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Margo Glantz. Foto Wikipedia, de Aline L. Cámara. |
Refeição Cultural
Este artigo é meu trabalho de conclusão de semestre na disciplina que fizemos com a professora Adriana Kanzepolsky. Eu gostei muito da matéria e das aulas da professora. Não consegui fazer o trabalho da forma como gostaria. Faltaram mais leituras críticas. Cheguei a pensar em não fazer o trabalho, mas o fiz de forma honesta e do jeito que foi possível. Dessa forma, sugiro a eventual leitor do texto que o leia de forma crítica, mais como curiosidade e para despertar interesse na escritora e no tema.
William
Margo Glantz - Reflexões e memórias de uma época através da ironia de um Eu ficcional
"Me
acuerdo que he escrito varios de estos recuerdos en otros libros. pero los he
formulado de manera diferente: el orden de los factores en literatura altera
definitivamente el producto." (GLANTZ, 2014, p. 91)
INTRODUÇÃO
A oportunidade de conhecer e estudar a poética da escritora e ensaísta mexicana
Margo Glantz foi bastante enriquecedora sob vários aspectos. Alguns deles me
agradaram bastante.
Sua obra é um excelente leque de opções para se compreender o conceito atual de
literaturas inespecíficas. Em muitos de seus livros e narrativas ficcionais, vemos
Eu líricos que apontam e registram com textos argumentativos e ensaios
profundos grandes dilemas da atualidade. Suas ficções e contos mesclam
autobiografia, histórias coletivas e questões de época e suas pitadas de ironia
e humor amenizam o tom narrativo, sem deixar de pontuar as graves denúncias
sociais.
A poética e a técnica narrativa de Margo Glantz fazem com que sua leitura seja
leve e prazerosa, e suas temáticas lidam muito bem com a questão do texto e do
mundo fragmentado de nossa realidade, porém seus textos alinhavam fragmentos
sobre as coisas de nosso tempo, unificam e dão sentido aos grandes problemas de
nossa época.
Dos conteúdos que vimos
durante o semestre de aulas, um dos que mais me identifiquei na temática e
poética de Glantz foi o das formas de contar a memória própria, a memória
familiar e a memória de uma época. Os livros Las genealogias (1998) e Yo
también me acuerdo (2014) me agradaram muito e me fizeram pensar bastante sobre a
vida e sobre a nossa realidade.
Vivemos numa época dura em que a velocidade dos acontecimentos, a
simultaneidade das coisas e a necessidade de estarmos sempre informados de tudo
- como se isso fosse possível - causa tensão e sofrimento aos indivíduos, e a
cada amontoado de informações e dados que nos chegam, verdadeiros ou falsos,
mais perdidos e desinformados nos sentimos.
Margo Glantz é uma escritora que vale a pena ler e acompanhá-la, pois além de
viajar o tempo todo, ela é adepta das redes sociais, não pensa duas vezes antes
de expor o que pensa, mantém perfil no Twitter e diariamente opina sobre fatos
e acontecimentos, além de compartilhar suas ideias e reflexões.
Apresento abaixo, alguns
fragmentos de obras de Margo Glantz com reflexões geradas a partir dos
registros feitos pela autora ou, como os críticos apontam após o ressurgimento
dos autores - mortos desde Barthes em 1968 (SPERANZA, 2008) -, registros feitos
através de Eu líricos que se mesclam com sua criadora.
TODOS OS GÊNEROS VALEM A PENA
Se tomarmos como referência os dois livros que disse sobre a autora, que
abordam a memória, o instante que se registra e o passado que vem à tona,
podemos citar questões apontadas pela escritora, enquanto exercício de memória,
que nos levam a refletir sobre a temática e dela gerar nova reflexão.
Vejamos
algumas citações de Yo tambiém me acuerdo:
"Me acuerdo que para Poe la novela moderna es objetable por ser demasiado
larga." (GLANTZ, 2014, p.)
"Me acuerdo de Poe e su Teoría de la composición: se inclinaba sin vacilar
por el texto breve, por el cuento en prosa, escribió que prefería la narración
breve, cuya lectura dura entre una hora y dos." (GLANTZ,
2014, p.)
Lendo as recordações de Glantz a respeito do que pensava Poe sobre a
importância da brevidade dos textos e narrativas, fico pensando até que ponto a
humanidade deveria repensar a tendência deste início de século XXI em reduzir,
reduzir e reduzir o uso da linguagem como temos visto em ferramentas de
comunicação como, por exemplo, o Twitter, ou por "memes" e emojis,
ou mesmo se comunicar só por imagens.
Em entrevista recente ao jornalista Luis Nassif, o neurocientista brasileiro
Miguel Nicolelis aponta dados alarmantes em relação à regressão naquilo que
poderíamos chamar de capacidade de comunicação e linguagem humana.
Ao falar sobre a redução da importância da imprensa escrita, Nicolelis comenta
que o ser humano está passando por um processo de mutação de sua espécie. O
coeficiente de inteligência sofreu redução de 10 pontos nos últimos 20 a 30
anos nas sociedades avançadas; a redução do uso de palavras e do vocabulário
dos jovens norte-americanos foi de 30% nos últimos 40 anos; houve redução da
compreensão de texto escrito e diminuiu-se a habilidade para escrever e
comunicar ideias nos últimos anos.
O cérebro é flexível e realoca energia de áreas que não estão sendo utilizadas
para outras áreas do corpo humano. Ou seja, ao se deixar de ler textos
complexos, usar o cérebro para criar e resolver problemas, estamos inutilizando
o cérebro. É chocante!
Segundo o neurocientista, a
longo prazo, poderia estar surgindo uma nova espécie, a homo digital,
espécie menos vocal, menos social, menos comunicativa, menos inteligente e
menos capaz de desafiar o automatismo e controle que os sistemas políticos
poderiam exercer sobre nós.
As informações de Nicolelis só confirmam o que aprendi desde que comecei a
estudar, que estudos científicos destacaram a importância da solução de
problemas complexos na evolução do cérebro humano, e o uso intensivo do cérebro
aumentou nossa inteligência e nossa capacidade de uso da linguagem, nos
destacando dos demais animais existentes. A linguagem verbal e escrita teve
papel central em nossa evolução.
"Me acuerdo que Poe pensaba que al no poder leerse
de un solo impulso la novela se ve privada de la inmensa fuerza que se deriva
de la totalidad." (GLANTZ, 2014, p.)
O escritor, contista, poeta e ensaísta norte-americano Edgar Alan Poe, por
exemplo, foi um produtor de textos literários do século XIX. Ele nos deixou um
patrimônio cultural importante. Acertou em muitas coisas; errou em outras.
Ainda bem que outros escritores, de outros gêneros literários, inclusive,
também nos deixaram patrimônios culturais com técnicas antagônicas às de Poe.
Se a contradição não fosse possível e se prevalecesse somente a simpatia pelo
texto breve por ser aquele que melhor expressaria a totalidade de uma história,
não seria no mesmo século XIX em várias partes do mundo que o romance moderno
cairia nas graças populares justamente pela técnica de se publicar em capítulos
e fragmentos os romances e novelas em jornais e revistas, em folhetins,
deixando interrompido o texto num momento importante, para se saber no texto
seguinte o que aconteceu na trama.
A estratégia de se publicar romances e novelas em folhetins, além de fixar de
vez na cultura popular a leitura de literatura, criou o que hoje conhecemos
como leitores de literatura e também fortaleceu um mercado editorial. Que o
diga um contemporâneo de Poe, Balzac na França.
Vale destacar que a literatura pode e deve ser uma fonte de prazer. Compartilho
do gosto de Margo Glantz pelos contos de Poe, que também me encantam.
"Me acuerdo que me gusta releer los cuentos de Poe,
en especial Berenice, enterrada viva y despojada brutalmente de sus dientes por
el protagonista." (GLANTZ, 2014, p.)
O REGISTRO DO INSTANTE COMO MEMÓRIA DE UMA ÉPOCA
"Al leer las noticias ¿cómo decidir qué es lo más importante?" (GLANTZ,
2018, p. 11)
Dentro do tópico de formas de contar a memória, de registrar o instante e
evocar o passado, Y por mirarlo todo, nada veia (2018) é outra obra de
Margo Glantz muito peculiar em sua estética do fragmento e que aborda a questão
da enorme dificuldade que as pessoas têm na atualidade em lidar com a
quantidade absurda de informações simultâneas e ininterruptas, gerando com isso
algum tipo de sofrimento e dilemas em se definir o que seria relevante ou não
nas notícias.
Vejamos o exemplo abaixo do livro de Glantz e o registro comparativo de uma
época, que poderíamos fazer a respeito do momento dramático por que passa o
Brasil:
"(...) ¿qué policías de Estados Unidos hayan matado a más de mil personas
indefensas durante 2015, (...)" (GLANTZ, 2018, p. 11)
Cito aqui uma notícia comparativa, um dado de nossa realidade brasileira e um
registro de época, talvez mais relevante que o exemplo norte-americano, se
compararmos o volume de vítimas assassinadas pela polícia dos Estados Unidos em
2015 com o caso da polícia fluminense; lembrando que naquele país vivem mais de
328 milhões de pessoas.
Segundo o artigo do jornalista Eric Nepumoceno, do Jornalistas pela
Democracia, a polícia do Estado do Rio de Janeiro matou nos primeiros 10 meses
do ano de 2019, o total de 1.546 pessoas. Foram em média 5 pessoas por dia, num
Estado que tem uma população de pouco mais de 17 milhões de pessoas (IBGE,
2018).
E pensar que dos milhares de dados e informações pesquisados pela escritora
Margo Glantz, chamou atenção dela e mereceu registro em seu livro o grande
volume de pessoas mortas pela polícia norte-americana.
Que fique registrado aqui o quanto as coisas no Brasil são exponenciais quando
comparamos nossas misérias com as dos países chamados avançados ou
desenvolvidos.
CRÍTICA ÁCIDA E BEM HUMORADA
Um dos traços característicos que apreendemos ao ler a poética de Glantz é a
forma de tecer crítica a grandes questões da sociedade e da humanidade.
De repente, em meio a descrições de fatos ou nas narrativas ficcionais, surgem
as críticas a temas como discriminação, violência, pobreza, crimes diversos, e
a escritora tem uma maneira bem peculiar de fazer as críticas, com uma fina
ironia ou com certa dose de humor.
Vejamos o exemplo abaixo, em Yo también me acuerdo:
"Me acuerdo de que los arquitectos famosos son buenos diseñadores, pero se
olvidan de los usuarios; en la Cineteca Nacional los baños son exiguos y las
salas de exhibición no tienen salida de emergencia." (GLANTZ, 2014, p. 87)
"Me acuerdo que cuando diseñan los baños de los edificios públicos a los
arquitectos se les olvida que las mujeres necesitamos más espacio para orinar
que los varones." (GLANTZ, 2014, p. 87)
"Me acuerdo que en los baños de mujeres siempre se hace cola y que los
baños de hombres casi siempre están vacíos." (GLANTZ, 2014, p. 87)
Seu humor e a forma irônica de fazer denúncias sociais ou críticas sobre algum
tema são muito refinados em seus textos. Percebi isso nos contos que lemos da
autora e também nas entrevistas que li e ouvi na internet ao longo do semestre
letivo.
Vejamos abaixo mais um exemplo da técnica através de uma passagem no livro Las
genealogías, em uma frase dela quando o pai conta que levou umas bofetadas
quando foi cobrar uma dívida de pães e confeites de um cliente mexicano:
"Así
cumplió mi padre con los preceptos bíblicos y gano el pan con el sudor de su
frente" (GLANTZ, 1998, p. 105)
POLÍTICA, ECONOMIA E HISTÓRIA
Margo Glantz faz registros de acontecimentos e fatos da época que estamos
vivendo. O fechamento de livrarias como consequência do capitalismo e da
tecnologia; as lutas de emancipação e igualdade de gênero, sempre aquém do
avanço necessário; grandes eventos políticos e sociais que alteram a história.
A diferença dos registros dela está na qualidade da escrita: crítica, irônica e
reflexiva.
Desaparecimento das livrarias:
"Me acuerdo que hace unos días otra librería desaparecío en París." (GLANTZ,
2014, p. 55)
"Me acuerdo que hace como cuatro años fui a buscar libros y revistas a esa
librería: había sido sustituída por una boutique Lévi-Strauss." (GLANTZ,
2014, p. 55)
Direitos das mulheres:
"Me
acuerdo de una frase que escribió Simone de Beauvoir en 1980: No olvidar jamás
que bastará una crisis política, económica o religiosa para poner en cuestión
los derechos de las mujeres." (GLANTZ, 2014, p. 56)
Fim do regime de Stálin:
"Me acuerdo de un titular periodístico mexicano, en marzo de 1953: Alzó
los tenis el padrecito Stalin." (GLANTZ, 2014, p. 19)
Questões
nacionais do México:
"Me
acuerdo que México ya tiene el primer lugar en casos de obesidad, y que,
afortunadamente, alcanzamos el tercero en casos de corrupción." (GLANTZ,
2014, p. 62)
"Me
acuerdo que las calles de la Ciudad de México se han vuelto
intransitables." (GLANTZ, 2014, p. 62)
SOBRE KARL MARX
Um dos maiores filósofos da
humanidade é também um homem, nos lembra Margo Glantz, e com isso está sujeito
a todas as questões de época, cultura e costumes. Nesta passagem, vemos a
questão do machismo e da desigualdade de gênero.
"En un libro recientemente publicado en Francia, las hijas de Karl Marx
definen en cartas sucesivas la felicidad desdichada de tener como padre el
famoso doctor. Al nacer alguna de ellas, Eleanor, Marx le anuncia a su fiel
Engels: 'Desgraciadamente es del sexo por excelencia.' Puede absolverse a Marx
quizá si se piensa que uno de sus hijos ya había muerto por entonces y el otro
estaba agonizando y que el único vástago de Marx que sobreviviera fue el que
tuvo con la sirvienta, hijo que, como amigo entrañable, por no decir otra cosa,
Engels adoptó como suyo y que las hijas de Marx ignoraron hasta la muerte del
barbudo compañero de su padre..." (GLANTZ, 1998, p. 76)
RESMUNGANDO UMA LÍNGUA QUE NÃO
É SUA
Nas obras de Margo Glantz vemos o tempo todo algumas questões relativas a
certas hierarquizações de estratos sociais - pessoas e grupos que se colocam
acima dos outros -, e isso se dá como algo cultural.
Falar uma língua que não é sua, por exemplo, pode fazer com que você se sinta
excluído, diminuído em certos ambientes que utilizam isso para classificar
pessoas e grupos. Não por parte do falante estrangeiro, mas por preconceito do
ouvinte nativo.
Ela usa o verbo "mascullar" para apresentar o contexto em que um
personagem tenta se comunicar em uma segunda língua, em um mundo que não é o
seu mundo de origem.
"El señor Filler le prestó a mi mamá 50 pesos, mismos que sirvieron para
pagar la cuenta del hospital. Mientras mi padre estaba enfermo, mi madre salía
a vender el pan con Serafín, el muchacho oaxaqueño, bajito y fornido, que se
reía todo el tiempo cuando oía a mi papá mascullar el español. Toda la gente
veía a mi mamá como si fuera marciana, vestida muy elegante, vendiendo pan de
casa en casa." (GLANTZ, 1998, p. 110)
UN RATO* CON LAS RATAS
Momento em que o pai de Margo foi preso nos anos vinte por ser de esquerda (e
ser confundido com anarquistas) e protestar contra as injustiças do governo no
México.
"Y no es juego de palabras, pero ese rato se convertía en ratas que de
tamaño descomunal se paseaban sobre la cama y sobre el preso..." (GLANTZ,
1998, p. 113)
* Em espanhol "un rato" é um instante, um tempo curto, um momento.
CRISTÓVÃO
COLOMBO OU HERNÁN CORTÉS?
"Todo emigrante que viene a América se siente Colón y si viene a México
quiere ser Cortés. Mi padre prefirió a Colón y, como Carpentier, escribió un
poema épico lírico sobre el navegante genovés..." (GLANTZ,
1998, p. 136)
O senhor Glantz extraía dentes para sobreviver. Mas não gostava nem um pouco da
atividade "sangrenta". Também não gostava de fazer obturações porque
era algo chato. Nas horas vagas escrevia poesia, era o que gostava e preferia.
"Sacar muelas era menos aburrido pero más sangriento, lo único que
importaba era leer y hacer poesía. Por eso escribió Banderas ensangrentadas, en
1936, poema político en honor de los republicanos españoles, y luego, en 1938,
su gran poema dedicado a Colón..." (GLANTZ, 1998, p. 137)
OVELHA NEGRA E FILHA PRÓDIGA
"Kzaid es el pedazo de pan que se arranca de la hogaza antes de bendecir
el sábado. Luego escribió otro gran poema, Nizaión (Prueba), dedicado a mí,
cuando traicioné al pueblo elegido. Fue traducido por los 50 como Cantares de
ausencia y de retorno. Allí, aparezco como oveja negra, y luego, quizá también,
como Hija Pródiga." (GLANTZ, 1998, p. 138)
A MEMÓRIA PODE NOS TRAIR (OU PODE SER CONVENIENTE)
"Repetir un acto mil vezes condensa el recuerdo, pero los recuerdos
traicionan aunque se recuerden mil veces en la mente. Jacobo niega ciertas
minucias que antes recordaba y los calzones con encaje se transforman
simplemente en encaje suizo, maravilloso, delicado, pero aún suelto, sin ropa
que decorar. Mi padre dice que cada vez recuerda mejor las cosas de su infancia
y que casi todo lo demás se borra: a veces resucita y yo lo aprovecho como
buitre." (GLANTZ, 1998, p. 103)
Interessante essa reflexão sobre nossas memórias e suas seletividades. O que
antes era calcinha com renda, artefato talvez inapropriado para pessoas de
certa religião ou visão conservadora de comportamento individual, se transforma
por um misterioso ato da memória em renda suíça, sem ligação com a calcinha que
adornava.
Se pensarmos bem, nossa memória faz isso o tempo todo, quando lhe é conveniente.
Fim
BIBLIOGRAFIA
GLANTZ, Margo. Las genealogías. Alfaguara, México, 1998.
GLANTZ, Margo. Y por mirarlo todo, nada veía. Editorial
Sexto Piso, Espanha, 2018.
GLANTZ, Margo. Yo también me acuerdo. Editorial Sexto Piso, Espanha, 2014.
SPERANZA, Graciela. ¿Dónde está el autor?, en Otra parte. Revista de letras y artes, nº 14, outono de 2008.