Refeição Cultural - #Saramago100
Mundo, 16 de novembro de 2022. Há cem anos nascia José Saramago...
Saramago vive em cada personagem que criou, vive em cada discurso ou reflexão que nos legou, vive em cada um de nós que tivemos o privilégio de ler parte de sua obra, de ouvir suas palavras e pensamentos. Viva José Saramago!
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA
A primeira obra que li de José Saramago foi Ensaio sobre a cegueira (1995). Li o romance em 2003 e depois o reli em 2008, antes de ver o filme de Fernando Meirelles baseado na obra. O Ensaio é algo único na literatura mundial. Imagino as pessoas vendo a nossa cara de leitor durante a leitura das partes mais dramáticas do Ensaio...
Eu me lembro de um dia no qual lia o Ensaio no trem de volta para casa e estava tão incomodado com a cena da violência contra uma personagem que eu ficava olhando ao redor como se todo mundo soubesse a cena absurda que estava lendo no livro.
Este romance me fez chorar, me fez sentir raiva, me fez pensar muito sobre o que somos. Para ler um comentário sobre a leitura é só clicar aqui.
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ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ
Logo após a releitura do primeiro Ensaio, ainda em 2008, mergulhei no Ensaio sobre a lucidez (2004). Agora era o "corte de energia cívica" com o voto em branco de quase todo mundo criando um cenário distópico para nos colocar a pensar sobre a nossa realidade. Que viagem!
Pouco mais de uma década depois do lançamento desse romance de Saramago, o principal país do capitalismo imperialista, considerado "civilizado" e referência como uma das maiores democracias do mundo, sofre um "corte de energia cívica" e elege Donald Trump presidente... incrível, né! E um pouquinho depois, outro país com mais de 100 milhões de eleitores elege um palhaço miliciano presidente do país... Que dizer?
Leiam o romance de Saramago e vejam se não encontramos ali provocações e reflexões que nos colocam a pensar sobre as chamadas democracias liberais e seus cidadãos...
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TODOS OS NOMES
"Aliás, se persistíssemos em afirmar que as nossas decisões somos nós que as tomamos, então teríamos de principiar por dilucidar, por discernir, por distinguir, quem é, em nós, aquele que tomou a decisão e aquele que depois a irá cumprir, operações impossíveis, onde as houver. Em rigor, não tomamos decisões, são as decisões que nos tomam a nós."
O terceiro livro de Saramago que li foi Todos os nomes, de 1997. Que livro fantástico! Olhando minha edição, toda rabiscada, relembro que foi um dos livros do escritor no qual mais destaquei conceitos e reflexões do personagem, o Sr. José, que trabalha na Conservatória Geral do Registo Civil.
Vejam essa reflexão que citei acima sobre as decisões humanas... sou eu falando. Concluí de minha vida que nunca fui o condutor de nada e sim o conduzido, pela vida, pela casualidade, pelo destino (rsrs), pelos outros, pelas circunstâncias, pelos acidentes de percurso, enfim, na minha vida "são as decisões que nos tomam a nós".
Este livro de Saramago também me fez chorar e rir diversas vezes. Era ler um pouco e sair pensando na vida. Demais! Para ler um comentário sobre a leitura é só clicar aqui.
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A JANGADA DE PEDRA
Que romance espetacular! A jangada de pedra, de 1986, é mais um livro distópico do grande escritor José Saramago. Depois de ler os dois Ensaios e Todos os nomes, me apaixonei completamente pela leitura de Saramago com este romance. Li esta obra no ano em que morreu nosso querido escritor, em 2010.
Assim como os livros anteriores, esse tem muita reflexão sobre a vida e sobre o sentido das coisas. O romance explora bastante a questão filosófica sobre haver ou não causalidade naquilo que chamamos de coincidências em fatos e eventos no dia a dia das civilizações humanas.
Na estória, após uma sucessão de eventos a partir de um risco no chão feito por Joana Carda, pouco a pouco o fenômeno vai se tornando realidade e a mãe Europa acaba por ver partir sua filha Península Ibérica rumo ao Ocidente. Que estória fantástica!
Foi meu 4º livro de Saramago, foi a 4ª leitura terminando fascinado por ele e por sua obra. Ler aqui comentário que fiz sobre esse romance.
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O CONTO DA ILHA DESCONHECIDA
"(...) Tenho, tive, terei se for preciso, mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber, quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, O filósofo do rei, quando não tinha que fazer, ia sentar-se ao pé de mim, a ver-me passajar as peúgas dos pajens, e às vezes dava-lhe para filosofar, dizia que todo o homem é uma ilha, eu, como aquilo não era comigo, que sou mulher, não lhe dava importância, tu que achas, Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós, Se não saímos de nós próprios, queres tu dizer, Não é a mesma coisa..."
Para relembrar minha experiência com a leitura desse conto maravilhoso de Saramago, O conto da Ilha desconhecida, de 1997, manuseei minha edição belíssima e reli a postagem que fiz em 2015 (ler aqui), quando li a estória pela primeira vez.
Só de reler passagens do conto e minha postagem, minha voz embargou na garganta e os olhos encheram d'água... Que conto metafórico!
Minha postagem registrou um momento importante de minha própria viagem pela vida. A forma como eu estava numa ilha, embarcado numa aventura desconhecida, e a forma como O Conto da Ilha Desconhecida de Saramago veio parar na minha mão naquele dia...
As imagens finais da estória são de arrepiar! O barco, o homem, a mulher, o barco-ilha e as ilhas que somos...
Demais! Viva Saramago!
Obrigado, Saramago!
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A VIAGEM DO ELEFANTE
"A Pilar, que não deixou que eu morresse" (José Saramago)
Li A viagem do elefante num mês de janeiro de 2016, estando de férias do trabalho. Saramago diz que só pode contar essa narrativa porque Pilar, sua companheira, não o deixou morrer ao estar muito doente. O livro foi publicado em 2008. Ler aqui um comentário que fiz sobre as leituras daquele mês.
No romance, Saramago nos conta a história do elefante Salomão e seu tratador indiano Subhro (cornaca), que atravessam metade da Europa - Portugal, Espanha e Itália - para o elefante ser dado de presente a uma realeza da Áustria. O escritor nos diz que a história é real, o que ele fez na narrativa foi preencher as lacunas da história que não se sabia.
Como os demais livros de Saramago, não teve como não me emocionar muito com a história de Salomão, completada pelo nosso escritor português. Poucos autores conseguem com tanta eficácia nos colocar a pensar durante a leitura, através dos diálogos que os narradores fazem com os leitores de seus livros.
Para vocês terem uma ideia sobre as reflexões e sabedorias do livro, vejam essa a respeito da história de uma vaca perdida por doze dias com sua cria entre lobos... (ler aqui)
Viajei muito nesta viagem que empreendi junto a Salomão.
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AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE
"No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme..."
Para começar o comentário sobre a leitura dessa obra fantástica, emocionante e diferente de tudo que se costuma ler por aí, coloquei para ouvir a opus 1012 para violoncelo de Johann Sebastian Bach, e naturalmente o arrepio toma conta de todo o meu corpo enquanto escrevo...
José Saramago escreveu As intermitências da morte (2005) explorando a mais absurda das situações possíveis, bem ao estilo do autor que construiu boa parte de seus romances mais espetaculares a partir de uma estrutura ficcional assim:
Imaginem vocês se de repente... as pessoas deixassem de ver e estivessem com uma cegueira branca... as pessoas decidissem votar todas em branco sem combinar nada... a Península Ibérica se soltasse da Europa e fosse embora... a morte fizesse uma greve e decidisse que ninguém mais morreria a partir de 1º de janeiro...
E a morte gosta de Bach... quem diria! (Eu também adoro Bach!)
Amig@s leitores, esse foi o derradeiro (até agora) romance que li de Saramago, leitura feita durante um período de muito trabalho por parte da morte, o primeiro ano da pandemia mundial de Covid-19... que barbaridade! Como trabalhou a dona morte! Eu sobrevivi por algum acaso do destino (ela não me escolheu ainda)
Não consigo falar desse livro sem chorar... Tá dito o mínimo sobre As intermitências da morte...
Caso queiram ler a postagem que fiz quando li o livro, é só clicar aqui.
Viva José Saramago!
William Mendes
Bibliografia:
As referências e citações que fiz nesta postagem foram extraídas das edições das obras de José Saramago que compõem a foto que ilustra esse texto.