SURPRESAS E APRENDIZADOS JÁ NO INÍCIO DA LEITURA

No início do livro já fiquei bastante impressionado com o histórico do conceito de lawfare apresentado aos leitores. Ao longo do tempo, o termo foi mudando de sentido de um extremo ao outro. 

Antes, nos EUA diziam que o lawfare era ferramenta usada pelo pessoal dos direitos humanos para obstruir suas ações geopolíticas imperialistas:

"é uma arma dos fracos que usam processos judiciais internacionais e o terrorismo para minar a América." (citando texto do Pentágono na p. 18)

Depois, os EUA passaram a fazer lawfare como arma de guerra, eu diria até guerra neocolonial:

"Assim, lawfare se converte em uma 'estratégia de usar - ou abusar - da lei como um substituto aos meios militares tradicionais para alcançar um objetivo operacional." (citando Dunlap Jr. na p. 19)

COMENTÁRIO - Em linhas gerais, usando as minhas palavras e de forma coloquial, o termo tem um histórico mais ou menos assim: 

1. Os poderosos criaram o termo para criticar a estratégia de grupos vulneráveis e frágeis para barrar ou postergar na justiça local ou internacional imposições de vontades dos poderosos sobre os vulneráveis.

2. Após essa fase, os poderosos viram no lawfare uma forma de impor seus desejos imperiais sobre os mais frágeis ou vulneráveis através do direito e da lei como arma de guerra, forma mais barata que as guerras convencionais.

Nas observações e comentários que fiz nas páginas do livro usei algumas vezes a palavra "neocolonialismo" para sintetizar o uso do lawfare por parte do império norte-americano e seus governos e empresas.

Rabisquei o livro inteiro, não daria pra citar muita coisa numa postagem. 

MEU CASO - Durante a leitura do livro, tive, inclusive, a certeza de que o que enfrentei em meu último mandato eletivo em nome dos trabalhadores foi um processo de lawfare.

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ENQUADRAMENTO TEÓRICO: A PERSPECTIVA ESTRATÉGICA

"Com efeito, o vocábulo 'estratégia' deriva etimologicamente da palavra grega estrategos, cujo significado é general, comandante, condutor de tropas..."

"(...) o seu original e autêntico objeto é a guerra, a qual, por sua vez, no entendimento clássico de Clausewitz, traduz-se em 'um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade'."

"Como diz Clausewitz, o objetivo imediato da guerra é 'abater o adversário a fim de torna-lo incapaz de toda e qualquer resistência'."

Citações das páginas 23 e 24.

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ESTRATÉGIA E TÁTICA

"a estratégia é a arte de conceber; a tática é a ciência da execução." (citando Raul François na p. 24)


Outra coisa que já me surpreendeu no início da leitura foi o velho e bom conceito de estratégia e tática, palavras tão utilizadas no movimento social e nos embates políticos e sindicais.

Por mais que eu tenha lidado com objetivos, estratégias e táticas ao longo de décadas de organização e luta política em nome da classe trabalhadora, foi interessante ver a forma como os autores abordam o conceito para seguir na explicação do lawfare.

Os autores afirmam:

"Já podemos concluir, pois, que a política ou a economia subordinam a estratégia e esta, por sua vez, subordina a tática (se referindo a um conceito de Luigi Bonanate em nota). Tal articulação é central na compreensão do lawfare." (p. 25)

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UTILIDADE DE DEFINIÇÕES E CLASSIFICAÇÕES

"Como é de geral conhecimento, as definições e as classificações não são verdadeiras ou falsas, senão que úteis ou inúteis. O critério, portanto, que as preside é o da utilidade, é dizer, sua fecundidade para apresentar um campo de conhecimento de maneira compreensível ou rica de consequências práticas." (Carrió, citado na p. 25)


Sempre disse para dirigentes e trabalhadores em geral que as pessoas deveriam ter pelo menos noções das coisas. O mundo seria um lugar bem melhor se as pessoas não fossem tão sem noção e tivessem uma noção mínima das coisas. 

Sendo assim, agora tenho uma noção sobre a questão do lawfare. Isso é bom, todo dia é um bom dia para aprender algo novo.

Amig@s leitores, como já disse na postagem, o livro sobre lawfare é conciso e direto na apresentação do tema: histórico, conceito, dimensões que o lawfare vem tomando no mundo e as graves consequências oriundas dele em prejuízo de pessoas, instituições e países.

Eu recomendo a leitura para todas as pessoas que lidam com política, com direito e com movimentos sociais em geral para que elas tenham ao menos noção do que seja lawfare.

No momento em que lia o livro - li em 3 dias - um de seus autores - Cristiano Zanin - era sabatinado pelo Senado Federal e ao final da sabatina foi aprovada a sua indicação como ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil. Desejo que Zanin faça um bom trabalho na Corte Suprema do país.

Tenho diversificado minhas leituras, estou lendo de tudo. Este foi o 17º livro que li neste ano. Sigo buscando ter noções sobre as coisas do mundo. 

Estudar e buscar novos conhecimentos é fundamental, ler é uma necessidade. Sigamos lendo e estudando e nos esforçando para melhorarmos como seres humanos, homo sapiens.

William


Bibliografia:

ZANIN MARTINS, Cristiano; ZANIN MARTINS, Valeska Teixeira; VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. São Paulo: Editora Contracorrente, 2019.


segunda-feira, 19 de junho de 2023

Os miseráveis - Victor Hugo (VI)



Refeição Cultural

Osasco, 19 de junho de 2023. Final de noite.


PRIMEIRA PARTE - FANTINE

LIVRO 1: UM JUSTO

VI. Quem lhe guardava a casa

Seguimos conhecendo o senhor Myriel, bispo de Digne. Alguns pensamentos dele ou posturas frente ao mundo:

"De resto, essa habitação, a cargo das duas mulheres, era, de alto a baixo, da mais fina limpeza, único luxo que o bispo permitia. Dizia: Isso não tira nada dos pobres." (P. 62)

Sobre plantar umas flores onde poderia ter verduras e legumes. O bispo diz a senhora Magloire:

"'Senhora Magloire', respondeu o bispo, 'a senhora está enganada. O belo é tão útil quanto o que é útil'. E após um momento de silêncio acrescentou: 'Até mais, talvez.'." (p. 63)

Neste capítulo, vimos que a casa onde moram os três não tem tranca na porta. E o ambiente também é muito simplório, não tendo quase nada além de alguns móveis e coisas sem valor. 

A exceção são uns talheres de prata e dois castiçais usados quando tem visita em casa.

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COMENTÁRIO

"(...) era, de alto a baixo, da mais fina limpeza, único luxo que o bispo permitia..."


Me lembrei das diversas casas nas quais morei de aluguel. Algumas eram melhores, com três cômodos e banheiro, outras eram bem ruins, quarto e cozinha e banheiro coletivo no quintal. 

Fiquei pensando nessa questão da limpeza que o senhor Myriel considerava um luxo...

Penso que existe uma certa imposição moral com essa questão de limpeza. Na nossa vida de classe trabalhadora, me lembro de ouvir muito a frase:

"A gente é pobre, mas a gente é limpinho" ou "Pode entrar que a casa é de pobre, mas é limpinha"...

Que foda, isso! Talvez a limpeza seja mesmo um luxo...

Eu sei que era algo meio que imposto aos pobres a obrigação ética de sermos trabalhadores pobres com casa "limpinha". 

Por anos, eu trabalhava e estudava durante toda a semana e no fim de semana era inaceitável, nem sei por quem, que eu não limpasse meus dois ou três cômodos...

E eu acabei vivendo uns dez anos em casinhas de aluguel nas quais eu poderia dizer que elas estavam sempre limpinhas...

Nada contra ou a favor de limpeza imposta aos outros. 

Fico pensando na sujeira moral dessa elite podre e canalha do mundo. Aqueles palacetes têm uma sujeira inigualável, mesmo perante todo aquele brilho no chão de mármore.

William


Post Scriptum: ver aqui a postagem anterior. A postagem seguinte sobre esse clássico pode ser lida aqui.


Bibliografia:

HUGO, Victor. Os miseráveis. Tradução de Regina Célia de Oliveira. Edição especial. São Paulo: Martin Claret, 2014.

Os miseráveis - Victor Hugo (V)



Refeição Cultural

Osasco, 19 de junho de 2023. Madrugada de segunda-feira.


PRIMEIRA PARTE - FANTINE

LIVRO 1: UM JUSTO

V. Como Monsenhor Bienvenu fazia suas batinas durarem muito tempo

"Como ele fazia suas batinas durarem muito tempo e não queria que ninguém notasse isso, nunca saía pela cidade sem sua capa violeta, o que o incomodava um pouco no verão." (p. 58)


Neste curto capítulo, duas frases me deixaram pensando sobre elas, ambas na página 57:

"Como todos os velhos e como a maior parte dos homens que pensam, ele dormia pouco."

E sobre o tempo que lhe sobrava após todo o tempo dedicado aos pobres:

"(...) ora cavava em seu jardim, ora lia e escrevia. Usava uma única palavra para esses dois tipos de trabalho: jardinar. 'O espírito é um jardim', dizia."

Me lembro que dormi pouco a vida toda. Porque não podia dormir mais. Ou porque queria ficar acordado para estudar ou porque queria fazer algo além de trabalhar como um burro de cargas para algum capitalista desde menino.

Temos no romance de Victor Hugo, um narrador que tudo sabe e até cita o autor do livro.

Ao falar do personagem Myriel, o narrador deixa claro que conta a história dele já sabendo do desfecho, é um narrador em terceira pessoa onisciente, um demiurgo.

"Era letrado e um tanto quanto erudito. Deixou cinco ou seis curiosos manuscritos, entre os quais uma dissertação sobre o versículo do Gênesis..." (p. 58)

E:

"Em outra dissertação, examina as obras teológicas de Hugo, bispo de Ptolémaïs, tio-bisavô do autor deste livro..." (idem)

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COMENTÁRIO

Ainda pensando sobre as frases que citei acima...

O pouco dormir: minha condição me permitiria hoje ficar curtindo o prazer da cama e do sono. Nunca me esqueço do quanto queria dormir um pouco mais durante a vida de trabalho e estudo e não podia.

As coisas mudam. Hoje, sigo sem ficar curtindo o prazer da cama e do sono. No entanto, os motivos são outros. É o tempo de vida que resta que escorre pela ampulheta da vida como a água que escorre pelas mãos em concha.

A forma de olhar o presente e o amanhã muda para algumas pessoas. Mudou para mim. 

Com o quadril danificado, uma caminhada ou corrida ganhou outro sentido... e se eu não puder mais fazer isso amanhã?

Tenho tantos livros em casa que gostaria de ler... e se amanhã eu não puder mais ver?

A forma de ver o tempo e a forma de imaginar o tempo que tenho talvez faça um pouco essa coisa de não ficar à vontade na cama quando acordo após dormir poucas horas e ainda ter vontade de dormir mais.

Sobre jardinar e espírito nem tenho muito o que pensar, nem considero essa questão de ter um espírito que se manterá após a morte de meu organismo animal.

Como gostaria de acreditar nesse conforto das místicas que nossos cérebros humanos criam como abstrações na relação do animal que somos com o mundo material no qual vivemos... gostaria! 

Me lembro exatamente as delícias e os terrores de crer nessas abstrações quando era crente. As religiões dão um conforto danado ao ser humano! Conformam tudo na trágica existência...

Falando em dormir pouco, vamos dormir que o sono pegou pesado e já é 1h43 da madrugada...

William


Post Scriptum: ver aqui a postagem anterior. A postagem seguinte pode ser lida aqui.


Bibliografia:

HUGO, Victor. Os miseráveis. Tradução de Regina Célia de Oliveira. Edição especial. São Paulo: Martin Claret, 2014.