terça-feira, 26 de novembro de 2019

Margo Glantz - Reflexões e memórias de uma época através da ironia de um Eu ficcional


Margo Glantz. Foto Wikipedia, de Aline L. Cámara.

Refeição Cultural

Este artigo é meu trabalho de conclusão de semestre na disciplina que fizemos com a professora Adriana Kanzepolsky. Eu gostei muito da matéria e das aulas da professora. Não consegui fazer o trabalho da forma como gostaria. Faltaram mais leituras críticas. Cheguei a pensar em não fazer o trabalho, mas o fiz de forma honesta e do jeito que foi possível. Dessa forma, sugiro a eventual leitor do texto que o leia de forma crítica, mais como curiosidade e para despertar interesse na escritora e no tema.

William

Margo Glantz - Reflexões e memórias de uma época através da ironia de um Eu ficcional

"Me acuerdo que he escrito varios de estos recuerdos en otros libros. pero los he formulado de manera diferente: el orden de los factores en literatura altera definitivamente el producto." (GLANTZ, 2014, p. 91)

INTRODUÇÃO

A oportunidade de conhecer e estudar a poética da escritora e ensaísta mexicana Margo Glantz foi bastante enriquecedora sob vários aspectos. Alguns deles me agradaram bastante.

Sua obra é um excelente leque de opções para se compreender o conceito atual de literaturas inespecíficas. Em muitos de seus livros e narrativas ficcionais, vemos Eu líricos que apontam e registram com textos argumentativos e ensaios profundos grandes dilemas da atualidade. Suas ficções e contos mesclam autobiografia, histórias coletivas e questões de época e suas pitadas de ironia e humor amenizam o tom narrativo, sem deixar de pontuar as graves denúncias sociais.

A poética e a técnica narrativa de Margo Glantz fazem com que sua leitura seja leve e prazerosa, e suas temáticas lidam muito bem com a questão do texto e do mundo fragmentado de nossa realidade, porém seus textos alinhavam fragmentos sobre as coisas de nosso tempo, unificam e dão sentido aos grandes problemas de nossa época.

Dos conteúdos que vimos durante o semestre de aulas, um dos que mais me identifiquei na temática e poética de Glantz foi o das formas de contar a memória própria, a memória familiar e a memória de uma época. Os livros Las genealogias (1998) e Yo también me acuerdo (2014) me agradaram muito e me fizeram pensar bastante sobre a vida e sobre a nossa realidade.

Vivemos numa época dura em que a velocidade dos acontecimentos, a simultaneidade das coisas e a necessidade de estarmos sempre informados de tudo - como se isso fosse possível - causa tensão e sofrimento aos indivíduos, e a cada amontoado de informações e dados que nos chegam, verdadeiros ou falsos, mais perdidos e desinformados nos sentimos.

Margo Glantz é uma escritora que vale a pena ler e acompanhá-la, pois além de viajar o tempo todo, ela é adepta das redes sociais, não pensa duas vezes antes de expor o que pensa, mantém perfil no Twitter e diariamente opina sobre fatos e acontecimentos, além de compartilhar suas ideias e reflexões.

Apresento abaixo, alguns fragmentos de obras de Margo Glantz com reflexões geradas a partir dos registros feitos pela autora ou, como os críticos apontam após o ressurgimento dos autores - mortos desde Barthes em 1968 (SPERANZA, 2008) -, registros feitos através de Eu líricos que se mesclam com sua criadora.

TODOS OS GÊNEROS VALEM A PENA

Se tomarmos como referência os dois livros que disse sobre a autora, que abordam a memória, o instante que se registra e o passado que vem à tona, podemos citar questões apontadas pela escritora, enquanto exercício de memória, que nos levam a refletir sobre a temática e dela gerar nova reflexão.

Vejamos algumas citações de Yo tambiém me acuerdo:

"Me acuerdo que para Poe la novela moderna es objetable por ser demasiado larga." (GLANTZ, 2014, p.)

"Me acuerdo de Poe e su Teoría de la composición: se inclinaba sin vacilar por el texto breve, por el cuento en prosa, escribió que prefería la narración breve, cuya lectura dura entre una hora y dos."
(GLANTZ, 2014, p.)

Lendo as recordações de Glantz a respeito do que pensava Poe sobre a importância da brevidade dos textos e narrativas, fico pensando até que ponto a humanidade deveria repensar a tendência deste início de século XXI em reduzir, reduzir e reduzir o uso da linguagem como temos visto em ferramentas de comunicação como, por exemplo, o Twitter, ou por "memes" e emojis, ou mesmo se comunicar só por imagens.

Em entrevista recente ao jornalista Luis Nassif, o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis aponta dados alarmantes em relação à regressão naquilo que poderíamos chamar de capacidade de comunicação e linguagem humana.

Ao falar sobre a redução da importância da imprensa escrita, Nicolelis comenta que o ser humano está passando por um processo de mutação de sua espécie. O coeficiente de inteligência sofreu redução de 10 pontos nos últimos 20 a 30 anos nas sociedades avançadas; a redução do uso de palavras e do vocabulário dos jovens norte-americanos foi de 30% nos últimos 40 anos; houve redução da compreensão de texto escrito e diminuiu-se a habilidade para escrever e comunicar ideias nos últimos anos.

O cérebro é flexível e realoca energia de áreas que não estão sendo utilizadas para outras áreas do corpo humano. Ou seja, ao se deixar de ler textos complexos, usar o cérebro para criar e resolver problemas, estamos inutilizando o cérebro. É chocante!

Segundo o neurocientista, a longo prazo, poderia estar surgindo uma nova espécie, a homo digital, espécie menos vocal, menos social, menos comunicativa, menos inteligente e menos capaz de desafiar o automatismo e controle que os sistemas políticos poderiam exercer sobre nós.

As informações de Nicolelis só confirmam o que aprendi desde que comecei a estudar, que estudos científicos destacaram a importância da solução de problemas complexos na evolução do cérebro humano, e o uso intensivo do cérebro aumentou nossa inteligência e nossa capacidade de uso da linguagem, nos destacando dos demais animais existentes. A linguagem verbal e escrita teve papel central em nossa evolução.

"Me acuerdo que Poe pensaba que al no poder leerse de un solo impulso la novela se ve privada de la inmensa fuerza que se deriva de la totalidad." (GLANTZ, 2014, p.)

O escritor, contista, poeta e ensaísta norte-americano Edgar Alan Poe, por exemplo, foi um produtor de textos literários do século XIX. Ele nos deixou um patrimônio cultural importante. Acertou em muitas coisas; errou em outras. Ainda bem que outros escritores, de outros gêneros literários, inclusive, também nos deixaram patrimônios culturais com técnicas antagônicas às de Poe.

Se a contradição não fosse possível e se prevalecesse somente a simpatia pelo texto breve por ser aquele que melhor expressaria a totalidade de uma história, não seria no mesmo século XIX em várias partes do mundo que o romance moderno cairia nas graças populares justamente pela técnica de se publicar em capítulos e fragmentos os romances e novelas em jornais e revistas, em folhetins, deixando interrompido o texto num momento importante, para se saber no texto seguinte o que aconteceu na trama.

A estratégia de se publicar romances e novelas em folhetins, além de fixar de vez na cultura popular a leitura de literatura, criou o que hoje conhecemos como leitores de literatura e também fortaleceu um mercado editorial. Que o diga um contemporâneo de Poe, Balzac na França.

Vale destacar que a literatura pode e deve ser uma fonte de prazer. Compartilho do gosto de Margo Glantz pelos contos de Poe, que também me encantam.

"Me acuerdo que me gusta releer los cuentos de Poe, en especial Berenice, enterrada viva y despojada brutalmente de sus dientes por el protagonista." (GLANTZ, 2014, p.)

O REGISTRO DO INSTANTE COMO MEMÓRIA DE UMA ÉPOCA

"Al leer las noticias ¿cómo decidir qué es lo más importante?"
(GLANTZ, 2018, p. 11)

Dentro do tópico de formas de contar a memória, de registrar o instante e evocar o passado, Y por mirarlo todo, nada veia (2018) é outra obra de Margo Glantz muito peculiar em sua estética do fragmento e que aborda a questão da enorme dificuldade que as pessoas têm na atualidade em lidar com a quantidade absurda de informações simultâneas e ininterruptas, gerando com isso algum tipo de sofrimento e dilemas em se definir o que seria relevante ou não nas notícias.

Vejamos o exemplo abaixo do livro de Glantz e o registro comparativo de uma época, que poderíamos fazer a respeito do momento dramático por que passa o Brasil:

"(...) ¿qué policías de Estados Unidos hayan matado a más de mil personas indefensas durante 2015, (...)"
(GLANTZ, 2018, p. 11)

Cito aqui uma notícia comparativa, um dado de nossa realidade brasileira e um registro de época, talvez mais relevante que o exemplo norte-americano, se compararmos o volume de vítimas assassinadas pela polícia dos Estados Unidos em 2015 com o caso da polícia fluminense; lembrando que naquele país vivem mais de 328 milhões de pessoas.

Segundo o artigo do jornalista Eric Nepumoceno, do Jornalistas pela Democracia, a polícia do Estado do Rio de Janeiro matou nos primeiros 10 meses do ano de 2019, o total de 1.546 pessoas. Foram em média 5 pessoas por dia, num Estado que tem uma população de pouco mais de 17 milhões de pessoas (IBGE, 2018).

E pensar que dos milhares de dados e informações pesquisados pela escritora Margo Glantz, chamou atenção dela e mereceu registro em seu livro o grande volume de pessoas mortas pela polícia norte-americana.

Que fique registrado aqui o quanto as coisas no Brasil são exponenciais quando comparamos nossas misérias com as dos países chamados avançados ou desenvolvidos.

CRÍTICA ÁCIDA E BEM HUMORADA

Um dos traços característicos que apreendemos ao ler a poética de Glantz é a forma de tecer crítica a grandes questões da sociedade e da humanidade.

De repente, em meio a descrições de fatos ou nas narrativas ficcionais, surgem as críticas a temas como discriminação, violência, pobreza, crimes diversos, e a escritora tem uma maneira bem peculiar de fazer as críticas, com uma fina ironia ou com certa dose de humor.

Vejamos o exemplo abaixo, em Yo también me acuerdo:

"Me acuerdo de que los arquitectos famosos son buenos diseñadores, pero se olvidan de los usuarios; en la Cineteca Nacional los baños son exiguos y las salas de exhibición no tienen salida de emergencia." (GLANTZ, 2014, p. 87)

"Me acuerdo que cuando diseñan los baños de los edificios públicos a los arquitectos se les olvida que las mujeres necesitamos más espacio para orinar que los varones." (GLANTZ, 2014, p. 87)

"Me acuerdo que en los baños de mujeres siempre se hace cola y que los baños de hombres casi siempre están vacíos." (GLANTZ, 2014, p. 87)

Seu humor e a forma irônica de fazer denúncias sociais ou críticas sobre algum tema são muito refinados em seus textos. Percebi isso nos contos que lemos da autora e também nas entrevistas que li e ouvi na internet ao longo do semestre letivo.

Vejamos abaixo mais um exemplo da técnica através de uma passagem no livro Las genealogías, em uma frase dela quando o pai conta que levou umas bofetadas quando foi cobrar uma dívida de pães e confeites de um cliente mexicano:

"Así cumplió mi padre con los preceptos bíblicos y gano el pan con el sudor de su frente" (GLANTZ, 1998, p. 105)

POLÍTICA, ECONOMIA E HISTÓRIA

Margo Glantz faz registros de acontecimentos e fatos da época que estamos vivendo. O fechamento de livrarias como consequência do capitalismo e da tecnologia; as lutas de emancipação e igualdade de gênero, sempre aquém do avanço necessário; grandes eventos políticos e sociais que alteram a história. A diferença dos registros dela está na qualidade da escrita: crítica, irônica e reflexiva.

Desaparecimento das livrarias:

"Me acuerdo que hace unos días otra librería desaparecío en París." (GLANTZ, 2014, p. 55)

"Me acuerdo que hace como cuatro años fui a buscar libros y revistas a esa librería: había sido sustituída por una boutique Lévi-Strauss." (GLANTZ, 2014, p. 55)

Direitos das mulheres:

"Me acuerdo de una frase que escribió Simone de Beauvoir en 1980: No olvidar jamás que bastará una crisis política, económica o religiosa para poner en cuestión los derechos de las mujeres." (GLANTZ, 2014, p. 56)

Fim do regime de Stálin:

"Me acuerdo de un titular periodístico mexicano, en marzo de 1953: Alzó los tenis el padrecito Stalin." (GLANTZ, 2014, p. 19)

Questões nacionais do México:

"Me acuerdo que México ya tiene el primer lugar en casos de obesidad, y que, afortunadamente, alcanzamos el tercero en casos de corrupción." (GLANTZ, 2014, p. 62)

"Me acuerdo que las calles de la Ciudad de México se han vuelto intransitables." (GLANTZ, 2014, p. 62)

SOBRE KARL MARX

Um dos maiores filósofos da humanidade é também um homem, nos lembra Margo Glantz, e com isso está sujeito a todas as questões de época, cultura e costumes. Nesta passagem, vemos a questão do machismo e da desigualdade de gênero.

"En un libro recientemente publicado en Francia, las hijas de Karl Marx definen en cartas sucesivas la felicidad desdichada de tener como padre el famoso doctor. Al nacer alguna de ellas, Eleanor, Marx le anuncia a su fiel Engels: 'Desgraciadamente es del sexo por excelencia.' Puede absolverse a Marx quizá si se piensa que uno de sus hijos ya había muerto por entonces y el otro estaba agonizando y que el único vástago de Marx que sobreviviera fue el que tuvo con la sirvienta, hijo que, como amigo entrañable, por no decir otra cosa, Engels adoptó como suyo y que las hijas de Marx ignoraron hasta la muerte del barbudo compañero de su padre..."
(GLANTZ, 1998, p. 76)

RESMUNGANDO UMA LÍNGUA QUE NÃO É SUA

Nas obras de Margo Glantz vemos o tempo todo algumas questões relativas a certas hierarquizações de estratos sociais - pessoas e grupos que se colocam acima dos outros -, e isso se dá como algo cultural.

Falar uma língua que não é sua, por exemplo, pode fazer com que você se sinta excluído, diminuído em certos ambientes que utilizam isso para classificar pessoas e grupos. Não por parte do falante estrangeiro, mas por preconceito do ouvinte nativo.

Ela usa o verbo "mascullar" para apresentar o contexto em que um personagem tenta se comunicar em uma segunda língua, em um mundo que não é o seu mundo de origem.

"El señor Filler le prestó a mi mamá 50 pesos, mismos que sirvieron para pagar la cuenta del hospital. Mientras mi padre estaba enfermo, mi madre salía a vender el pan con Serafín, el muchacho oaxaqueño, bajito y fornido, que se reía todo el tiempo cuando oía a mi papá mascullar el español. Toda la gente veía a mi mamá como si fuera marciana, vestida muy elegante, vendiendo pan de casa en casa."
(GLANTZ, 1998, p. 110)

UN RATO* CON LAS RATAS

Momento em que o pai de Margo foi preso nos anos vinte por ser de esquerda (e ser confundido com anarquistas) e protestar contra as injustiças do governo no México.

"Y no es juego de palabras, pero ese rato se convertía en ratas que de tamaño descomunal se paseaban sobre la cama y sobre el preso..." (GLANTZ, 1998, p. 113)


* Em espanhol "un rato" é um instante, um tempo curto, um momento.

CRISTÓVÃO COLOMBO OU HERNÁN CORTÉS?

"Todo emigrante que viene a América se siente Colón y si viene a México quiere ser Cortés. Mi padre prefirió a Colón y, como Carpentier, escribió un poema épico lírico sobre el navegante genovés..."
(GLANTZ, 1998, p. 136)

O senhor Glantz extraía dentes para sobreviver. Mas não gostava nem um pouco da atividade "sangrenta". Também não gostava de fazer obturações porque era algo chato. Nas horas vagas escrevia poesia, era o que gostava e preferia.

"Sacar muelas era menos aburrido pero más sangriento, lo único que importaba era leer y hacer poesía. Por eso escribió Banderas ensangrentadas, en 1936, poema político en honor de los republicanos españoles, y luego, en 1938, su gran poema dedicado a Colón..." (GLANTZ, 1998, p. 137)

OVELHA NEGRA E FILHA PRÓDIGA

"Kzaid es el pedazo de pan que se arranca de la hogaza antes de bendecir el sábado. Luego escribió otro gran poema, Nizaión (Prueba), dedicado a mí, cuando traicioné al pueblo elegido. Fue traducido por los 50 como Cantares de ausencia y de retorno. Allí, aparezco como oveja negra, y luego, quizá también, como Hija Pródiga." (GLANTZ, 1998, p. 138)

A MEMÓRIA PODE NOS TRAIR (OU PODE SER CONVENIENTE)

"Repetir un acto mil vezes condensa el recuerdo, pero los recuerdos traicionan aunque se recuerden mil veces en la mente. Jacobo niega ciertas minucias que antes recordaba y los calzones con encaje se transforman simplemente en encaje suizo, maravilloso, delicado, pero aún suelto, sin ropa que decorar. Mi padre dice que cada vez recuerda mejor las cosas de su infancia y que casi todo lo demás se borra: a veces resucita y yo lo aprovecho como buitre."
(GLANTZ, 1998, p. 103)

Interessante essa reflexão sobre nossas memórias e suas seletividades. O que antes era calcinha com renda, artefato talvez inapropriado para pessoas de certa religião ou visão conservadora de comportamento individual, se transforma por um misterioso ato da memória em renda suíça, sem ligação com a calcinha que adornava.

Se pensarmos bem, nossa memória faz isso o tempo todo, quando lhe é conveniente.

Fim

BIBLIOGRAFIA

GLANTZ, Margo. Las genealogías. Alfaguara, México, 1998.

GLANTZ, Margo. Y por mirarlo todo, nada veía.
Editorial Sexto Piso, Espanha, 2018.

GLANTZ, Margo.
Yo también me acuerdo. Editorial Sexto Piso, Espanha, 2014.

SPERANZA, Graciela. ¿Dónde está el autor?, en Otra parte. Revista de letras y artes, nº 14, outono de 2008.

NEPOMUCENO, Eric. Jornalistas pela Democracia, no site Brasil247, em 25 de novembro de 2019: https://www.brasil247.com/blog/o-genocida-wilson-witzel-e-sua-policia-assassina

NICOLELIS, Miguel. Entrevista a Luis Nassif, no site GGN, em 12 de julho de 2019: https://jornalggn.com.br/novademocracia/nova-democracia-tv/uma-entrevista-imperdivel-com-nicolelis-por-luis-nassif/

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Depressão pela banalização do mal



"o mal é não estarmos organizados, devia haver uma organização em cada prédio, em cada rua, em cada bairro, Um governo, disse a mulher, Uma organização, o corpo também é um sistema organizado, está vivo enquanto se mantém organizado, e a morte não é mais do que o efeito de uma desorganização, E como poderá uma sociedade de cegos organizar-se para que viva, Organizando-se, organizar-se já é, de uma certa maneira, começar a ter olhos..." (SARAMAGO, 2002, p. 281)


Quando saí de casa para correr ontem, domingo, estava bem deprimido. Saí para correr a esmo. Tenho certeza que a corrida por uma hora me ajudou a melhorar um pouco, foram quase dez quilômetros correndo pra cima e pra baixo no bairro onde moro, e com a experiência que acumulei em cinco décadas de vida sei dos efeitos maléficos das diversas patologias psicológicas no corpo da gente: elas nos arrebentam por dentro. Depois de um certo tempo de trote, atividade aeróbica, seu corpo libera hormônios que te fazem bem e te aliviam o estresse psicológico e até físico. A corrida foi um respiro do bem ao corpo. Ao voltar para casa, para o mundo, a gente já volta ao contato com todo o mal que assola nossa vida e seguimos adoecendo por dentro.

Ao olhar para trás, vejo a minha busca por décadas, meus escritos mais pessoais, e percebo em minhas memórias o que queria e o que me fez ser o que sou, e sempre aparece a palavra ou alguma coisa que represente o sentimento de "paz". Acho que procurei a vida inteira por um pouco de paz. Talvez porque sempre tenha sentido muita raiva, muita dor, muita tristeza, muita falta das coisas, não só materiais, coisas da cultura. Senti muito ódio na vida. E quando a gente finge ser durão porque precisa, como fizeram Diadorim e Riobaldo Tatarana, tendo que viver naquele Grande Sertão: veredas, mundo de jagunços, coronéis e polícias, todos maus, a gente uma hora cansa, esgota. 

Esgotei de ver o mal e os maus vencendo de uma forma tão total quanto agora depois do golpe de Estado no Brasil, consequência de um processo maior e global de avanço da direita dona do capital mundial.

Depois de décadas lidando relativamente bem com algum tipo de depressão (sobrevivi e produzi coisas úteis), ou tendo algum tipo de problema psicológico, porque nunca fui atrás para saber qual o tipo de diagnóstico formal se encaixaria em meu caso, percebo agora aos cinquenta anos que as derrotas coletivas que a classe trabalhadora vem sofrendo cotidianamente me quebraram, me pegaram. 

E acredito que toda essa avalanche de destruição de nosso mundo, toda essa maldade gratuita, todo o sucesso do mal, tudo isso junto e ao mesmo tempo, deve estar afetando muitos de nós que dedicamos a vida a praticar o bem comum, a lutar por um mundo melhor para se viver, um mundo mais justo, solidário e igual para todos. A vitória do mal está nos quebrando de verdade.

Quando a gente se torna uma pessoa com mais consciência política, com visão crítica do mundo e da realidade, a gente não consegue mais voltar a ser a pessoa ignorante que eventualmente tenha sido um dia. Esse é o principal efeito da educação libertadora, da leitura mais engajada e de boa literatura, da formação política de classe, do desenvolvimento de um espírito crítico e humanista nas pessoas, espírito mais centrado na empatia e no desejo de conquistas coletivas e não só pessoais; enfim, o efeito do acesso a essa cultura que citei é nos fazer menos egoístas, menos individualistas e mais colaborativos e cooperativos para se viver em sociedade. 

Destruição das coisas. Da história que fizemos, do ser humano que somos, dos espaços coletivos que criamos, dos laços que fizemos com membros da família, com amigos e conhecidos que chegaram e partiram através das convivências escolares, do trabalho, dos locais onde moramos, da militância que a vida se tornou, enfim, destruição dos espaços coletivos que nos fizeram ser o que somos. Nós somos o acúmulo das diversas vivências que tivemos até hoje. Vivência coletiva, em sociedade. Agora estamos sós, mesmo quando estamos entre pessoas e grupos, estamos sós.

E tudo mudou muito rapidamente para todos nós com o uso de ferramentas de alteração do comportamento humano, ferramentas manipuladas através de redes sociais por pessoas e grupos oportunistas e com poder econômico. Tudo foi muito rápido para os padrões humanos. Pouco mais de uma década de ferramentas que permitem poucos manipularem milhões de pessoas (algoritmos, por exemplo). A pauta do ódio, do medo e da ignorância foi planejada e o efeito disso tem sido devastador para os seres humanos. Fim da democracia. Fim do amor, da amizade e das relações sociais. Fim da reflexão e da paciência. Estamos sofrendo com isso e a vida está perdendo o sentido.

"Happiness only real when shared(A felicidade só é completa/verdadeira quando compartilhada)

Essa frase foi encontrada junto aos restos mortais do jovem norte-americano Alex Supertramp, pseudônimo criado por Christopher McCandless, encontrado em setembro de 1992 em um velho ônibus abandonado no meio do Alasca; ele estava sozinho quando faleceu, após uma longa jornada em busca de algo que ele procurava, talvez um sentido, talvez a felicidade. 

Tenho que pensar em mim para estar aqui. Mas temos que pensar nos outros, para ter algum sentido estarmos aqui. O que estamos vivendo com esta distopia bolsonarista é algo novo e desesperador. Estar aqui é estar para si e para os outros. Quando os outros apoiam o mal, não se indignam com os absurdos contrários aos conceitos básicos de humanidade, quando os outros reproduzem as aberrações inumanas, as coisas perdem o sentido, ficamos sem chão, adoecemos. É isso que estamos vivendo. 

Qual o sentido de tudo quando as pessoas de seu convívio foram capturadas pela lábia, pela retórica, pela manipulação dos homens do mal que estão destruindo todas as possibilidade de um mundo melhor? Hitler e Goebbels fizeram manipulação de massas e o nazismo prosperou na sociedade mais culta e desenvolvida do início do século XX. Hoje, pessoas ao nosso redor fazem vista grossa para o envolvimento do regime com a milícia e bandidos, com o autoritarismo, com a pregação de matar adversários políticos e pobres, com a defesa da violência armada, com as centenas de mentiras descabidas... nossos familiares, colegas, artistas e famosos estão apoiando isso ou se calando...

Difícil dizer algo, difícil, tudo o que a gente acumulou na experiência coletiva parece até que não valeu nada, nada, nada. Como conquistas de décadas são destruídas em meses e parte considerável das vítimas ainda apoia isso? É muito distópico! Não estamos sabendo lidar com isso nem reagir a isso.

William

Post Scriptum: 

Após meses encantado com as aulas que tive de literaturas, não consegui sequer ter cabeça para sentar e fazer os trabalhos de conclusão de disciplina para esta semana. Fico entre triste e envergonhado porque as professoras são muito boas e as aulas delas são muito legais. Mas ver o mal em alta, com apoio das pessoas comuns ao meu redor e a divisão total na minha classe social, faz tudo perder o sentido. Tudo sem sentido. Não sobra paz em mim para algo tão belo quanto a produção de cultura.


Bibliografia:

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. Companhia das Letras, São Paulo, 2002.

domingo, 24 de novembro de 2019

Leitura: Nocturno de Chile - Roberto Bolaño


Roberto Bolaño. Foto divulgação.

Refeição Cultural

Neste semestre, tive o prazer do contato com a literatura e a poética do escritor chileno Roberto Bolaño, que faleceu muito jovem aos 50 anos de idade, quando suas obras já se destacavam na literatura de língua espanhola e também já eram traduzidas para diversos países.

Para o trabalho de conclusão da disciplina, a professora Laura Hosiasson nos pediu para pensarmos em algo que nos tenha chamado a atenção nas leituras que fizemos do autor. Eu gostei bastante da poética de Bolaño, sobretudo gostei do livro Nocturno de Chile (2000). 

Esta postagem sobre a leitura da obra foi base para minhas reflexões no trabalho da disciplina que fiz. Foi um período bastante atribulado para mim. Eu gostaria de ter podido ler mais textos críticos a respeito do livro e incluir algumas questões apontadas pelos autores, mas isso não foi possível dentro do prazo que tinha; as leituras ainda serão feitas por mim.

Gostei muito dos contos que lemos também de alguns de seus livros. Um dos textos que mais me marcaram foi o relato "Literatura + enfermedad = enfermedad", do livro El gaucho insufrible (2003). Fiquei muito pensativo após a leitura do texto, muito.

O texto abaixo sobre o romance de Bolaño, contém citações e análises de suas partes - spoiler - de forma que o ideal seria que eventual interessado em ler este livro visse as reflexões contidas aqui depois da leitura.

NOCTURNO DE CHILE – AINDA A TORMENTA

O romance é um convite à reflexão por diversos motivos, a começar por sua estrutura pouco tradicional em relação a romances: a narrativa se dá em apenas dois parágrafos, sendo o primeiro com mais de uma centena de páginas e o segundo e último parágrafo com uma linha de extensão.

A narrativa também é inovadora porque poucas obras ousaram tanto no uso da técnica do fluxo de consciência, em que o narrador em primeira pessoa passa a descrever os acontecimentos, pensamentos ou sentimentos de formas variadas e normalmente ininterruptas.

No século passado, o mundo havia se surpreendido com o lançamento de Ulisses (1922), do escritor irlandês James Joyce, que experimentou várias técnicas narrativas em um romance que marcaria a história da literatura mundial.

No último capítulo de Ulisses, a personagem Molly Bloom inicia um fluxo de pensamento que se estenderá por dezenas de páginas do livro, praticamente sem pontuações e mesclando os assuntos mais variados possíveis.

A técnica narrativa coloca o leitor em contato com uma ideia bastante sugestiva de como funcionam os nossos pensamentos, que alternam diversas coisas ao mesmo tempo: memórias, reflexões, desejos, avaliações, sentimentos, projeções de futuro, criatividade etc.

O romance de Bolaño nos motiva muito a leitura porque além de ser uma obra bem feita nos planos estético, semântico e material, como se observa em bons livros de poesia e literatura, também abre possibilidades de leituras no plano dos sentidos - no caso, leitura política -, pois a interpretação e vinculação com a realidade de eventos ocorridos no Chile durante a ditadura de Pinochet são claras, ampliando assim os sentidos da obra. Da leitura política, podemos dizer o seguinte: Noturno do Chile – ainda a tormenta.

Para citar mais uma motivação sobre os encantos do romance Nocturno de Chile, chama atenção o uso de ferramentas e técnicas utilizadas na linguagem poética; o romance tem passagens belíssimas com uso de anáforas, metáforas, metonímias e outras figuras utilizadas nas estruturas do gênero lírico.


O CONTRATO ENTRE O LEITOR E O NARRADOR

O romance começa estabelecendo os parâmetros da narrativa que irá se desenvolver a partir de ali: quem está falando, sobre o que irá falar, como e por que vai narrar a história.

"Ahora me muero, pero tengo muchas cosas que decir todavía. Estaba en paz conmigo mismo. Mudo y en paz. Pero de improviso surgieron las cosas. Ese joven envejecido es el culpable. Yo estaba en paz. Ahora no estoy en paz. Hay que aclarar algunos puntos. Así que me apoyaré en un codo y levantaré la cabeza, mi noble cabeza temblorosa, y rebuscaré en el rincón de los recuerdos aquellos actos que me justifican y que por lo tanto desdicen las infamias que el joven envejecido ha esparcido en mi descrédito en una sola noche relampagueante..."

Temos um narrador em primeira pessoa, que vai falar sobre sua vida, está acamado e diz estar morrendo, mas vai se apoiar no cotovelo e de cabeça erguida irá buscar recordações que o justifiquem. Afirma também que fará isso por ter sofrido infâmias espalhadas contra ele por um tal jovem envelhecido.

Bom começo. A partir daí, o leitor vai acompanhar a narrativa em fluxo de consciência do personagem central, que se identifica logo em seguida como Sebastián Urrutia Lacroix, um cidadão chileno.

CHAVES PARA DESVENDAR A PERSONALIDADE DO NARRADOR

Com uma leitura atenta, é possível captar algumas características importantes do narrador e que serão de grande auxílio para compreender e interpretar os sentidos da narrativa que ele fará para nós, os leitores.

Ele afirma ser uma pessoa que não busca a confrontação, não quer saber de se envolver em conflitos e diz ser uma pessoa razoável.

"Yo no busco la confrontación, nunca la he buscado, yo busco la paz, la responsabilidad de los actos y de las palabras y de los silencios. Soy un hombre razonable. Siempre he sido un hombre razonable."

Aliás, sobre "os silêncios", ele nos revela que tem uma preocupação ou talvez atenção especial em relação ao silêncio, aos pensamentos e atos não falados (não revelados), e que só a Deus se prestaria contas definitivas sobre certas coisas não ditas, sobre certas cumplicidades na vida nunca ditas a ninguém.

"Uno tiene la obligación moral de ser responsable de sus actos y también de sus palabras e incluso de sus silencios, sí, de sus silencios, porque también los silencios ascienden al cielo y los oye Dios y sólo Dios los comprende y los juzga, así que mucho cuidado con los silencios. Yo soy responsable de todo."

O narrador em primeira pessoa estabelece com o leitor um contrato bastante claro a respeito da narrativa que irá contar. Ele vai buscar nos rincões da memória, atos que o justifiquem e vai escolher quais são eles e a forma como quer que saibamos deles, é a sua versão dos fatos.

E os objetivos são claros, nada que deponha contra ele, e sim que justifique uma vida correta, responsável e "imaculada" como ele diz de si mesmo: "Mis silencios son inmaculados".

LITERATURA E ALTA SOCIEDADE

Podemos dividir o longo fluxo de pensamento do narrador, senhor Urrutia - padre da Opus Dei, poeta fracassado e crítico literário - em alguns episódios e momentos de sua vida.

Na primeira parte das recordações do narrador, ele nos conta sobre sua formação religiosa e a forma como teve acesso aos espaços da alta sociedade, ao conhecer o crítico literário mais famoso do país, o personagem Farewell.

"Y poco antes o poco después, es decir días antes de ser ordenado sacerdote o días después de tomar los santos votos, conocí a Farewell, al famoso Farewell, no recuerdo con exactitud dónde, probablemente en su casa..."

Nestas recordações, ele nos conta da visita a propriedade de Farewell, do assédio sexual que sofreu (e tolerou), do contato com Pablo Neruda e outras personalidades da cultura em um sarau.

A técnica narrativa de Bolaño é excelente. Há passagens que nos lembram clássicos da literatura mundial.

A chegada de Urrutia à vila de Querquén "vacía de todo atisbo de personas" nos lembra tanto a chegada de Juan Preciado a Comala em Pedro Páramo (1955), de Juan Rulfo, como o comportamento dos pássaros gorjeando sons que "parecían decir quién, quién, quién" em meio à solidão da praça principal, descrição que nos lembra O corvo (1845), poema de Edgar Allan Poe, famoso pelo grasnar "nevermore".

Ainda nesta primeira recordação, o narrador nos conta de forma poética e metafórica a imagem que teve da casa de Farewell, uma espécie de porto seguro da literatura nacional.

"Me dije a mí mismo que mi anfitrión era sin duda el estuario en donde se refugiaban, por períodos cortos o largos, todas las embarcaciones literarias de la patria, desde los frágiles yates hasta los grandes cargueros, desde los odoríficos barcos de pesca hasta los extravagantes acorazados. ¡No por casualidad, un rato antes, su casa me había parecido un transatlántico! En realidad, me dije a mí mismo, la casa de Farewell era un puerto."


LITERATURA E VAIDADE

Nesta segunda parte das recordações, o senhor Urrutia narra o período em que passou a trabalhar na Universidade Católica do Chile, começou a publicar seus poemas e fazer críticas literárias.

Ele nos conta que ouviu uma voz interior, seu superego, e ela teve grande influência nas decisões e ações tomadas pelo narrador nesta fase. Urrutia criou um pseudônimo - H. Ibacache - para seguir criticando poetas e literatos (e elogiando a si mesmo) e planejou um futuro glorioso como poeta.

"Urrutia Lacroix planeaba una obra poética para el futuro, una obra de ambición canónica que iba a cristalizar únicamente con el paso de los años, en una métrica que ya nadie en Chile practicaba, ¡qué digo!, que nunca nadie jamás había practicado en Chile, mientras Ibacache leía y explicaba en voz alta sus lecturas tal como antes lo había hecho Farewell, en un esfuerzo dilucidador de nuestra literatura, en un esfuerzo razonable, en un esfuerzo civilizador, en un esfuerzo de tono comedido y conciliador, como un humilde faro en la costa de la muerte."

Não poderia faltar o tom poético com que Bolaño descreve o episódio narrado em fluxo de pensamento pelo poeta Urrutia, com anáforas: "en un esfuerzo", "en un esfuerzo"...

A narrativa nos apresenta histórias dentro de histórias. Falando sobre pureza poética, Urrutia nos conta um episódio na casa de um diplomata, Salvador Reyes, que por sua vez vai falar sobre pureza em outro episódio com o escritor alemão Ernst Jünger, ocorrido na Paris ocupada durante a 2ª Guerra Mundial. Dentro desta história, será narrado novo episódio com um pintor guatemalteco e seu quadro "Paisaje de Ciudad de México una hora antes del amanecer".

Ao contar essas histórias dentro de outras histórias, o personagem principal Urrutia confessa aos leitores estar com melancolia, o mal que, segundo ele, ataca pessoas pusilânimes, e com isso nos dá outra chave para compreender a personalidade e o estado mental do narrador.

"melancolía, morbus melancholicus, el mal que ataca a los pusilánimes (...) la bilis negra, esta bilis negra que hoy me corroe y me hace flojo y me pone al borde de las lágrimas al escuchar las palabras del joven envejecido"

Ainda dentro dessas lembranças da visita a casa do diplomata, Urrutia e Farewell saem para comer e nova história é contada por Farewell, a história do sapateiro súdito do imperador austro-húngaro: "la historia de la Colina de los Héroes o Heldenberg". As reflexões em questão abordam a temática da mortalidade e a fugacidade das coisas.

Antes de nos contar sobre sua colaboração com a ditadura de Pinochet, o sacerdote Urrutia narra mais um diálogo que teve com Farewell sobre a igreja e os papas, e nos revela ser da Opus Dei.

De passagem em passagem de uma história a outra, o jovem envelhecido retorna nas citações do narrador. Às vezes, as acusações e cobranças dessa voz são agressivas como neste exemplo:

"Seamos civilizados, susurro. Pero él no me oye. De vez en cuando alguna de sus palabras llega con claridad. Insultos, qué otra cosa. ¿Maricón, dice? ¿Opusdeísta, dice? ¿Opusdeísta maricón, dice?"

Nessa altura da narrativa de Urrutia, sabemos que o jovem envelhecido é a voz de sua consciência, que cobra dele as escolhas que fez, a sua pusilanimidade e os silêncios que manteve durante os piores momentos na vida de seu país. Cobra também a responsabilidade pela literatura ser o que é em seu país - pouco expressiva -, e aqui vemos a crítica de Bolaño também.


LITERATURA E PODER DO ESTADO

Entramos em outra parte da história do senhor Urrutia/Ibacache: sua relação com agentes do Estado ou próximos a setores do Estado, não fica muito claro isso, começa através do contato com dois agentes de uma empresa contratada por setores da igreja, cujos nomes são Medo e Ódio, invertidos.

"Fue por aquellos días cuando conocí al señor Odeim y más tarde al señor Oido."

Ao que parece, a estratégia que os setores mais conservadores do Estado e/ou da igreja desenvolveu para se aproximar do padre Urrutia foi propor a ele um trabalho bem interessante, feito à medida para ele, viajando pelo continente europeu, estudando as técnicas de conservação das igrejas seculares de lá. Ele aceitou.

"La Casa de Estudios del Arzobispado quería que alguien preparara un trabajo sobre conservación de iglesias. En Chile, como no podía ser menos, nadie sabía nada acerca de este tema. En Europa, por el contrario, las investigaciones iban muy avanzadas y en algunos casos se hablaba ya de soluciones definitivas para frenar el deterioro de las casas de Dios. Mi trabajo consistiría en ir, visitar las iglesias punteras en soluciones antidesgaste, cotejar los distintos sistemas, escribir un informe y volver."

Depois da realização do estudo feito pelo padre Urrutia, ele vai voltar ao Chile, encontrando um país em ebulição; período de eleições gerais; Allende chega ao poder; golpe de Estado e início da ditadura de Pinochet. Essa parte nos é narrada após a sua estadia na Europa, que vemos a seguir.

A TÉCNICA DE CONSERVAÇÃO DAS IGREJAS NA EUROPA

Esta parte da obra é uma das mais interessantes em relação à técnica narrativa, com uso de imagens poéticas. A descrição da passagem do padre Urrutia por diversos países conhecendo as igrejas.

Em diversas igrejas, são utilizados falcões para caçar e afastar pombas dos monumentos porque as fezes delas são ameaças à conservação das construções pelo poder corrosivo que têm.

O leitor consegue facilmente perceber a simbologia em relação ao uso de aves predadoras e aves caçadas, entre falcões e pombas/estorninhos como algo relativo a regimes autoritários e democracia, entre o status quo e as camadas menos favorecidas e populares.

SÍNTESE DA PASSAGEM DE URRUTIA PELA EUROPA

- Pistóia, ITA, Igreja Santa Maria da Dor Perpétua, padre Pietro, falcão Turco;

- Turim, ITA, Igreja São Paulo do Socorro, padre Angelo, falcão Otelo;

- Estrasburgo, FRA, não falou nome da igreja, padre Joseph, falcão Xenofonte;

- Avignon, FRA, Igreja Nossa Senhora do Meio-Dia, padre Fabrice, falcão Ta Gueule (o mais sanguinário dos falcões); a descrição das cenas de caças de estorninhos em meio a um céu vermelho é impressionante, de arrepiar;

- Pamplona, ESP. Não utilizam a técnica dos falcões na conservação de igrejas. Urrutia tratou de questões particulares e da igreja, inclusive assinou contrato de publicação de suas obras;

- Burgos, ESP, padre Antonio (um velhinho), falcão Rodrigo (que não caçava pombas, o padre era contra caçar aquelas criaturas de Deus), ambos estavam decrépitos; a história narrada é de arrepiar. O falcão estava em condições precárias, num canto, preso, amuado. Com o estado febril do padre, Urrutia soltou o falcão, que reencontrou seus instintos, matou diversas pombas e desapareceu para sempre nos céus de Burgos. O padre Antonio se libertou também e faleceu naquela noite;

- Madri, ESP, Urrutia tratou de outros temas por lá, porque em Madri eles não ligam para essa questão de conservação de igrejas;

- Namur, BEL, Igreja Nossa Senhora dos Bosques, padre Charles, falcão Ronnie;

- Saint-Quentin, FRA, Igreja de São Pedro e São Paulo, padre Paul, falcão Febre; uma cena chocante aconteceu na cidade. O falcão do padre Paul estraçalhou uma pomba branca que deu início a jogos na cidade;

- O padre Urrutia foi para Paris e depois passou um tempo visitando países europeus até que retornou a América.

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FALCÃO SANGUINÁRIO, UMA METÁFORA DO QUE VIRIA NA HISTÓRIA

Avignon - A descrição que o narrador faz dos céus vermelhos em consequência da ferocidade do falcão Ta Gueule é impressionante:

"y fui a Avignon, a la iglesia de Nuestra Madre del Mediodía, en donde era párroco el padre Fabrice, cuyo halcón se llamaba Ta gueule y era conocido en los alrededores por su voracidad y ferocidad, y con el padre Fabrice tuvimos tardes inolvidables, mientras Ta gueule volaba y  deshacía ya no sólo bandadas de palomas sino de estorninos que por aquellos días lejanos y felices abundaban en las tierras provenzales, las tierras que recorrió Sordel, Sordello, ¿qué Sordello?, y Ta gueule echaba a volar y se perdía entre las nubes bajas, las nubes que bajaban de las mancilladas y al tiempo puras colinas de Avignon, y mientras el padre Fabrice y yo hablábamos, de pronto Ta gueule volvía a aparecer como un rayo o como la abstracción mental de un rayo para caer sobre las enormes bandadas de estorninos que aparecían por el oeste como enjambres de moscas, ennegreciendo el cielo con su revolotear errático, y al cabo de pocos minutos el revolotear de los estorninos se ensangrentaba, se fragmentaba y se ensangrentaba, y entonces el atardecer de las afueras de Avignon se teñía de rojo intenso, como el rojo de los crepúsculos que uno ve desde las ventanillas de un avión, o el rojo de los amaneceres, cuando uno despierta suavemente con el ruido de los motores silbando en los oídos y corre la cortinilla del avión y en el horizonte distingue una línea roja como una vena, la femoral del planeta, la aorta del planeta que poco a poco se va hinchando, esa vena de sangre fue la que vi en los cielos de Avignon, el vuelo ensangrentado de los estorninos, los movimientos como de paleta de pintor expresionista abstracto de Ta gueule, ah, la paz, la armonía de la naturaleza que en ningún lugar es tan evidente ni tan explícita como en Avignon, y luego el padre Fabrice silbaba y esperábamos un tiempo indefinible, mensurado únicamente por los latidos de nuestros corazones, hasta que nuestro tembloroso halcón se posaba en su brazo. Y luego tomé el tren y me marché de Avignon con gran tristeza"


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UM SONHO SIMBÓLICO DE URRUTIA, ANTES DE VOLTAR AO CHILE

Em Roma, antes de voltar para o Chile, o padre Urrutia teve sonhos estranhos durante sua estadia em Roma. Sonhou com falcões que atravessavam o oceano Atlântico rumo a América.

"Fui a Roma. Me arrodillé ante el Santo Padre. Lloré. Tuve sueños inquietantes. Veía mujeres que se rasgaban las vestiduras. Veía al padre Antonio, el cura de Burgos, que antes de morir abría un ojo y me decía: esto está muy malo, amiguito. Veía una bandada de halcones, miles de halcones que volaban a gran altura por encima del océano Atlántico, en dirección a América. A veces el sol se ennegrecía en mis sueños."

Tanto na história dentro do romance veríamos golpe de Estado e a instituição da barbárie contra o povo, como na vida real ocorreria nas Américas, naqueles anos de regimes autoritários, uma certa operação batizada de "Operação Condor", cujos predadores sanguinários aniquilaram milhares de presas, presos políticos.

LITERATURA E PODER DO ESTADO, 2ª PARTE

Urrutia/Ibacache volta ao Chile após sua passagem pela Europa. Seu fluxo de pensamento faz um panorama rápido do processo de eleição de Allende, crise política e golpe de Estado.

Bolaño descreve o narrador repassando toda a literatura clássica da humanidade - a grega, principalmente - durante o período em que o padre se internou em seus aposentos. Enquanto isso, a direita chilena derrubava o governo de Allende. Findo o processo do golpe, Urrutia pensa o seguinte após o bombardeio do palácio La Moneda, morte de Allende e o início da ditadura:

"qué paz. Me levanté y me asomé a la ventana: qué silencio. El cielo estaba azul, un azul profundo y limpio, jalonado aquí y allá por algunas nubes."

A paz do poeta e crítico Urrutia/Ibacache não foi tão completa ao que parece, porque o narrador nos conta que depois do golpe tentou escrever poesia e a coisa saiu meio demoníaca:

"Los días que siguieron fueron bastante plácidos y yo estaba cansado de leer a tantos griegos. Así que volví a frecuentar la literatura chilena. Intenté escribir algún poema. Al principio sólo me salían yambos. Después no sé lo que me pasó. De angélica mi poesía se tornó demoníaca."

Ao longo da narrativa em fluxo de pensamento, o narrador nos deu várias pistas a respeito de sua personalidade. Além de não querer confrontação, de se dizer razoável, e de afirmar no presente da enunciação que está melancólico, nos revela agora também questões bem íntimas sobre si mesmo: os desejos sexuais. Lidar com isso o deixa furioso:

"Escribía sobre mujeres a las que zahería sin piedad, escribía sobre invertidos, sobre niños perdidos en estaciones de trenes abandonadas. Mi poesía siempre había sido, para decirlo en una palabra, apolínea, y lo que ahora me salía más bien era, por llamarlo tentativamente de algún modo, dionisíaco. Pero en realidad no era poesía dionisíaca. Tampoco demoníaca. Era rabiosa. ¿Qué me habían hecho esas pobres mujeres que aparecían en mis versos? ¿Acaso alguna me había engañado? ¿Qué me habían hecho esos pobres invertidos? Nada. Nada. Ni las mujeres ni los maricas. Y mucho menos, por Dios, los niños. ¿Por qué, entonces, aparecían esos desventurados niños enmarcados en esos paisajes corruptos? ¿Acaso alguno de esos niños era yo mismo?"

AULAS DE MARXISMO A PINOCHET

Através dos senhores Odeim e Oido, Urrutia/Ibacache é contratado para dar aulas de marxismo à junta militar que tomou o poder no Chile. Essa parte das memórias é impressionante. O programa das dez aulas sobre marxismo poderia ser seguido à risca por qualquer um de nós para se conhecer um panorama geral sobre Marx e seus ensinamentos.

Ao final do curso, o senhor Urrutia volta a seus aposentos e não consegue dormir. Seus pensamentos são intensos. Chora.

"Me puse a dar vueltas por el cuarto mientras una marea creciente de imágenes y de voces se agolpaban en mi cerebro. Diez clases, me decía a mí mismo. En realidad, sólo nueve. Nueve clases. Nueve lecciones. Poca bibliografía. ¿Lo he hecho bien? ¿Aprendieron algo? ¿Enseñé algo? ¿Hice lo que tenía que hacer? ¿Hice lo que debía hacer? ¿Es el marxismo un humanismo? ¿Es una teoría demoníaca? ¿Si les contara a mis amigos escritores lo que había hecho obtendría su aprobación? ¿Algunos manifestarían un rechazo absoluto por lo que había hecho? ¿Algunos comprenderían y perdonarían? ¿Sabe un hombre, siempre, lo que está bien y lo que está mal? En un momento de mis cavilaciones me eché a llorar desconsoladamente, estirado en la cama, echándoles la culpa de mis desgracias (intelectuales) a los señores Odeim y Oido, que fueron los que me introdujeron en esta empresa. Después, sin darme cuenta, me quedé dormido."

Temos aqui uma reflexão possível por parte do narrador: O medo e o ódio foram responsáveis por suas desgraças intelectuais... talvez por sua pusilanimidade.

Vieram tempos tristes, sem graça, chatos. Por causa do toque de recolher, não podia haver saraus, encontros dos intelectuais e artistas. Essas são as lembranças que Urrutia narra nesse momento de sua história.

LITERATURA E BARBÁRIE

E então, aparece María Canales e, com ela, a oportunidade dos encontros e saraus em sua mansão: artistas e intelectuais voltam a se reunir de duas a três vezes por semana para beber, cantar, declamar poesias e passar as noites reproduzindo a cultura do país.

Falando a si mesmo e ao jovem envelhecido, sua voz da consciência, o narrador nos confessa: "Pero la historia, la verdadera historia, sólo yo la conozco. Y es simple y cruel y verdadera y nos debería hacer reír, nos debería matar de la risa. Pero nosotros sólo sabemos llorar, lo único que hacemos con convicción es llorar."

O final da história é um final duro, a descoberta do porão de tortura, da relação do casal com a CIA e com a ditadura, a convivência da cultura com a barbárie naquele espaço, tudo isso nos coloca a pensar sobre muitas questões, sobre o papel dos artistas, dos intelectuais, da produção artística e cultural em um país, sobre literatura e sociedade.

A personagem María Canales, a quem o padre Urrutia visitou muito tempo depois dos fatos e após o fim da ditadura, faz uma provocação a ele, dizendo que a literatura se faz assim, como se dava naqueles tempos. A questão fica martelando em sua consciência.

"y dijo que así se hacía la literatura en Chile. Yo incliné la cabeza y me marché. Mientras conducía, de vuelta a Santiago, pensé en sus palabras. Así se hace la literatura en Chile, pero no sólo en Chile, también en Argentina y en México, en Guatemala y en Uruguay, y en España y en Francia y en Alemania, y en la verde Inglaterra y en la alegre Italia. Así se hace la literatura. O lo que nosotros, para no caer en el vertedero, llamamos literatura."

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CONVITE A LEITURA DE NOCTURNO DE CHILE EM TEMPOS DE AUTORITARISMO NAS AMÉRICAS DO SÉCULO XXI

Uma obra de ficção literária é boa quando ela é completa em si, como neste caso do romance de Bolaño, a economia da obra dá conta da história, o leitor não precisa saber de nenhum contexto externo a ela para compreendê-la. O professor Antonio Candido nos ensina essa lição no texto “Os elementos de compreensão”. Vejamos o que diz sobre isso:

“Uma obra é uma realidade autônoma, cujo valor está na fórmula que obteve para plasmar elementos não-literários: impressões, paixões, ideias, fatos, acontecimentos, que são a matéria-prima do ato criador (...) o elemento decisivo é o que permite compreendê-la e apreciá-la, mesmo que não soubéssemos onde, quando, por quem foi escrita.”

A emoção estética se dá e se realiza quando lemos este romance de Bolaño. Os elementos internos nos permitem perfeitamente a compreensão do enredo, mesmo para um leitor não-chileno ou sul-americano conhecedor da história das ditaduras dos anos sessenta a oitenta.

Uma obra de ficção é melhor ainda quando ela permite ampliar a interpretação no plano dos sentidos. Neste caso, além do sentido material, presente no texto, podemos ampliar o sentido ao associarmos o texto com fatos e eventos no plano externo da obra.

O texto crítico de Grínor Rojo “2000 El ridículo espantoso (además de chileno) em Nocturno de Chile” nos abre um leque de interpretações incrível. As críticas contidas no romance em relação à política e à literatura, incluindo a relação dos escritores e demais produtores de cultura, amplia bastante os aspectos a serem considerados no plano dos sentidos.

Alguns dos aspectos elencados por Rojo citamos na leitura que fizemos como, por exemplo, a questão do jovem envelhecido como a consciência mais profunda de Urrutia ou o sonho simbólico dos falcões atravessando o Atlântico e as ditaduras que ocorreriam nas Américas naquele período.

Uma questão que fica latente nesse momento, nesse exato momento em que lemos o romance de Bolaño, seria a oportunidade que nos dá a leitura da frase final do livro, o 2º e último parágrafo, que talvez seja a própria voz do escritor e não do personagem, como diz Rojo e Moreno: “Y después se desata la tormenta de mierda.”.

Que expressão mais premonitória seria essa tormenta de merda, se pensarmos o cenário colocado em 2019 na região, Chile, Brasil, Bolívia, Uruguai, Argentina, Equador e demais países em face dos últimos acontecimentos políticos. Poderíamos tranquilamente reler esse clássico de Bolaño com a seguinte sugestão na denominação: Noturno do Chile – ainda a tormenta.

Enfim, a obra literária é muito sugestiva, tanto no plano interno do romance, quanto na ampliação da leitura no plano dos sentidos, a considerarmos neste início de século XXI a ascensão da direita nos países da América do Sul e a volta de pensamentos fascistas e antidemocráticos.

William Mendes


BIBLIOGRAFIA:

BOLAÑO, Roberto. Nocturno de Chile. Espanha: Debolsillo, 1ª edición; 2017.

BOLAÑO, Roberto. Noturno do Chile. São Paulo: Companhia da Letras; 2004. 

CANDIDO, Antonio. “Os elementos de compreensão”. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 5ª ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, 1º vol., p. 34-36. 

ROJO, Grínor. “2000 El ridículo espantoso (además de chileno) en Nocturno de Chile”. Las novelas de la dictadura y la postdictadura chilena – Quince ensayos críticos. Volumen II. 1ª ed. – Santiago: LOM ediciones, 2016.

sábado, 23 de novembro de 2019

(((((((((((((((( Pátria amada, Brasil ))))))))))))))))


O ódio.
A violência.
A mentira.

O banqueiro é bolsonarista.
O ruralista é bolsonarista.
O rentista é bolsonarista.

Alguns parlamentares são bolsonaristas.
Alguns magistrados e juízes são bolsonaristas.
Algumas autoridades são bolsonaristas.

Marceneiro bolsonarista...
Porteiro bolsonarista...
Síndico bolsonarista...
- Sem noção!

O padrinho é bolsonarista.
O primo é bolsonarista.
O tio é bolsonarista.
- Sem noção!

O gay é bolsonarista.
A idosa negra é bolsonarista.
A sra. evangélica é bolsonarista.
- Sem noção!

A destruição da saúde é bolsonarista.
A destruição da educação é bolsonarista.
A destruição da previdência é bolsonarista.
A destruição do meio ambiente é bolsonarista.
A destruição do patrimônio nacional é bolsonarista.

Aff! A destruição dos direitos do trabalho,
que dão dignidade e cidadania,
é bolsonarista.

O amor ainda pode vencer
A solidariedade pode vencer
A unidade de classe pode vencer
A soberania nacional pode vencer
Vamos vencer?
Brasil.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Risco totalitário avança mais rápido que nazismo



Opinião


(Atualizado às 9h50 de 22/11/19)

Não sou historiador. Poderia ter sido. Ainda decidia o que fazer quando me inscrevi para o vestibular da Fuvest 2001: Letras ou História? Optei por Letras porque achei na época que teria mais oportunidades de trabalhar na área e sair do assédio moral que sofríamos no Banco do Brasil sob o massacre das gestões dos tucanos.

Como diz um verso da música "Amazing" da banda de rock Aerosmith, música que gosto bastante, "Life's a journey not a destination" (A vida é uma jornada, não um destino), acabei não sendo nada que havia planejado: nem historiador, nem professor de Letras. Virei dirigente dos bancários e passei o restante de minha vida de bancário representando e lutando pela classe trabalhadora.

Mesmo assim, o meu desejo de conhecer a História nunca arrefeceu e sempre que posso estou lendo e estudando o tema, assim como é grande o desejo de ler as grandes obras literárias da humanidade. Minha curiosidade não para por aí, gostaria muito de conhecer os grandes filósofos e pensadores de todos os tempos.

ENFIM, POR QUE FALAR DE HISTÓRIA?

Pelo pouco que li e que sei, penso que não vai acabar bem o que tem acontecido no Brasil, na América Latina e no mundo, considerando os acontecimentos e tendências que têm marcado os últimos anos deste início de século 21, principalmente após a nova onda de desestabilização e derrubada de governos populares e progressistas nas Américas e também de governos tradicionais do Oriente Médio como temos visto ocorrer após o novo crash do capitalismo, o dos papéis subprime em 2007/08.

Acredito que caminhamos para o fim das liberdades, para o fim das democracias representativas, o fim dos estados democráticos de direito e o fim da legitimidade das eleições como as conhecemos. As novas formas de manipulação de massas por influência no comportamento e no voto via redes sociais e fake news alteram completamente o resultado das eleições. Caminhamos para um aumento desesperador da miséria das maiorias e da concentração de tudo para poucos mortais.

Basta analisarmos o Brasil, que viveu um ciclo recente de avanços consideráveis durante os governos democráticos e populares do Partido dos Trabalhadores, partido que ascendeu ao poder pelo voto popular após as experiências neoliberais fracassadas dos anos noventa, ocorridas após a ditadura civil-militar, que durou duas décadas, entre os anos sessenta e oitenta.

Os governos de Fernando Collor, seguido de Itamar Franco após seu impeachment, e Fernando Henrique Cardoso foram governos eleitos após a promulgação da Constituição Federal de 1988 (a constituição cidadã), e tiveram seus papéis em relação à transição do regime autoritário dos militares e seus patrocinadores, a elite do país, mas fracassaram no quesito de melhorar a vida do povo e do cidadão comum. Governaram para a mesma elite secular que estava com os militares golpistas.

Os governos do PT, os dois mandatos de Lula e o primeiro mandato de Dilma Rousseff, mudaram a cara do país, incluíram o pobre no orçamento do Estado, criaram com políticas reais oportunidades nunca antes oferecidas aos povos humildes, que tanto necessitam do apoio do Estado para alcançarem a cidadania prevista na Carta Magna. Basearam sua política econômica no aquecimento do mercado interno, na diversificação das relações comerciais com o exterior, na ampliação do crédito e no aumento do salário mínimo e na expansão dos direitos da classe trabalhadora. Incluíram milhões de pessoas nos direitos da cidadania através das políticas afirmativas. Mudaram a cara do Brasil, que passou a ser de gente feliz.

A elite econômica e os golpistas seculares não permitiram que o país seguisse melhorando a vida do povo. Faltavam muitos avanços ainda, no meu ponto de vista, e o povo seguia sem formação política (apesar da expansão do acesso a todos os níveis de educação); os meios de comunicação seguiam nas mãos de poucos barões e empresários; os banqueiros e rentistas seguiam sugando a renda do país. Apesar do povo trabalhador ter conquistado mais poder de compra com distribuição de renda, sonho do presidente Lula, o povo seguia sem formação política alguma. Isso foi um erro fatal.

As conquistas do povo, mais feliz e com direitos e sem nenhuma formação política, caíram como um castelo de cartas. Os avanços do povo via governos do PT viraram nos discursos ideológicos da direita "meritocracia". As dezenas de milhões de pessoas que ascenderam de classe teriam ascendido por mérito delas, nada a ver com o Estado... A descoberta do pré-sal pela Petrobras em 2011 incluiu o Brasil na lista de países que deveriam sofrer ataques e golpe por parte das potências hegemônicas do capitalismo. O Brasil se tornaria um player grande demais no mundo. Já havia dado um salto que incomodava muito! Deu no que deu...

Impeachment sem crime algum da presidenta recém-reeleita. Um sujeito bárbaro, parlamentar há quase 30 anos, não foi preso em flagrante ao votar em plenário em nome do torturador da cidadã Dilma Rousseff. Se não se combate a barbárie quando ela ocorre... Inventaram uma força tarefa para destruir a economia do país, prender o maior líder popular sem crime algum e estabeleceram um estado policial no Brasil.

Não houve resistência com mobilização de massas contra o golpe, novo modelo de golpe, desenvolvido em solo imperialista como sempre, com novo formato: lawfare - técnicas de burocracia judiciária para derrubar, prender e impedir que qualquer liderança popular chegue e se mantenha no poder de representação. 


Acabaram com a democracia no Brasil sem um tiro, sem reação alguma que expressasse correlação de forças no enfrentamento. As forças populares não estavam alertas e organizadas. Manipularam o povo e em menos de dois anos destruíram todas as conquistas políticas e sociais da classe trabalhadora, as conquistas do período lulo-petista e as do período varguista.

MOVIMENTOS FASCISTAS AVANÇAM, CRIAM PARTIDOS, SE ARMAM

O novo regime avança sem oposição alguma. As leis não são aplicadas contra os crimes diários e de hora em hora cometidos pelos grupos bárbaros e fascistas que tomaram as instituições do Estado brasileiro. O presidente já cometeu centenas de quebras de decoro parlamentar. Nada é feito. O sujeito interfere em todos os poderes do Estado. Nada é feito.

Um bando de selvagens chegou ao poder pela inoculação de ódio e desinformação no povo, com máquinas ilegais de reprodução de fake news, pelo poder de parte das igrejas pentecostais com gente de caráter duvidoso e que manipula milhões de pessoas; leis são mudadas ao desejo de algum brucutu no poder; as instituições do Estado viraram coisa pessoal, de compadrio, dos chegados. Vivemos num país destruído como se bombas tivessem arrasado tudo.

O que é pior é que não vemos reação do povo e de suas lideranças e entidades de classe. Pelo contrário, vemos adesão de parte do povo ao novo regime que caminha mais rápido rumo ao totalitarismo do que os partidos nazifascistas na Europa do período entre as duas grandes guerras. O que Hitler gastou quase uma década para conseguir, o clã de milicianos no poder está conseguindo em semanas, meses. Ninguém e nada param essa loucura.

O cenário demonstra que ou todas as forças democráticas, progressistas e humanistas se unem, e deixam suas diferenças para outro momento da história, ou teremos um regime totalitário pior que o de Hitler em muito menos tempo. E talvez com duração muito maior que os doze anos do nazismo. Regimes como o franquista e o salazarista duraram décadas por causa do domínio total da máquina do Estado e por ter adesão de parte da sociedade, a parte que tem poder econômico e/ou político. E enquanto Hitler queria conquistar toda a Europa por causa do "espaço vital" e exterminar o povo judeu, os regimes de Franco e Salazar se limitaram à dominação total em seus países.

UNIDADE DE CLASSE OU DIVISÃO ATÉ A UNIDADE (CADA UM POR SI)?

Eu fico impressionado com o quanto o movimento "organizado" segue desorganizado, dividido, se odiando e se combatendo uns aos outros, com disputas com traços evidentes de personalismo, baseados em questões menores e pessoais, às vezes até por querelas ou vaidades, disputas de pequenos espaços de poder (que estão sendo dizimados pelo novo regime). Disputas que começaram por diferenças de concepção e prática também existem, mas que chegaram a um nível intolerável.

Ou os partidos que se afirmam de esquerda e progressistas se entendem, juntamente com as centrais sindicais, as correntes políticas, os movimentos populares e suas lideranças, enfim, ou nós classe trabalhadora criamos uma resistência unitária e de classe ou não vai sobrar nada para a manutenção de uma vida digna do povo trabalhador brasileiro.

Eu fico estupefato cada vez que pergunto para alguma liderança com algum mandato de representação, às vezes até para poder falar a respeito, pergunto se há alguma estratégia em andamento e um desejo em unir as forças e as lideranças do campo democrático e progressista, mais à esquerda e ao centro do espectro político, mais classista e humanista, e a resposta é sempre aquela cara de não sei. 


Será que o movimento organizado desaprendeu o que é planejamento estratégico, pontos fortes, pontos fracos, objetivos a alcançar, estratégias e táticas, revisita à estratégia e readequação dos objetivos, verificação do que já foi alcançado dos objetivos? E a organização de base? Como pode após mais de 3 anos de golpe de Estado não haver células organizativas de resistência em todos os estados, em milhares de cidades, nos principais ramos profissionais? Nos bairros, com jovens, grupos de igreja etc?

Ou se unifica os democratas ou teremos um regime que pode se estabelecer, com violência formal do Estado contra o povo e sem direito a qualquer questionamento ou oposição por muito tempo.

E olha que se as lideranças políticas quiserem, de coração aberto, com inteligência e priorizando o que nos unifica (sem priorizar o que nos divide), seria possível começarmos uma resistência organizada no instante seguinte à decisão racional de lutar contra o mal maior.

Enquanto eu escrevo essas reflexões, os grupos de direita que tomaram o país, que têm as ferramentas mais potentes de manipulação da população (e dinheiro, muito dinheiro), estão criando logotipos de partidos com cartuchos de balas, milicianos estão criando um partido para um sujeito que defende guerra civil, eliminação dos adversários políticos, tortura etc. Como disse acima, as leis não são mais aplicadas contra os crimes do novo fascismo.

Enquanto eu escrevo essas reflexões, os grupos de esquerda e progressistas estão pensando nas eleições municipais de 2020, nas eleições corporativas de suas categorias profissionais, nas eleições sindicais. Tem sentido pensar em eleições, pois são democratas. Mas parece que não se percebeu ainda que ao serem eleitos os representantes de esquerda serão processados, cassados, presos, tornados inelegíveis; parece que a vida segue "normal" como nos anos anteriores. Isso se vencerem as máquinas de fake news, que são montadas às custas de muito dinheiro, que normalmente é o adversário que tem, o capital, não os trabalhadores.

É minha leitura política do cenário em que estamos. Francamente, não é assim sem um planejamento estratégico e unidade na luta que nos salvaremos. 


Foi um desabafo! Não consigo fazer meus trabalhos de faculdade, de literatura, porque essa situação toda nos aprisiona, nos machuca, nos oprime. Ter consciência política é algo sem volta. E mais desesperador é ver as pessoas ao nosso redor, no condomínio, na academia, na escola, na igreja, na família, achando que tá tudo normal.

William