Confissões
de uma viúva moça – Machado de Assis
CONTOS DE MACHADO DE ASSIS, 1865 (9)
Publicado originalmente em Jornal das
Famílias 1865
I
Há dois anos tomei
uma resolução singular: fui residir em Petrópolis em pleno mês de junho. Esta
resolução abriu largo campo às conjecturas. Tu mesma nas cartas que me
escreveste para aqui, deitaste o espírito a adivinhar e figuraste mil razões,
cada qual mais absurda.
A estas cartas, em
que a tua solicitude traía a um tempo dois sentimentos, a afeição da amiga e a
curiosidade de mulher, a essas cartas não respondi e nem podia responder. Não
era oportuno abrir-te o meu coração nem desfiar-te a série de motivos que me
arredou da corte, onde as óperas do Teatro Lírico, as tuas partidas e os serões
familiares do primo Barros deviam distrair-me da recente viuvez.
Esta circunstância
de viuvez recente acreditavam muitos que fosse o único motivo da minha fuga.
Era a versão menos equívoca. Deixei-a passar como todas as outras e
conservei-me em Petrópolis.
Logo no verão
seguinte vieste com teu marido para cá, disposta a não voltar para a corte sem
levar o segredo que eu teimava em não revelar. A palavra não fez mais do que a
carta. Fui discreta como um túmulo, indecifrável como a Esfinge. Depuseste
as armas e partiste.
Desde então não me
trataste senão por tua Esfinge.
Era Esfinge, era. E
se, como Édipo, tivesses respondido ao meu enigma a palavra “homem”,
descobririas o meu segredo, e desfarias o meu encanto.
Mas não antecipemos
os acontecimentos, como se diz nos romances.
É tempo de
contar-te este episódio da minha vida.
Quero fazê-lo por cartas e não por boca. Talvez
corasse de ti. Deste modo o coração abre-se melhor e a vergonha não vem tolher
a palavra nos lábios. Repara que eu não falo em lágrimas, o que é um sintoma de que a paz
voltou ao meu espírito.
As minhas cartas irão de oito em oito dias, de
maneira que a narrativa pode fazer-te o efeito de um folhetim de periódico
semanal.
Dou-te a minha
palavra de que hás de gostar e aprender.
E oito dias depois
da minha última carta irei abraçar-te, beijar-te, agradecer-te. Tenho
necessidade de viver. Estes dois anos são nulos na conta de minha vida: foram
dois anos de tédio, de desespero íntimo, de orgulho abatido, de amor abafado.
Lia, é verdade. Mas só o tempo, a ausência, a ideia
do meu coração enganado, da minha dignidade ofendida, puderam trazer-me a calma
necessária, a calma de hoje.
E sabe que não
ganhei só isto. Ganhei conhecer um homem cujo retrato trago no espírito e que
me parece singularmente parecido com outros muitos. Já não é pouco; e a lição há de servir-me, como a ti, como
às nossas amigas inexperientes. Mostra-lhes estas cartas; são folhas de um
roteiro que se eu tivera antes, talvez não houvesse perdido uma ilusão e dois
anos de vida.
Devo terminar esta.
É o prefácio do meu romance, estudo,
conto, o que quiseres. Não questiono sobre a designação, nem consulto para
isso os mestres d’arte.
Estudo ou romance, isto é simplesmente um livro de
verdades, um episódio singelamente contado, na confabulação íntima dos
espíritos, na plena confiança de dois corações que se estimam e se merecem.
Adeus.
II
Era no tempo de meu
marido.
A corte estava
então animada e não tinha esta cruel monotonia que eu sinto aqui através das
tuas cartas e dos jornais de que sou
assinante.
Minha casa era um
ponto de reunião de alguns rapazes conversados e algumas moças elegantes. Eu,
rainha eleita pelo voto universal... de minha casa, presidia aos serões
familiares. Fora de casa, tínhamos os teatros animados, as partidas das amigas,
mil outras distrações que davam à minha vida certas alegrias exteriores em
falta das íntimas, que são as únicas verdadeiras e fecundas.
Se eu não era
feliz, vivia alegre.
E aqui vai o começo
do meu romance.
Um dia meu marido pediu-me como obséquio
especial que eu não fosse à noite ao Teatro Lírico. Dizia ele que não podia
acompanhar-me por ser véspera de saída de paquete.
Era razoável o
pedido.
Não sei, porém, que
espírito mau sussurrou-me ao ouvido e eu respondi peremptoriamente que havia de
ir ao teatro, e com ele. Insistiu no pedido, insisti na recusa. Pouco bastou
para que eu julgasse a minha honra empenhada naquilo. Hoje vejo que era a minha
vaidade ou o meu destino.
Eu tinha certa
superioridade sobre o espírito de meu marido. O meu tom imperioso não admitia
recusa; meu marido cedeu a despeito de tudo, e à noite fomos ao Teatro Lírico.
Havia pouca gente e
os cantores estavam endefluxados. No fim do primeiro ato meu marido, com
um sorriso vingativo, disse-me estas palavras rindo-se:
— Estimei
isto.
— Isto?
perguntei eu franzindo a testa.
— Este
espetáculo deplorável. Fizeste da vinda hoje ao teatro um capítulo de honra;
estimo ver que o espetáculo não correspondeu à tua expectativa.
— Pelo
contrário, acho magnífico.
— Está bom.
Deves compreender
que eu tinha interesse em me não dar por vencida; mas acreditas facilmente que
no fundo eu estava perfeitamente aborrecida do espetáculo e da noite.
Meu marido, que não
ousava retorquir, calou-se com ar de vencido, e adiantando-se um pouco à frente
do camarote percorreu com o binóculo as linhas dos poucos camarotes fronteiros
em que havia gente.
Eu recuei a minha
cadeira, e, encostada à divisão do camarote, olhava para o corredor vendo a
gente que passava.
No corredor, exatamente em frente à porta do nosso
camarote, estava um sujeito encostado, fumando e com os olhos fitos em mim. Não reparei ao
princípio, mas a insistência obrigou-me a isso. Olhei para ele a ver se era
algum conhecido nosso que esperava ser descoberto a fim de vir então
cumprimentar-nos. A intimidade podia explicar este brinco. Mas não conheci.
Depois de alguns
segundos, vendo que ele não tirava os olhos de mim, desviei os meus e cravei-os
no pano da boca e na plateia.
Meu marido, tendo
acabado o exame dos camarotes, deu-me o binóculo e sentou-se ao fundo diante de
mim.
Trocamos algumas
palavras.
No fim de um quarto
de hora a orquestra começou os prelúdios para o segundo ato. Levantei-me, meu
marido aproximou a cadeira para a frente, e nesse ínterim lancei um olhar
furtivo para o corredor.
O homem estava lá.
Disse a meu marido
que fechasse a porta.
Começou o segundo
ato.
Então, por um
espírito de curiosidade, procurei ver se o meu observador entrava para as
cadeiras. Queria conhecê-lo melhor no meio da multidão.
Mas, ou porque não
entrasse, ou porque eu não tivesse reparado bem, o que é certo é que o não vi.
Correu o segundo
ato mais aborrecido do que o primeiro.
No intervalo recuei
de novo a cadeira, e meu marido, a pretexto de que fazia calor, abriu a porta
do camarote.
Lancei um olhar
para o corredor.
Não vi ninguém; mas
daí a poucos minutos chegou o mesmo indivíduo, colocando-se no mesmo lugar, e fitou em mim os mesmos olhos
impertinentes.
Somos todas
vaidosas da nossa beleza e desejamos que o mundo inteiro nos admire. É por isso
que muitas vezes temos a indiscrição de admirar a corte mais ou menos arriscada
de um homem. Há, porém, uma maneira de
fazê-la que nos irrita e nos assusta; irrita-nos por impertinente, assusta-nos
por perigosa. É o que se dava naquele caso.
O meu admirador
insistia de modo tal que me levava a um dilema: ou ele era vítima de uma paixão
louca, ou possuía a audácia mais desfaçada. Em qualquer dos casos não era
conveniente que eu animasse as suas adorações.
Fiz estas reflexões
enquanto decorria o tempo do intervalo. Ia começar o terceiro ato. Esperei que
o mudo perseguidor se retirasse e disse a meu marido:
— Vamos?
— Ah!
— Tenho sono
simplesmente; mas o espetáculo está magnífico.
Meu marido ousou
exprimir um sofisma.
— Se está
magnífico como te faz sono?
Não lhe dei
resposta.
Saímos.
No corredor encontramos
a família do Azevedo que voltava de uma visita a um camarote conhecido.
Demorei-me um pouco para abraçar as senhoras. Disse-lhes que tinha uma dor de
cabeça e que me retirava por isso.
Chegamos à porta da
Rua dos Ciganos.
Aí esperei o carro
por alguns minutos.
Quem me havia de
aparecer ali, encostado ao portal fronteiro?
O misterioso.
Enraiveci.
Cobri o rosto o
mais que pude com o meu capuz e esperei o carro, que chegou logo.
O misterioso lá
ficou tão insensível e tão mudo como o portal a que estava encostado.
Durante a viagem a
ideia daquele incidente não me saiu da cabeça. Fui despertada na minha
distração quando o carro parou à porta da casa, em Mata-cavalos.
Fiquei envergonhada
de mim mesma e decidi não pensar mais no que se havia passado.
Mas acreditarás, tu, Carlota? Dormi meia hora mais
tarde do que supunha, tanto a minha imaginação teimava em reproduzir o
corredor, o portal, e o meu admirador platônico.
No dia seguinte
pensei menos. No fim de oito dias tinha-me varrido do espírito aquela
cena, e eu dava graças a Deus por haver-me salvo de uma preocupação que podia
ser-me fatal.
Quis acompanhar o
auxílio divino, resolvendo não ir ao teatro durante algum tempo.
Sujeitei-me à vida
íntima e limitei-me à distração das reuniões à noite.
Entretanto estava
próximo o dia dos anos da tua filhinha. Lembrei-me
que para tomar parte na tua festa de família, tinha começado um mês antes um
trabalhozinho. Cumpria rematá-lo.
Uma quinta-feira de
manhã mandei vir os preparos da obra e ia continuá-la, quando descobri
dentre uma meada de lã um invólucro azul fechando uma carta.
Estranhei aquilo. A
carta não tinha indicação. Estava colada e parecia esperar que a abrisse a
pessoa a quem era endereçada. Quem seria? Seria meu marido? Acostumada a abrir
todas as cartas que lhe eram dirigidas, não hesitei. Rompi o invólucro e
descobri o papel cor-de-rosa que vinha dentro.
Dizia a carta:
Não se surpreenda, Eugênia; este meio
é o do desespero, este desespero é o do amor. Amo-a e muito. Até certo tempo
procurei fugir-lhe e abafar este sentimento; não posso mais. Não me viu no
Teatro Lírico? Era uma força oculta e interior que me levava ali. Desde então
não a vi mais. Quando a verei? Não a veja embora, paciência; mas que o seu
coração palpite por mim um minuto em cada dia, é quanto basta a um amor que não
busca nem as venturas do gozo, nem as galas da publicidade. Se a ofendo, perdoe
um pecador; se pode amar-me, faça-me um deus.
Li esta carta com a
mão trêmula e os olhos anuviados; e ainda durante alguns minutos depois não
sabia o que era de mim.
Cruzavam-se e
confundiam-se mil ideias na minha cabeça, como estes pássaros negros que
perpassam em bandos no céu nas horas próximas da tempestade.
Seria o amor que
movera a mão daquele incógnito? Seria simplesmente aquilo um meio do sedutor
calculado? Eu lançava um olhar vago em derredor e temia ver entrar meu marido.
Tinha o papel
diante de mim e aquelas letras misteriosas pareciam-me outros tantos olhos de
uma serpente infernal. Com um movimento
nervoso e involuntário amarrotei a carta nas mãos.
Se Eva tivesse
feito outro tanto à cabeça da serpente que a tentava não houvera pecado. Eu não podia estar
certa do mesmo resultado, porque esta que me aparecia ali e cuja cabeça eu
esmagava, podia, como a hidra de Lerna, brotar muitas outras cabeças.
Não cuides que eu
fazia então esta dupla evocação bíblica e pagã. Naquele momento, não refletia,
desvairava; só muito depois pude ligar duas ideias.
Dois sentimentos
atuavam em mim: primeiramente, uma espécie de terror que infundia o abismo,
abismo profundo que eu pressentia atrás daquela carta; depois uma vergonha
amarga de ver que eu não estava tão alta na consideração daquele desconhecido,
que pudesse demovê-lo do meio que empregou.
Quando o meu
espírito se acalmou é que eu pude fazer a reflexão que devia acudir-me desde o
princípio. Quem poria ali aquela carta? Meu primeiro movimento foi para chamar
todos os meus fâmulos.
Mas deteve-me logo
a ideia de que por uma simples interrogação nada poderia colher e ficava
divulgado o achado da carta. De que valia isto?
Não chamei ninguém.
Entretanto, dizia
eu comigo, a empresa foi audaz; podia falhar a cada trâmite; que móvel impeliu
aquele homem a dar este passo?
Seria amor ou sedução?
Voltando a este dilema, meu espírito, apesar dos
perigos, comprazia-se em aceitar a primeira hipótese: era a que respeitava a
minha consideração de mulher casada e a minha vaidade de mulher formosa.
Quis adivinhar
lendo a carta de novo: li-a, não uma, mas duas, três, cinco vezes.
Uma curiosidade
indiscreta prendia-me àquele papel. Fiz um esforço e resolvi aniquilá-lo,
protestando que ao segundo caso nenhum escravo ou criado me ficaria em casa.
Atravessei a sala
com o papel na mão, dirigi-me para o meu gabinete, onde acendi uma vela e queimei aquela carta que me queimava as mãos e a
cabeça.
Quando a última
faísca do papel enegreceu e voou, senti passos atrás de mim. Era meu marido.
Tive um movimento
espontâneo: atirei-me em seus braços.
Ele abraçou-me com
certo espanto.
E quando o meu
abraço se prolongava senti que ele me repelia com brandura dizendo-me:
— Está bom,
olha que me afogas!
Recuei.
Entristeceu-me ver aquele homem, que podia e devia
salvar-me, não compreender, por instinto ao menos, que se eu o abraçava tão
estreitamente era como se me agarrasse à ideia do dever.
Mas este sentimento
que me apertava o coração passou um momento para dar lugar a um sentimento de
medo. As cinzas da carta ainda estavam no chão, a vela conservava-se acesa em
pleno dia; era bastante para que ele me interrogasse.
Nem por curiosidade
o fez!
Deu dois passos no
gabinete e saiu.
Senti uma lágrima
rolar-me pela face. Não era a primeira lágrima de amargura. Seria a primeira
advertência do pecado?
III
Decorreu um mês.
Não houve durante
esse tempo mudança alguma em casa. Nenhuma carta apareceu mais, e a minha
vigilância, que era extrema, tornou-se de todo inútil.
Não me podia
esquecer o incidente da carta. Se fosse só isto! As primeiras palavras
voltavam-me incessantemente à memória; depois, as outras, as outras, todas. Eu
tinha a carta de cor!
Lembras-te? Uma das minhas vaidades era ter a
memória feliz. Até neste dote era castigada. Aquelas palavras atordoavam-me, faziam-me
arder a cabeça. Por quê? Ah! Carlota! é que eu achava nelas um encanto
indefinível, encanto doloroso, porque era acompanhado de um remorso, mas
encanto de que eu me não podia libertar.
Não era o coração que se empenhava, era a
imaginação. A imaginação perdia-me; a luta do dever e da imaginação é cruel e
perigosa para os espíritos fracos. Eu era fraca. O mistério fascinava a minha
fantasia.
Enfim os dias e as
diversões puderam desviar o meu espírito daquele pensamento único. No fim de um
mês, se eu não tinha esquecido inteiramente o misterioso e a carta dele,
estava, todavia, bastante calma para rir de mim e dos meus temores.
Na noite de uma
quinta-feira, achavam-se algumas pessoas em minha casa, e muitas das minhas
amigas, menos tu. Meu marido não tinha
voltado, e a ausência dele não era notada nem sentida, visto que, apesar de franco cavalheiro como era,
não tinha o dom particular de um conviva para tais reuniões.
Tinha-se cantado,
tocado, conversado; reinava em todos a mais franca e expansiva alegria; o tio
da Amélia Azevedo fazia rir a todos com as suas excentricidades; a Amélia
arrebatava bravos a todos com as notas da sua garganta celeste; estávamos em um
intervalo, esperando a hora do chá.
Anunciou-se meu marido.
Não vinha só. Vinha ao lado dele um homem alto,
magro, elegante. Não pude conhecê-lo. Meu marido adiantou-se, e no meio do
silêncio geral veio apresentar-mo.
Ouvi de meu marido que o nosso conviva chamava-se
Emílio ***. Fixei nele um olhar e retive um grito.
Era ele!
O meu grito foi
substituído por um gesto de surpresa. Ninguém percebeu. Ele pareceu perceber
menos que ninguém. Tinha os olhos fixos em mim, e com um gesto gracioso
dirigiu-me algumas palavras de lisonjeira cortesia.
Respondi como pude.
Seguiram-se as
apresentações, e durante dez minutos houve um silêncio de acanhamento em todos.
Os olhos voltavam-se todos para o recém-chegado. Eu também voltei
os meus e pude reparar naquela figura em que tudo estava disposto para atrair
as atenções: cabeça formosa e altiva,
olhar profundo e magnético, maneiras elegantes e delicadas, certo ar distinto e
próprio que fazia contraste com o ar afetado e prosaicamente medido dos outros rapazes.
Este exame de minha
parte foi rápido. Eu não podia, nem me convinha encontrar o olhar de Emílio.
Tornei a abaixar os olhos e esperei ansiosa que a conversação voltasse de novo
ao seu curso.
Meu marido
encarregou-se de dar o tom. Infelizmente era ainda o novo conviva o motivo da
conversa geral.
Soubemos então que
Emílio era um provinciano filho de pais opulentos, que recebera uma esmerada
educação na Europa, onde não houve um só recanto que não visitasse.
Voltara há pouco ao
Brasil, e antes de ir para a província tinha determinado passar algum tempo no
Rio de Janeiro.
Foi tudo quanto
soubemos. Vieram as mil perguntas sobre as viagens de Emílio, e este com a mais
amável solicitude, satisfazia a curiosidade geral.
Só eu não era curiosa. É que não podia articular
palavra. Pedia interiormente a explicação deste romance misterioso, começado em
um corredor do teatro, continuado em uma carta anônima e na apresentação em
minha casa por intermédio de meu próprio marido.
De quando em quando
levantava os olhos para Emílio e achava-o calmo e frio, respondendo polidamente
às interrogações dos outros e narrando ele próprio, com uma
graça modesta e natural, alguma das suas aventuras de viagem.
Ocorreu-me uma ideia.
Seria realmente ele o misterioso do teatro e da carta? Pareceu-me ao princípio
que sim, mas eu podia ter-me enganado; eu não tinha as feições do outro bem
presentes à memória; parecia-me que as duas criaturas eram uma e a mesma; mas
não podia explicar-se o engano por uma semelhança miraculosa?
De reflexão em
reflexão, foi-me correndo o tempo, e eu assistia à conversa de todos como se
não estivesse presente. Veio a hora do chá. Depois cantou-se e tocou-se ainda.
Emílio ouvia tudo com atenção religiosa e mostrava-se tão apreciador do gosto
como era conversador discreto e pertinente.
No fim da noite tinha cativado a todos. Meu marido,
sobretudo, estava radiante. Via-se que ele se considerava feliz por ter feito
a descoberta de mais um amigo para si e um companheiro para as nossas reuniões
de família.
Emílio saiu
prometendo voltar algumas vezes.
Quando eu me achei
a sós com meu marido, perguntei-lhe:
— De onde
conheces este homem?
— É uma
pérola, não é? Foi-me apresentado no escritório há dias; simpatizei logo;
parece ser dotado de boa alma, é vivo de espírito e discreto como o bom senso. Não há ninguém que não goste dele...
E como eu o ouvisse
séria e calada, meu marido interrompeu-se e perguntou-me:
— Fiz mal em
trazê-lo aqui?
— Mal, por
quê? perguntei eu.
— Por coisa
nenhuma. Que mal havia de ser? É um homem distinto...
Pus termo ao novo
louvor do rapaz, chamando um escravo
para dar algumas ordens.
E retirei-me ao meu
quarto.
O sono dessa noite
não foi o sono dos justos, podes crer. O que me irritava era a preocupação
constante em que eu andava depois destes acontecimentos. Já eu não podia fugir
inteiramente a essa preocupação: era involuntária, subjugava-me, arrastava-me.
Era a curiosidade do coração, esse primeiro sinal das tempestades em que
sucumbe a nossa vida e o nosso futuro.
Parece que aquele
homem lia na minha alma e sabia apresentar-se no momento mais próprio a
ocupar-me a imaginação como uma figura poética e imponente. Tu, que o conheceste depois, dize-me se,
dadas as circunstâncias anteriores, não era para produzir esta impressão no
espírito de uma mulher como eu!
Como eu, repito. Minhas circunstâncias eram
especiais; se não o soubeste nunca, suspeitaste-o ao menos.
Se meu marido
tivesse em mim uma mulher, e se eu tivesse nele um marido, minha salvação era
certa. Mas não era assim. Entramos em nosso lar nupcial como dois viajantes
estranhos em uma hospedaria, e aos quais a calamidade do tempo e a hora
avançada da noite obrigam a aceitar pousada sob o teto do mesmo aposento.
Meu casamento foi resultado de um cálculo e de uma
conveniência. Não inculpo meus pais. Eles cuidavam fazer-me feliz e morreram na
convicção de que o era.
Eu podia, apesar de
tudo, encontrar no marido que me davam um objeto de felicidade para todos os
meus dias. Bastava para isso que meu
marido visse em mim uma alma companheira da sua alma, um coração sócio do seu
coração. Não se dava isto; meu marido entendia o casamento ao modo da
maior parte da gente; via nele a obediência às palavras do Senhor no Gênesis.
Fora disso,
fazia-me cercar de certa consideração e dormia tranquilo na convicção de que
havia cumprido o dever.
O dever! esta era a minha tábua de salvação. Eu
sabia que as paixões não eram soberanas e que a nossa vontade pode triunfar
delas. A este respeito eu tinha em mim forças bastantes para repelir ideias
más. Mas não era o presente que me abafava e atemorizava; era o futuro. Até
então aquele romance influía no meu espírito pela circunstância do mistério em
que vinha envolto; a realidade havia de abrir-me os olhos; consolava-me a
esperança de que eu triunfaria de um amor culpado. Mas, poderia nesse futuro, cuja proximidade eu não calculava, resistir
convenientemente à paixão e salvar intactas a minha consideração e a minha
consciência? Esta era a questão.
Ora, no meio destas
oscilações, eu não via a mão de meu marido estender-se para salvar-me. Pelo
contrário, quando na ocasião de queimar a carta, atirava-me a ele, lembras-te
que ele me repeliu com uma palavra de enfado.
Isto pensei, isto
senti, na longa noite que se seguiu à apresentação de Emílio.
No dia seguinte
estava fatigada de espírito; mas, ou fosse calma ou fosse prostração, senti que
os pensamentos dolorosos que me haviam torturado durante a noite esvaeceram-se
à luz da manhã, como verdadeiras aves da noite e da solidão.
Então abriu-se ao meu espírito um raio de luz. Era a repetição do
mesmo pensamento que me voltava no meio das preocupações daqueles últimos dias.
Por que temer?
dizia eu comigo. Sou uma triste medrosa; e fatigo-me em criar montanhas para
cair extenuada no meio da planície. Eia!
nenhum obstáculo se opõe ao meu caminho de mulher virtuosa e considerada. Este homem, se é o
mesmo, não passa de um mau leitor de romances realistas. O mistério é que
lhe dá algum valor; visto de mais perto há de ser vulgar ou hediondo.
IV
Não te quero
fatigar com a narração minuciosa e diária de todos os acontecimentos.
Emílio continuou a
frequentar a nossa casa, mostrando sempre a mesma delicadeza e gravidade, e
encantando a todos por suas maneiras distintas sem afetação, amáveis sem
fingimento.
Não sei por que meu
marido revelava-se cada vez mais amigo de Emílio. Este conseguira despertar
nele um entusiasmo novo para mim e para todos. Que capricho era esse da
natureza?
Muitas vezes
interroguei meu marido acerca desta amizade tão súbita e tão estrepitosa; quis
até inventar suspeitas no espírito dele; meu marido era inabalável.
— Que queres?
respondia-me ele. Não sei por que simpatizo extraordinariamente com este rapaz.
Sinto que é uma bela pessoa, e eu não posso dissimular o entusiasmo de que me
possuo quando estou perto dele.
— Mas sem
conhecê-lo... objetava eu.
— Ora essa!
Tenho as melhores informações; e demais, vê-se logo que é uma pessoa
distinta...
— As maneiras
enganam muitas vezes.
— Conhece-se...
Confesso, minha
amiga, que eu podia impor a meu marido o afastamento de Emílio; mas quando esta
ideia me vinha à cabeça, não sei por que ria-me dos meus temores e declarava-me
com forças de resistir a tudo o que pudesse sobrevir.
Demais, o procedimento de Emílio autorizava-me a
desarmar. Ele era para mim de um respeito inalterável, tratava-me como a
todas as outras, sem deixar entrever a menor intenção oculta, o menor
pensamento reservado.
Sucedeu o que era natural. Diante de tal
procedimento não me ficava bem proceder com rigor e responder com a indiferença
à amabilidade.
As coisas marchavam
de tal modo que eu cheguei a persuadir-me de que tudo o que sucedera antes não
tinha relação alguma com aquele rapaz, e que não havia entre ambos mais do que
um fenômeno da semelhança, o que aliás eu não podia afirmar, porque, como te
disse já, não pudera reparar bem no homem do teatro.
Aconteceu que dentro de pouco tempo estávamos na
maior intimidade, e eu era para ele o mesmo que todas as outras: admiradora e
admirada.
Das reuniões passou
Emílio às simples visitas de dia, nas horas em que meu marido estava presente,
e mais tarde, mesmo quando ele se achava ausente.
Meu marido de
ordinário era quem o trazia. Emílio vinha então no seu carrinho que ele próprio
dirigia, com a maior graça e elegância. Demorava-se horas e horas em nossa
casa, tocando piano ou conversando.
A primeira vez que o recebi só, confesso que
estremeci; mas foi um susto pueril; Emílio procedeu sempre do modo mais
indiferente em relação às minhas suspeitas. Nesse dia, se algumas me ficaram,
desvaneceram-se todas.
Nisto passaram-se dois
meses.
Um dia, era de
tarde, eu estava só; esperava-te para irmos visitar teu pai enfermo. Parou um
carro à porta. Mandei ver. Era Emílio.
Recebi-o como de
costume.
Disse-lhe que íamos
visitar um doente, e ele quis logo sair. Disse-lhe que ficasse até à tua
chegada. Ficou como se outro motivo o detivesse além de um dever de cortesia.
Passou-se meia
hora.
Nossa conversa foi
sobre assuntos indiferentes.
Em um dos
intervalos da conversa Emílio levantou-se e foi à janela. Eu levantei-me
igualmente para ir ao piano buscar um leque. Voltando para o sofá reparei pelo espelho que Emílio me olhava com um
olhar estranho. Era uma transfiguração. Parecia que naquele olhar estava
concentrada toda a alma dele.
Estremeci.
Todavia fiz um
esforço sobre mim e fui sentar-me, então mais séria que nunca.
Emílio
encaminhou-se para mim.
Olhei para ele.
Era o mesmo olhar.
Baixei os meus
olhos.
— Assustou-se?
perguntou-me ele.
Não respondi nada.
Mas comecei a tremer de novo e parecia-me que o coração me queria pular fora do
peito.
É que naquelas
palavras havia a mesma expressão do olhar; as palavras faziam-me o efeito das
palavras da carta.
— Assustou-se?
repetiu ele.
— De quê?
perguntei eu procurando rir para não dar maior gravidade à situação.
— Pareceu-me.
Houve um silêncio.
— D. Eugênia,
disse ele sentando-se; não quero por mais tempo ocultar o segredo que faz o
tormento da minha vida. Fora um
sacrifício inútil. Feliz ou infeliz, prefiro a certeza da minha situação. D.
Eugênia, eu amo-a.
Não te posso
descrever como fiquei, ouvindo estas palavras. Senti que empalidecia; minhas
mãos estavam geladas. Quis falar: não pude.
Emílio continuou:
— Oh! eu bem
sei a que me exponho. Vejo como este amor é culpado. Mas que quer? É
fatalidade. Andei tantas léguas, passei à ilharga de tantas belezas, sem que o
meu coração pulsasse. Estava-me reservada a ventura rara ou o tremendo
infortúnio de ser amado ou desprezado pela senhora. Curvo-me ao destino.
Qualquer que seja a resposta que eu possa obter, não recuso, aceito. Que me
responde?
Enquanto ele
falava, eu podia, ouvindo-lhe as palavras, reunir algumas ideias. Quando ele
acabou levantei os olhos e disse:
— Que resposta
espera de mim?
— Qualquer.
— Só pode
esperar uma...
— Não me ama?
— Não! Nem
posso e nem amo, nem amaria se pudesse ou quisesse... Peço que se retire.
E levantei-me.
Emílio levantou-se.
— Retiro-me,
disse ele; e parto com o inferno no coração.
Levantei os ombros
em sinal de indiferença.
— Oh! eu bem
sei que isso lhe é indiferente. É isso o que eu mais sinto. Eu preferia o ódio;
o ódio, sim; mas a indiferença, acredite, é o pior castigo. Mas eu o recebo
resignado. Tamanho crime deve ter tamanha pena.
E tomando o chapéu
chegou-se a mim de novo.
Eu recuei dois
passos.
— Oh! não
tenha medo. Causo-lhe medo?
— Medo?
retorqui eu com altivez.
— Asco?
perguntou ele.
— Talvez...
murmurei.
— Uma única
resposta, tornou Emílio; conserva aquela carta?
— Ah! disse
eu. Era o autor da carta?
— Era. E
aquele misterioso do corredor do Teatro Lírico. Era eu. A carta?
— Queimei-a.
— Preveniu o
meu pensamento.
E cumprimentando-me
friamente dirigiu-se para a porta. Quase a chegar à porta senti que ele
vacilava e levava a mão ao peito.
Tive um momento de
piedade. Mas era necessário que ele se fosse, quer sofresse quer não. Todavia,
dei um passo para ele e perguntei-lhe de longe:
— Quer dar-me
uma resposta?
Ele parou e
voltou-se.
— Pois não!
— Como é que
para praticar o que praticou fingiu-se amigo de meu marido?
— Foi um ato
indigno, eu sei; mas o meu amor é daqueles que não recuam ante a indignidade. É
o único que eu compreendo. Mas, perdão; não quero enfadá-la mais. Adeus! Para
sempre!
E saiu.
Pareceu-me ouvir um
soluço.
Fui sentar-me ao
sofá. Daí a pouco ouvi o rodar do carro.
O tempo que mediou
entre a partida dele e a tua chegada não sei como se passou. No lugar em que
fiquei aí me achaste.
Até então eu não tinha visto amor
senão nos livros. Aquele homem parecia-me realizar o amor que eu sonhara e vira descrito.
A ideia de que o coração de Emílio
sangrava naquele momento, despertou em mim um sentimento vivo de piedade. A
piedade foi um primeiro passo.
“Quem sabe, dizia
eu comigo mesma, o que ele está agora sofrendo? E que culpa é a dele, afinal de
contas? Ama-me, disse-mo; o amor foi mais forte do que a razão; não viu que eu
era sagrada para ele; revelou-se. Ama, é a sua desculpa.”
Depois repassava na
memória todas as palavras dele e procurava recordar-me do tom em que ele as
proferira. Lembrava-me também do que eu dissera e o tom com que respondera às
suas confissões.
Fui talvez severa
demais. Podia manter a minha dignidade sem abrir-lhe uma chaga no coração. Se
eu falasse com mais brandura podia adquirir dele o respeito e a veneração.
Agora há de amar-me ainda, mas não se recordará do que se passou sem um
sentimento de amargura.
Estava nestas
reflexões quando entraste.
Lembras-te que me
achaste triste e perguntaste a causa disso. Nada te respondi. Fomos à casa da
tua tia, sem que eu nada mudasse do ar que tinha antes.
À noite quando meu
marido me perguntou por Emílio, respondi sem saber o que respondia:
— Não veio cá
hoje.
— Deveras?
disse ele. Então está doente.
— Não sei.
— Lá vou
amanhã.
— Lá onde?
— À casa dele.
— Para quê?
— Talvez
esteja doente.
— Não creio;
esperemos até ver...
Passei uma noite
angustiosa. A ideia de Emílio perturbava-me o sono. Afigurava-se-me que ele
estaria àquela hora chorando lágrimas de sangue no desespero do amor não
aceito.
Era piedade? Era
amor?
Carlota, era uma e
outra coisa. Que podia ser mais? Eu tinha posto o pé em uma senda fatal; uma
força me atraía. Eu fraca, podendo ser forte. Não me inculpo senão a mim.
Até domingo.
V
Na tarde seguinte,
quando meu marido voltou perguntei por Emílio.
— Não o
procurei, respondeu-me ele; tomei o conselho; se não vier hoje, sim.
Passou-se, pois, um
dia sem ter notícias dele.
No dia seguinte,
não tendo aparecido, meu marido foi lá.
Serei franca
contigo, eu mesma lembrei isso a meu marido.
Esperei ansiosa a
resposta.
Meu marido voltou
pela tarde. Tinha um certo ar triste. Perguntei o que havia.
— Não sei. Fui encontrar o rapaz de cama. Disse-me
que era uma ligeira constipação; mas eu creio que não é isso só...
— Que será
então? perguntei eu, fitando um olhar em meu marido.
— Alguma coisa
mais. O rapaz falou-me em embarcar para o Norte. Está triste, distraído,
preocupado. Ao mesmo tempo que manifesta a esperança de ver os pais, revela
receios de não tornar a vê-los. Tem ideias de morrer na viagem. Não sei que lhe
aconteceu, mas foi alguma coisa. Talvez...
— Talvez?
— Talvez
alguma perda de dinheiro.
Esta resposta
transtornou o meu espírito. Posso afirmar-te que esta resposta entrou por muito
nos acontecimentos posteriores.
Depois de algum
silêncio perguntei:
— Mas que
pretendes fazer?
— Abrir-me com
ele. Perguntar o que é, e acudir-lhe se for possível. Em qualquer caso não o
deixarei partir. Que achas?
— Acho que
sim.
Tudo o que ia
acontecendo contribuía poderosamente para tornar a ideia de Emílio cada vez
mais presente à minha memória, e, é com
dor que o confesso, não pensava já nele sem pulsações do coração.
Na noite do dia
seguinte estávamos reunidas algumas pessoas. Eu não dava grande vida à reunião.
Estava triste e desconsolada. Estava com raiva de mim própria. Fazia-me algoz
de Emílio e doía-me a ideia de que ele padecesse ainda mais por mim.
Mas, seriam nove
horas, quando meu marido apareceu trazendo Emílio pelo braço.
Houve um movimento
geral de surpresa.
Realmente porque
Emílio não aparecia alguns dias já todos começavam a perguntar por ele; depois,
porque o pobre moço vinha pálido de cera.
Não te direi o que
se passou nessa noite. Emílio parecia sofrer, não estava alegre como dantes; ao
contrário, era naquela noite de uma taciturnidade, de uma tristeza que
incomodava a todos, mas que me mortificava atrozmente, a mim que me fazia causa
das suas dores.
Pude falar-lhe em
uma ocasião, a alguma distância das outras pessoas.
— Desculpe-me,
disse-lhe eu, se alguma palavra dura lhe disse. Compreende a minha posição.
Ouvindo bruscamente o que me disse não pude pensar no que dizia. Sei que
sofreu; peço-lhe que não sofra mais, que esqueça...
— Obrigado,
murmurou ele.
— Meu marido
falou-me de projetos seus...
— De voltar à
minha província, é verdade.
— Mas
doente...
— Esta doença
há de passar.
E dizendo isto
lançou-me um olhar tão sinistro que eu tive medo.
— Passar?
passar como?
— De algum
modo.
— Não diga
isso...
— Que me resta
mais na terra?
E voltou os olhos
para enxugar uma lágrima.
— Que é isso?
disse eu. Está chorando?
— As últimas
lágrimas.
— Oh! se
soubesse como me faz sofrer! Não chore; eu lho peço. Peço-lhe mais. Peço-lhe
que viva.
— Oh!
— Ordeno-lhe.
— Ordena-me? E se eu não obedecer? Se eu não
puder?... Acredita que se possa viver com um espinho no coração?
Isto que te escrevo
é feio. A maneira por que ele falava é que era apaixonada, dolorosa, comovente.
Eu ouvia sem saber de mim. Aproximavam-se algumas pessoas. Quis pôr termo à
conversa e disse-lhe:
— Ama-me? disse eu. Só o amor pode ordenar?
Pois é o amor que lhe ordena que viva!
Emílio fez um gesto
de alegria. Levantei-me para ir falar às pessoas que se aproximavam.
— Obrigado,
murmurou-me ele aos ouvidos.
Quando, no fim do
serão, Emílio se despediu de mim, dizendo-me, com um olhar em que a gratidão e
o amor irradiavam juntos: — Até amanhã! — não sei que sentimento de
confusão e de amor, de remorso e de ternura se apoderou de mim.
— Bem; Emílio
está mais alegre, dizia-me meu marido.
Eu olhei para ele
sem saber o que responder.
Depois retirei-me
precipitadamente. Parecia-me que via nele a imagem da minha consciência.
No dia seguinte
recebi de Emílio esta carta:
Eugênia. Obrigado. Torno-me à vida, e
à senhora o devo. Obrigado! fez de um cadáver um homem, faça agora de um homem
um deus. Ânimo! ânimo!
Li esta carta, reli, e... dir-to-ei, Carlota?
beijei-a. Beijei-a repetidas vezes com alma, com paixão, com delírio. Eu amava!
eu amava!
Então houve em mim
a mesma luta, mas estava mudada a situação dos meus sentimentos. Antes era o
coração que fugia à razão, agora a razão fugia ao coração.
Era um crime, eu
bem o via, bem o sentia; mas não sei qual era a minha fatalidade, qual era a
minha natureza; eu achava nas delícias do crime desculpa ao meu erro, e
procurava com isso legitimar a minha paixão.
Quando o meu marido
se achava perto de mim eu me sentia melhor e mais corajosa...
Paro aqui desta
vez. Sinto uma opressão no peito. É a recordação de todos estes acontecimentos.
Até domingo.
VI
Seguiram-se alguns
dias às cenas que eu te contei na minha carta passada.
Ativou-se entre mim
e Emílio uma correspondência. No fim de quinze dias eu só vivia do pensamento
dele.
Ninguém dos que
frequentavam a nossa casa, nem mesmo tu, pôde descobrir este amor. Éramos dois
namorados discretos ao último ponto.
É certo que muitas
vezes me perguntavam por que é que eu me distraía tanto e andava tão
melancólica; isto chamava-me à vida real e eu mudava logo de parecer.
Meu marido
sobretudo parecia sofrer com as minhas tristezas.
A sua solicitude,
confesso, incomodava-me. Muitas vezes lhe respondia mal, não já porque eu o
odiasse, mas porque de todos era ele o único a quem eu não quisera ouvir destas
interrogações.
Um dia voltando
para casa à tarde chegou-se ele a mim e disse:
— Eugênia,
tenho uma notícia a dar-te.
— Qual?
— E que te há
de agradar muito.
— Vejamos qual
é.
— É um
passeio.
— Aonde?
— A ideia foi
minha. Já fui ao Emílio e ele aplaudiu muito. O passeio deve ser domingo à
Gávea; iremos daqui muito cedinho. Tudo isto, é preciso notar, não está
decidido. Depende de ti. O que dizes?
— Aprovo a ideia.
— Muito bem. A
Carlota pode ir.
— E deve ir,
acrescentei eu; e algumas outras amigas.
Pouco depois
recebias tu e outras um bilhete de convite para o passeio.
Lembras-te que lá
fomos. O que não sabes é que nesse passeio, a favor da confusão e a distração
geral, houve entre mim e Emílio um diálogo que foi para mim a primeira amargura
de amor.
— Eugênia,
dizia ele dando-me o braço, estás certa de que me amas?
— Estou.
— Pois bem. O
que te peço, nem sou eu que te peço, é o meu coração, o teu coração que te
pedem, um movimento nobre capaz de nos engrandecer aos nossos próprios olhos.
Não haverá um recanto no mundo em que possamos viver, longe de todos e perto do
céu?
— Fugir?
— Sim!
— Oh! isso
nunca!
— Não me amas.
— Amo, sim; é
já um crime, não quero ir além.
— Recusas a
felicidade?
— Recuso a
desonra.
— Não me amas.
— Oh! meu Deus, como respondê-lo? Amo, sim;
mas desejo ficar a seus olhos a mesma mulher, amorosa é verdade, mas até certo
ponto... pura.
— O amor que
calcula, não é amor.
Não respondi.
Emílio disse estas palavras com uma expressão tal de desdém e com uma intenção
de ferir-me que eu senti o coração bater-me apressado, e subir-me o sangue ao
rosto.
O passeio acabou
mal.
Esta cena tornou
Emílio frio para mim; eu sofria com isso; procurei torná-lo ao estado anterior;
mas não consegui.
Um dia em que nos
achávamos a sós, disse-lhe:
— Emílio, se
eu amanhã te acompanhasse, o que farias?
— Cumpria essa
ordem divina.
— Mas depois?
— Depois?
perguntou Emílio com ar de quem estranhava a pergunta.
— Sim, depois?
continuei eu. Depois quando o tempo volvesse não me havias de olhar com
desprezo?
— Desprezo?
Não vejo...
— Como não?
Que te mereceria eu depois?
— Oh! esse
sacrifício seria feito por minha causa, eu fora covarde se te lançasse isso em
rosto.
— Di-lo-ias no
teu íntimo.
— Juro que
não.
— Pois a meus
olhos é assim; eu nunca me perdoaria esse erro.
Emílio pôs o rosto
nas mãos e pareceu chorar. Eu que até ali falava com esforço, fui a ele e
tirei-lhe o rosto das mãos.
— Que é isto?
disse eu. Não vês que me fazes chorar também?
Ele olhou para mim
com os olhos rasos de lágrimas. Eu tinha os meus úmidos.
— Adeus, disse ele repentinamente. Vou partir.
E deu um passo para a porta.
— Se me prometes viver, disse-lhe, parte; se
tens alguma ideia sinistra, fica.
Não sei o que viu ele no meu olhar, mas tomando a
mão que eu lhe estendia beijou-a repetidas vezes (eram os primeiros beijos) e
disse-me com fogo:
— Fico, Eugênia!
Ouvimos um ruído
fora. Mandei ver. Era meu marido que chegava enfermo. Tinha tido um ataque no
escritório. Tornara a si, mas achava-se mal. Alguns amigos o trouxeram dentro
de um carro.
Corri para a porta.
Meu marido vinha pálido e desfeito. Mal podia andar ajudado pelos amigos.
Fiquei desesperada,
não cuidei de mais coisa alguma. O médico que acompanhara meu marido mandou
logo fazer algumas aplicações de remédios. Eu estava impaciente; perguntava a
todos se meu marido estava salvo.
Todos me tranquilizavam.
Emílio mostrou-se
pesaroso com o acontecimento. Foi a meu marido e apertou-lhe a mão.
Quando Emílio quis
sair, meu marido disse-lhe:
— Olhe, sei
que não pode estar aqui sempre; peço-lhe, porém, que venha, se puder, todos os
dias.
— Pois não,
disse Emílio.
E saiu.
Meu marido passou
mal o resto daquele dia e a noite. Eu não dormi. Passei a noite no quarto.
No dia seguinte
estava exausta. Tantas comoções diversas e uma vigília tão longa deixaram-me
prostrada: cedia à força maior. Mandei chamar a prima Elvira e fui deitar-me.
Fecho esta carta
neste ponto. Pouco falta para chegar ao termo da minha triste narração.
Até domingo.
VII
A moléstia de meu
marido durou poucos dias. De dia para dia agravava-se. No fim de oito dias
os médicos desenganaram o doente.
Quando eu recebi
esta fatal nova fiquei como louca. Era meu marido, Carlota, e apesar de tudo eu
não podia esquecer que ele tinha sido o companheiro da minha vida e a ideia
salvadora nos desvios do meu espírito.
Emílio achou-me num
estado de desespero. Procurou consolar-me. Eu não lhe ocultei que esta morte
era um golpe profundo para mim.
Uma noite estávamos
juntos todos, eu, a prima Elvira, uma parenta de meu marido e Emílio. Fazíamos
companhia ao doente. Este, depois de um longo silêncio, voltou-se para mim e
disse-me:
— A tua mão.
E apertando-me a mão com uma energia suprema
voltou-se para a parede.
Expirou.
...........................................................
Passaram-se quatro
meses depois dos fatos que te contei. Emílio acompanhou-me na dor e foi dos
mais assíduos em todas as cerimônias fúnebres que se fizeram ao meu finado
marido.
Todavia, as visitas
começaram a escassear. Era, parecia-me, por motivo de uma delicadeza natural.
No fim do prazo de
que te falei, soube, por boca de um dos amigos de meu marido, que Emílio ia
partir. Não pude crer. Escrevi-lhe uma carta.
Eu amava-o então,
como dantes, mais ainda, agora que estava livre.
Dizia a carta:
Emílio,
Constou-me que ias partir. Será possível? Eu mesma não posso acreditar nos meus
ouvidos! Bem sabes se eu te amo. Não é tempo de coroar os nossos votos; mas não
faltará muito para que o mundo nos revele uma união que o amor nos impõe. Vem
tu mesmo responder-me por boca.
Tua Eugênia.
Emílio veio em
pessoa. Asseverou-me que, se ia partir, era por negócio de pouco tempo, mas que
voltaria logo. A viagem devia ter lugar daí a oito dias.
Pedi-lhe que
jurasse o que dizia, e ele jurou.
Deixei-o partir.
Daí a quatro dias
recebia eu a seguinte carta dele:
Menti, Eugênia; vou partir já. Menti
ainda, eu não volto. Não volto porque não posso. Uma união contigo seria para
mim o ideal da felicidade se eu não fosse homem de hábitos opostos ao
casamento. Adeus. Desculpa-me, e reza para que eu faça uma boa viagem. Adeus.
Emílio.
Avalias facilmente
como fiquei depois de ler esta carta. Era um castelo que se desmoronava. Em
troca do meu amor, do meu primeiro amor, recebia deste modo a ingratidão e o
desprezo. Era justo: aquele amor culpado não podia ter bom fim; eu fui
castigada pelas consequências mesmo do meu crime.
Mas, perguntava eu,
como é que este homem, que parecia amar-me tanto, recusou aquela de cuja
honestidade podia estar certo, visto que pôde opor uma resistência aos desejos
de seu coração? Isto me pareceu um mistério. Hoje vejo que não era; Emílio era um sedutor vulgar e só se
diferençava dos outros em ter um pouco mais de habilidade que eles.
Tal é a minha
história. Imagina o que sofri nestes dois anos. Mas o tempo é um grande médico:
estou curada.
O amor ofendido e o
remorso de haver de algum modo traído a confiança de meu esposo fizeram-me doer
muito. Mas eu creio que caro paguei o meu crime e acho-me reabilitada perante a
minha consciência.
Achar-me-ei perante
Deus?
E tu? É o que me
hás de explicar amanhã; vinte e quatro horas depois de partir esta carta eu
serei contigo.
Adeus!
FIM
COMENTÁRIOS
O PRIMEIRO CAPÍTULO É FANTÁSTICO! É um tratado e um
contrato com o leitor (seja ele empírico ou ficcional).
A narradora personagem, em primeira pessoa, apresenta o
seu romance que terá periodicidade de folhetim (a cada 8 dias) e terá caráter
formativo porque caso ela mesma tivesse lido algo do gênero não teria perdido
dois anos de sua vida.
“e a lição há de servir-me, como a ti, como às nossas amigas
inexperientes”
Talvez ali já esteja sinalizado que ler, mas ler os
romances romanescos tradicionais da época, não lhe resolveram nada, não resolviam nada da vida real para as leitoras.
“Lia, é verdade”
NO SEGUNDO CAPÍTULO, Eugênia, a autora do folhetim,
tece a trama e anuncia o culpado por qualquer coisa que vá acontecer: o marido
desatencioso. Ele não agiu de modo a evitar qualquer desvio possível por parte
de sua mulher, ele não sabe, mas a culpa é dele.
NO TERCEIRO CAPÍTULO, o marido culpado ratifica a
leitura feita pela consciência da esposa, pois ele mesmo põe o vampiro em casa.
O fim deste capítulo é muito interessante. A narradora
fala sobre os romances realistas:
“Este homem, se é o mesmo, não passa de um mau leitor de romances
realistas.”
Seria ele um mau leitor do realismo por ser um perfeito
leitor do romantismo? Seria ela uma perfeita leitora dos romances românticos a confundir a vida real com os ideais de amor romanescos? A saber...
(acelerando a leitura e os comentários...)
NOS CAPÍTULOS SEGUINTES E FINAIS a narradora personagem
termina de contar a Carlota sua experiência amorosa frustrada e o motivo de seu
retiro de dois anos...
COMENTÁRIO FINAL
Que coisa, heim? Se o objetivo de Machado foi mostrar o
que dá ficar confundindo a vida real com os romances românticos, ponto pra ele.
Eu acho que foi isso mesmo
Além disso, ele sabia que precisava ganhar seu sustento. Sem publicações assim, ele não teria aquela pequena parcela de leitores e leitoras na corte fluminense.