Veredas verdejantes... e o jacarandá. |
Refeição Cultural
Ainda bem que não vou registrar tudo o que pensei por quase uma hora de caminhada pela manhã, após a aula de Teoria Literária sobre análise de poemas. Eu ia muito mal pelas ruas e calçadas e paisagem verdejante da Universidade de São Paulo. Ia mals.
Terminada a aula, eu estava juntando as coisas para ir embora. Uma aluna tirava dúvidas com o professor e os alunos se retiravam. Cheguei até a porta e já ia saindo. Voltei um pouco e fiquei como que esperando terminar a consulta da aluna com o professor para falar com ele em seguida. Como demorou mais um pouco, virei e saí. A aluna e o professor disseram que esperasse pois estavam terminando. Só agradeci e fui embora. Sei lá se eu iria tirar uma das dúvidas que tinha ou se iria dizer ao professor que na verdade estava muito grato pelo quanto de informação nova havia recebido em suas aulas a respeito da leitura de poesias. Nós temos que tirar o chapéu para o professor porque ele é muito bom, tem didática e ao falar do universo complicado e complexo e impenetrável da linguagem poética para os simples mortais ele nos mostra o quanto há de sentidos por trás de um poema, de uma estrofe, de um verso, pasmem, de uma palavra ou nos fonemas dela. Me lembro da mesma sensação de espanto que sentia sobre o quanto há de sentidos por trás de um poema da outra vez que estive fazendo as matérias de literatura anos atrás na mesma graduação em Letras. Ao lermos um texto do Antonio Candido ou do Alfredo Bosi analisando um poema, vemos o mesmo rigor na extração de sentidos que o professor nos ensinou neste semestre. Sei lá de novo. Acho que iria dizer a ele que não estava em condições de entregar o trabalho de análise de um poema para a próxima semana - quero dizer que não me sinto capacitado para fazer um trabalho de análise decente -, mas que estava grato pela bagagem nova que ele nos deu. A leitura crítica de poesia necessita mesmo de prática de leitura, de técnica e de ouvido afinado. Enfim, eu não sei se quero fazer o trabalho, que era para estar pronto hoje, caso o professor não tivesse prorrogado o prazo para a próxima semana por querer dar mais uma aula com conteúdo. Saí do prédio da FFLCH sem rumo, a esmo... deixando os pés escolherem o caminho de volta. A cabeça pesada, pensando na minha vida toda. Buscava algum sentido para tudo na minha vida. Assim cheguei a minha casa.
De tudo que passou pela minha cabeça, a busca de um sentido para a minha existência foi uma das coisas que mais se repetiram; a volta ao passado para tentar compreender os porquês de eu não ter sido isso ou aquilo, de ter chegado até aqui da forma como cheguei. Se algo valeu a pena ou não. Na verdade, acho que busco justificativas ou desculpas para aceitar ou ao menos lidar com os fatos, com a realidade que se impõe sobre mim, sobre cada um de nós. Quando eu olhava para o passado, me via nas veredas que surgiam e que não me levaram aonde eu poderia ter ido. Em alguns momentos na vida, a gente se sente derrotado, perdido, fracassado. Isso não é motivo para querer encerrar uma caminhada, porque essas coisas acontecem. Aliás, se pensei em morrer por muitos e muitos anos na vida, por muitos e muitos anos fui turrão, birrento, não morri. Por falar em birra, estou lá no meio dos jovens da Universidade por ser inconformado ainda hoje por minha vida não ter se encaminhado como poderia cada vez que entrei por uma vereda. Que saco, isso!
Entrei na Universidade de São Paulo em 2001 como uma alternativa de realização pessoal após uma década de vida brigada de bancário do Banco do Brasil do governo FHC; poderia me tornar um professor e sair daquela desgraça de vida de assédio e sofrimento ao ver colegas bancários sendo perseguidos, transferidos, demitidos e vivermos um período de muitos suicídios em um banco público que vinha sendo preparado para a privatização por um governo neoliberal. Cara, minha vida inteira foi assim. Nem bem começo a faculdade, entro para o movimento sindical em 2002 e o curso fica em segundo plano. Os caminhos interrompidos e as oportunidades perdidas para ser alguma coisa foram acontecendo a vida toda: mas trabalhar e sobreviver é sempre a prioridade na vida do pobre. Eu já estava no segundo ano de faculdade de Educação Física em 1998 quando precisei parar por falta de condições de pagar a mensalidade como caixa executivo do Banco do Brasil. O salário mal dava para passar o mês. Eu só tirava notas altas e poderia ter sido um excelente profissional da área do esporte e saúde. Que frustração senti ao parar, que derrota! Segui olhando para trás. Quando me formei em Ciências Contábeis, em 1994, tive propostas na época para trabalhar e ser sócio em empresas dessa área de administração de negócios. Me lembro do Sr. Luís, cliente do BB, que insistiu um tempão para eu ir trabalhar com ele. Eu me lembro que dinheiro nunca foi meu objetivo, meu foco na vida. Quis ficar no banco. Eu gostava de trabalhar em empresa pública e servir bem as pessoas, ser servidor e ser útil para a sociedade. Ao olhar mais para trás, fui me vendo e buscando compreender por que a gente é como é. Eu era adolescente em Uberlândia quando fazia o ensino fundamental e médio. O povo brasileiro passava muita dificuldade nos anos oitenta. Meus pais e familiares não eram diferentes do povão que não é elite, que não era da antiga "classe média". Eu queria estudar, ler, tinha curiosidade filosófica e desejo de ser "letrado" ou algo parecido, mas o trabalho infantil, mal remunerado, sem carteira assinada e, na maioria das vezes, braçal deixava a gente esgotado para estudar de noite; me lembro que as greves dos professores, que lutavam por salários e pela educação, duravam semanas e a gente nunca ia longe nos conteúdos dos livros didáticos. Talvez venha daí minha deficiência em gramática, em poesia, e outras matérias básicas que fui estudar por conta própria quando adulto. Enfim, a classe trabalhadora e seus filhos sempre tiveram dificuldades e falta de oportunidades para estudar e mudar de vida porque a vida sempre foi só para sobrevivência e não para a completude da vida e do ser.
Eu pensei muita coisa enquanto caminhava para casa, de volta da minha aula sobre poesia. Eu pensei no movimento sindical e pensei na entidade de autogestão em saúde dos trabalhadores do Banco do Brasil. Quando tento achar algo de útil que tenha feito na vida social, para a sociedade e para as pessoas, acho que poderia dizer que o período em que servi aos meus colegas de profissão, os bancários, pode ter sido o período em que tenha feito algo de bom para a coletividade. Mesmo assim, é complicado afirmar isso, eu sei, porque não existe reconhecimento coletivo algum e nem gratidão nas lutas sindicais; era o que me diziam os mais velhos do movimento; os trabalhadores não têm memória e uma vida de dedicação não vale quase nada além do momento presente que os trabalhadores enfrentam. Pode ser isso mesmo, mas o fato é que me dediquei de corpo e alma, com ética e disciplina, por mais de uma década, às lutas dos bancários do Banco do Brasil, entre 2002 e 2014; e, para terminar uma vida de representação, fui ser dirigente eleito de uma entidade de saúde por 4 anos. Nossa, eu juro a vocês que nunca me esforcei tanto para fazer algo tão complexo e com o melhor de minha inteligência e energia quanto foi defender os direitos em saúde dos colegas do banco, além de defender uma entidade apaixonante e um modelo de saúde revolucionário. Quando saí em 2018, já previa que a vida seria completamente diferente dali adiante, por diversos motivos. E foi mesmo. Tudo mudou. Mas essa é outra história, não é para o momento.
Estou me esforçando para encontrar um sentido, senão da vida que vivi, que passei junto com uma categoria profissional ao longo de quase três décadas de bancário, em um mundo que agora desmorona com o Brasil tomado por uma demência coletiva, ao menos um sentido para estar estudando aos 50 anos de idade para completar uma grade curricular de um curso de Letras. Mas o sentido não vem fácil, não. Eu aprendi as matérias de exatas para galgar uma profissão e uma vida melhor quando fiz Contábeis. Aprendi as áreas médicas e biológicas quando fiz dois anos de Educação Física, pois queria mudar de vida, de condição de subsistência. Queria ser professor. Aprendi tudo que pude sobre o movimento sindical, sobre a organização das lutas da classe trabalhadora, sobre os direitos e as instituições dos trabalhadores. E usei o conhecimento para fazer mandatos combativos e contribuir para conquistas da classe e para resistir aos ataques do capital. Depois aprendi sobre gestão em saúde; para mim, foi o melhor trabalho de representação que fiz, pois além de político era técnico. E confesso que da forma como tudo terminou deixou-me um amargo na boca, pois sofri perseguição e assédio moral internamente, e o mandato não teve o reconhecimento dos associados e dos grupos para os quais atuamos. Sendo assim, qual o sentido da birra em concluir umas matérias na Letras? Colar grau em duas habilitações, pra quê?
Me alonguei demais nessa reflexão. Mas meu tempo agora é só para isso, não estou em nenhuma frente de batalha como estive por tanto tempo. É isso.