sábado, 25 de janeiro de 2020

Invisibilidade sufocante



Reflexão...

Invisibilidade sufocante (talvez estejamos no limiar da natureza social do animal humano)

Antes do domínio das empresas de tecnologia da comunicação e redes sociais (exemplos: Google, Facebook, Whatsapp), há pouco mais de 15 anos, a invisibilidade de segmentos sociais se dava pelas formas tradicionais de exclusão social de grupos marginalizados.

Hoje, as ferramentas de algoritmos conseguem invisibilizar os seres humanos de forma muito mais cruel e sufocante.

Se uma das empresas que citei acima determina que os algoritmos invisibilizem alguém, por motivos diversos como dinheiro ou ideologia, esse alguém não é visto por quase ninguém. Isso gera processos inevitáveis de sofrimento psicológico porque as pessoas já vivem processos de isolamentos reais em suas vidas nos centros urbanos.

Como poucos humanos estão no controle de praticamente tudo na atual fase do capitalismo (corporações e seus donos, cerca de 0,2% dos humanos do mundo), tenho a impressão que são bem pequenas as chances de salvar a humanidade, salvar as pessoas comuns como nós, do avanço de Estados totalitários e fascistas. As distopias fictícias começam a ser possibilidades reais.

Estamos sós, conceitualmente e na prática, mesmo quando estamos na multidão.

Por isso o silêncio das ruas, por isso o marasmo dos movimentos sociais que não conseguem reagir e resistir ao ataque aos direitos gerais dos povos, e falo de movimentos que eram mais organizados e representativos.

Por isso o mal avança e o 1% está vencendo (o 1% inclui os ideólogos e lacaios úteis do 0,2%), e nós estamos perdendo, isolados, cada dia mais sós e comprimidos no isolamento dos algoritmos das empresas de redes sociais.

O ser humano como o conhecemos está sucumbindo...

William Mendes


segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Lembranças - Capítulo 2



Assembleia BB, out/2003 - Eu, Deli, Vaccari,
Marcolino e Sasseron - Foto: Pepe.

Ando às voltas com uma questão central em minha vida: a busca de sentidos, de porquês, tanto ao olhar para trás quanto para mirar adiante.

Quando sentei para fazer um exercício de escrever sobre lembranças e recordações a pedido de nossa professora Adriana Kanzepolsky no final do ano passado, senti fortes emoções durante a confecção do texto. Estávamos estudando a escritora latino-americana Margo Glantz, cuja literatura aborda temáticas muito interessantes como, por exemplo, a busca de identidade através das memórias, das origens familiares, de lugares e histórias de exílios.

Na oportunidade, fiz o exercício de lembranças focalizando uma dimensão de minha vida, a da vida estudantil, com maior atenção ao período de meu curso de Letras na USP. Não esgotei o tema. Apenas deixei que a memória percorresse momentos que me marcaram e que vieram facilmente durante a escrita. Ao escrever, ri e chorei. Olhar o passado é uma experiência forte.

Após passar uma parte importante de minha vida profissional escrevendo como representante eleito da classe trabalhadora, como membro dirigente da categoria bancária, me encontro hoje em outra condição e ainda busco sentidos para planejar o presente e o futuro, porque tenho claro que ter objetivos pessoais e coletivos é essencial para o existir. Ainda mais no cenário dramático em que nos encontramos, povo brasileiro, sob a égide do novo regime, que ceifa a esperança de qualquer cidadão progressista.

Ao refletir sobre a condição atual do escritor, da literatura e demais formas textuais, do mundo das letras e da educação e formação das pessoas, enfim, da construção de conhecimento humano, tenho concluído que não vale a pena para mim escrever e publicar textos opinativos como fiz ao longo de anos como dirigente eleito por uma questão elementar: não tenho mais um público leitor. Uma coisa foi escrever como alguém que pertencia a algo, a um movimento, que estava inserido numa rotina de vida coletiva: eu escrevia para alguém e produzia conhecimento para a categoria na qual atuava; outra coisa é escrever para o mundo na condição de anônimo. São coisas diferentes. Mas sigo buscando sentidos.

Enquanto isso, volto ao exercício das lembranças e das fortes sensações ao olhar o passado que vivenciamos. Nossa consciência cidadã nos diz que fizemos coisas boas, que influenciamos a vida das pessoas de forma positiva, que construímos coisas coletivas que melhoraram a vida das pessoas. 

A postura pessoal é definitiva em qualquer coisa que nos dispomos a fazer. Aprendi isso na prática sindical desde o primeiro dia em que fui liberado do local de trabalho para me dedicar exclusivamente ao Sindicato e aos trabalhadores que representava. Isso foi no dia 5 de agosto de 2002. Minha vida de representação seguiu até o dia 31 de maio de 2018. 

Se tem uma coisa que sempre disse aos dirigentes sindicais e que reafirmo aqui é que mais importante que ter eventuais estruturas materiais do mandato eletivo é ter o MANDATO de representação. Com ele, você arregaça as mangas e sai para os locais de trabalho fazendo política, ouvindo as pessoas, dando subsídios a elas, fazendo formação política, mudando a opinião das pessoas e construindo consciência coletiva que se transforma em movimento e correlação de forças para qualquer - qualquer - reivindicação coletiva. 

Muita coisa mudou. Isso não mudou. Para organizar a classe trabalhadora é preciso sindicatear, ir aonde estão as pessoas, ouvi-las, organizá-las, dar formação e consciência a elas e mobilizá-las. Fazer a luta. Ter um mandato dos trabalhadores e exercê-lo com gana, ética e honestidade pode mudar o mundo, o seu mundo e o mundo todo.

LEMBRANÇAS DE QUANDO APRENDI A SER DIRIGENTE DOS TRABALHADORES: OS PRIMEIROS ANOS

ME LEMBRO de entrar no prédio do Martinelli e ficar encantado com tudo: o local histórico, o clima de organização dos trabalhadores, os quadros de momentos icônicos da luta de classes. Senti um frio na barriga ao entender que a partir daquele momento eu era parte de tudo aquilo. Nossa! Foi uma sensação que nunca esqueci, a primeira visita ao Martinelli depois de liberado para atuar pelo movimento sindical.

ME LEMBRO que fui mudando algumas atitudes e alguns trejeitos meus à medida que ia conhecendo o trabalho de base. Não foi imposição de ninguém. Assim que comecei a fazer base em vários bancos diferentes e agências em regiões diversas, fui aos poucos entendendo que se eu quisesse estabelecer uma relação de empatia e representatividade com bancários e bancárias das mais diversas matizes ideológicas, visões de mundo, funções dentro dos bancos, dentre outras coisas, seria interessante ser um pouco menos "porra loca" como era quando atuava no caixa do Banco do Brasil. O movimento sindical é muito libertário e isso é ótimo! Com um pouco de estratégia pessoal e coletiva é possível todo mundo encontrar o seu espaço e fazer um trabalho sério e honesto de organização de base. Aos poucos fui me adaptando em conversar com trabalhadores de todos os bancos, sindicalizar bastante gente e acertar linguagens específicas para cada local e segmento de representados. Eu estudava Letras na USP e as matérias que falavam de comunicação me ajudaram muito para moldar a forma de me relacionar com a categoria.

ME LEMBRO que a gerência da agência Pinheiros do Banco do Brasil já havia dispensado dois trabalhadores concursados dentro do prazo de 90 dias, período legal que a CLT definia para que uma empresa demitisse um trabalhador sem maiores questionamentos por se tratar do período de experiência. Eu estava em meu primeiro mandato sindical. Estávamos conseguindo avançar no número de contratações de funcionários para o Banco. O Sindicato fazia campanhas permanentes de mais contratações para melhorar as condições de trabalho e o atendimento ao público. Eu era o responsável pelas questões do BB nas Regionais Oeste e Osasco do Sindicato. Cada regional contém dezenas de locais de trabalho. Por haver suspeitas de discriminação nos dois desligamentos dos colegas bancários, definimos uma estratégia para que nenhum caso ocorresse mais, pois havia verificado que ainda restavam uns dois ou três colegas dentro do prazo de experiência naquela agência. Visitei a dependência, conversei com os colegas, conversei com os novatos; havia medo no ar. Fui até a mesa do gerente geral. Me servi do café que ele tinha para os clientes vip. O cara achou minha atitude estranha e perguntou alguma coisa. O que falei pra ele foi bem baixinho, no pé do ouvido. Me identifiquei como diretor do Sindicato, funcionário do BB, disse que soube das dispensas dos dois novatos, disse que o Sindicato não concordava com aquelas dispensas e apontei motivos, dentre eles porque não é fácil passar pelo processo seletivo do Banco e depois ser dispensado por qualquer banalidade na avaliação. O cara não gostou e resmungou algo do tipo que quem faz a gestão é ele e o Sindicato não tem nada a ver com isso. Ainda falou mal do Sindicato e dos dirigentes sindicais. Olhei pra ele e disse bem baixinho que a partir daquele momento eu estaria na agência todos os dias, até o fim do período de experiência dos colegas novos e caso algum deles fosse desligado, eu teria todo o tempo do mundo para ele, afinal de contas ele havia sugerido que a gente não fazia nada mesmo. Eu transformaria a vida dele num inferno naquela agência... Assim fiz. Todos os dias, após visitar os bancários andar por andar, eu finalizava a visita na mesa do gerente. Não falava com ele, só pegava o café dele. Os gestores do Banco sabiam que quando o Sindicato pegava no pé de um gestor assediador era um inferno. Felizmente os colegas foram efetivados. Que bom isso, cada pessoa vale a pena!

ME LEMBRO que uma das coisas que mais deixavam a gente de mau humor no dia a dia da vida de dirigente sindical era ter que levantar de madrugada para chegarmos nas atividades nos bancos antes dos bancários. É engraçado lembrar disso, mas é um saco madrugar para as atividades sindicais! O pessoal dizia que eu chegava com uma cara tão feia e de poucos amigos no piquete que não seria necessário mais ninguém no portão em que eu estava. Só dava o cara de Osasco com aquela toquinha na cabeça e cara de mau na frente de algum bancário ou bancária que quisesse furar o piquete... Era mais ou menos como dizia a personagem Riobaldo Tatarana, do clássico Grande sertão: veredas, a gente fazia cara de mau mesmo sem ser e, às vezes, até com medo... Faz parte, não é mesmo, gente?

ME LEMBRO de um dia em que estava distribuindo a Folha Bancária numa agência e ao entregá-la para uma colega, ela me olhou com a cara muito brava e começou a falar um monte. Reclamou do Sindicato, do Banco, das condições de trabalho, dentre outras coisas. Eu estava no começo de meu trabalho de base. Aprendendo a ser representante. Ela estava revoltada porque o "Sindicato" nunca ouvia o que ela tinha pra dizer. Era só um tal de visitar a agência para pedir voto pra isso ou aquilo, ou para chamar pra uma assembleia e coisas de interesse do Sindicato e não dos bancários, segundo a visão dela. Fiquei ouvindo a colega um tempão. Quando era possível, eu opinava sobre a questão levantada por ela. No final, a bancária sorriu, descontraiu-se e disse que nunca tinham ouvido as reclamações dela. Foi muito legal. Me comprometi com os bancários da dependência que nossa relação seria de olho no olho e que ouviríamos uns aos outros. Assim fui construindo minha relação com os trabalhadores da base de São Paulo, Osasco e região. Acho que fui feliz porque construí uma relação de respeito que durou muitos anos na categoria bancária.

ME LEMBRO do frio que fazia na porta do Complexo São João e no prédio da Super SP na Avenida Paulista, quando distribuíamos algum material sindical desde a madrugadinha para encontrar os primeiros bancários do dia. Os pés e as mãos ficavam congelados! Mas, de repente, apareciam as boas almas para nos dar um cafezinho quente, como o pessoal da segurança ou algum bancário ou bancária. Solidariedade de classe!

ME LEMBRO de um colega do Banco do Brasil que se recusava a pegar a Folha Bancária quando comecei a fazer o roteiro de agências onde ele trabalhava na Regional Oeste. O jornal do Sindicato saía duas vezes por semana e quem fazia roteiro de agências ou departamentos se organizava para cobrir toda a base pela qual era responsável. A construção de minha relação com ele foi lenta, mas foi um processo muito educativo para nós dois. Primeiro eu fui quebrando o gelo, tipo quando a gente quer se aproximar de uma paquera, alguém que não liga pra você. O bancário foi ficando sem graça de me tratar de forma ríspida ou indiferente porque eu era sempre muito educado com ele. Um dia ele aceitou a Folha porque o tema que anunciei lhe interessou. Depois passou a receber o jornal toda vez que eu passava na agência. Quando eu explicava a importância dele se sindicalizar, importância para ele e para o Sindicato, ele falava que de jeito nenhum se associaria à entidade. E o tempo passou. Veio a campanha salarial daquele ano. Foi uma campanha dura, mas a categoria fez bonito e trouxe avanços coletivos para a Convenção e Acordos coletivos. Ele mudou de agência. Um dia o reencontrei na outra regional do Sindicato onde eu era o responsável, a Regional Osasco. O clima foi muito diferente. Ele elogiou a postura minha e do Sindicato na campanha salarial. E... me pediu a ficha de sindicalização. Disse aos colegas que apesar de não ser "de esquerda" ou coisa do tipo, reconhecia o papel e a importância do Sindicato. Fiquei muito feliz. Nunca me esqueci do Ferreira. Aprendi que na relação com os representados temos que ter firmeza de propósito, persistência naquilo que acreditamos e humildade no trabalho diário. Todos ganhamos nesse processo de aproximação entre a base e o Sindicato.

ME LEMBRO que alguns bancários não tratam a gente bem; alguns são até desrespeitosos conosco. Mas tem tanto bancário e bancária gente boa, que respeita o fato da gente estar lá para ouvi-los e organizar a luta pelos direitos coletivos de uma das categorias mais exitosas nos direitos sociais no Brasil e no mundo, que ao longo de minha vida sindical sempre concluí valer a pena ir para a base e conversar com os trabalhadores que representamos. Uma lição que aprendi e apliquei até o último dia de mandato: na hora que as discussões estiverem girando em torno de disputas internas, personalismos, mesmices e questões infindáveis, saia e vá para a base falar com os trabalhadores. Fiz isso a vida toda! Isso me salvou muitas vezes!

ME LEMBRO que o primeiro mandato como diretor do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e região foi um divisor de águas em minha vida. Foi um período de formação na veia, na prática sindical diária, e aprendemos muito com os erros e acertos que tivemos naquele período entre 2002 e 2005. Como eu fazia o trabalho de base em duas regionais gigantes no início do mandato - Oeste e Osasco -, acabei me aproximando muito dos bancários e criando uma relação de militância em cada regional por onde passei. Ao final do mandato, eu já estava na Executiva do Sindicato e fiz questão de continuar fazendo trabalho de base, e com isso passei a ser o responsável pela Regional Centro e pelo Complexo São João do Banco do Brasil, o prédio histórico da antiga agência Centro (018). As experiências que vivenciamos na preparação e na condução das campanhas salariais dos bancários em 2003 e 2004 foram decisivas para o representante sindical que eu seria até o último dia de atuação como dirigente eleito da classe trabalhadora em 2018. São muitas lembranças desse período formativo e vamos destacar aos poucos fatos e atitudes que acredito que fizeram a diferença nas decisões coletivas que participamos e ajudamos a construir.

ME LEMBRO que era uma quinta-feira de 2003. A greve havia começado na noite de segunda-feira daquela semana. O Sindicato havia defendido na assembleia específica do BB a proposta negociada entre a direção do movimento e o Banco: os bancários rejeitaram a proposta e a greve se iniciou na manhã daquela terça-feira. Era a primeira negociação coletiva entre os trabalhadores bancários e o governo Lula. A categoria já havia aprovado as negociações coletivas realizadas na mesa da Fenaban e os congressos dos trabalhadores de bancos públicos federais, como os funcionários do Banco do Brasil, tinham como eixo das reivindicações que o governo federal cumprisse no mínimo a Convenção Coletiva dos Bancários (CCT/CUT), um acordo nacional que valia para todos os bancários e bancos no país, menos para os bancos estatais federais, que faziam campanhas separadas e há anos sofriam reveses nas negociações. Algumas questões foram decisivas para que os bancários do BB entrassem em greve naquele ano de 2003: o índice de 12,6% aprovado na categoria não havia sido proposto pelo governo nos bancos públicos, para o piso e para todo o PCS. Isso causou uma revolta imensa nos bancários. A direção do BB propôs um reajuste de 6,6% no piso e mais duas letras de antiguidade para cada funcionário (3% cada letra). Isso prejudicava os mais antigos, justamente os formadores de opinião dentro do Banco. Os colegas que estavam nas letras E11 e E12 não chegariam ao reajuste de 12,6%. Erro fatal do governo! A greve começou forte no primeiro dia. Ficou maior no segundo dia. Havia uma espécie de "liberação" dos gestores - funcionários mais antigos - para que todos entrassem em greve. Eu tinha uma boa relação com a militância recém criada naquele primeiro ano de trabalho de base nas regionais. As negociações com o governo e a direção do Banco foram intensas durante os três dias de greve. Como a mobilização cresceu e estava no auge, não bastava mais aplicar o índice reivindicado, os 12,6% de reajuste. Agora queríamos mais, por causa da boa correlação de forças. Em resumo, conseguimos uma boa proposta na quinta-feira, e havia uma decisão a ser tomada na direção do Sindicato e na assembleia daquela noite: defender a proposta ou seguir na greve por mais questões da pauta específica do BB. Eu passei o dia conversando com a militância e a base. A vanguarda queria seguir na greve e arrancar mais direitos. Eu fiquei dividido entre o desejo da militância e a opinião da direção do movimento e do Sindicato, que diziam que era responsabilidade do dirigente apontar os avanços da luta e os riscos de seguir na greve ao invés de aceitar as conquistas que ora eram apresentadas. Ouvi a opinião de várias lideranças com mais experiência de movimento, e me lembro bem de uma delas, a do amigo e companheiro Deli Soares, e entendi que era o momento de defender a proposta com os avanços. Assim fiz na assembleia. Além do reajuste cheio, os 12,6% (devo explicar que além de repercutir em todo o PCS, repercutiria nas comissões [VR] e os comissionados passariam a ter reajuste, um avanço tremendo); a proposta trazia novos direitos como a 1ª PLR no BB negociada e com base nas regras da Fenaban (todos passariam a receber e não só parte dos bancários); no tema ISONOMIA, a conquista do direito de eleger delegados sindicais com estabilidade, os 5 dias de abonos que os novos funcionários pós-1998 não tinham e aumentos nos vales alimentação, refeição e auxílio creche, que eram menores que os valores na CCT da Fenaban; os dias de greve seriam abonados caso a proposta fosse aceita. A assembleia foi tensa. Quadra lotada. Parte dos bancários, principalmente a vanguarda, queria a revolução. Eu estava convencido que era hora de aceitar a proposta e acumular forças para as próximas campanhas salariais, ao invés da incerteza de seguir na greve com o risco do movimento refluir e perder força; mas não queria decepcionar alguns militantes da base. Fiz a defesa. Alguns militantes ficaram muito chateados comigo. Outros compreenderam. Aprovamos a proposta. São Paulo era referência para as demais assembleias no país e a decisão contribuiu para a aprovação nacional. Acabou a assembleia em São Paulo. Acabava a primeira campanha salarial em que fui dirigente em uma das principais bases de bancários do país. Fui para trás das paredes do palco frontal da Quadra dos Bancários. Encostei na parede. Escorreguei pro chão. Desabei. Chorei muito! Naquele instante aprendia a ser um dirigente sindical... Dias depois me reconciliei com os militantes que na hora foram contrários à proposta. Houve uma compreensão melhor e a avaliação geral era que acertamos e conquistamos juntos direitos novos. Aquela campanha me marcou para sempre! Durante uma década, dialoguei com os bancários de São Paulo em assembleias lotadas na Quadra dos Bancários ou na Casa de Portugal. Sempre com muito respeito e honestidade. Acho que foi uma das melhores coisas que fiz na minha vida cidadã.

ME LEMBRO de tanta coisa, me lembro que a luta de classes continua, por mais diferentes e adversas que sejam as condições atuais, por mais opacas que sejam as visões e os trabalhadores não percebam que são eles os explorados. Há muita injustiça por aí e muita gente para ser ouvida e organizada para as lutas coletivas. Me lembro que a luta vale a pena. Se não valesse, as coisas não teriam sentido algum. A vida não teria sentido. E, como diz a personagem Rodrigo Cambará, em O tempo e o vento, epopeia de Érico Veríssimo, viver é bom!

William

Post Scriptum:

O primeiro capítulo dessas Lembranças pode ser acessado aqui. Pode ser que ao longo das memórias eu utilize tanto nomes reais como fictícios para alguns casos.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

A busca de sentidos para seguir


Caminhos...

Quando iniciei os trabalhos neste blog, tinha a intenção de compartilhar conhecimento com as pessoas no mundo. Acho que era algo até um pouco inocente. Partilhar conhecimento de forma gratuita é uma ideia que encanta porque podemos melhorar o mundo e a sociedade humana. A internet e as redes sociais estavam em seus começos no meio da primeira década dos anos dois mil.

Queria postar as aulas de literatura e linguagem porque eu ficava fascinado com cada aula que tinha na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Como se tratavam de aulas em uma faculdade pública, queria partilhar com as pessoas aqueles saberes que adquiri e que muitas pessoas não tiveram possibilidade de acesso a eles.

Sempre fui um curioso em relação a novos conhecimentos e isso desde adolescente, quando trabalhava em serviços braçais vivendo jornadas de trabalho e estudo básico noturno que não me permitiam ler e estudar como gostaria.

Nos anos dois mil, me tornei representante da classe trabalhadora atuando como dirigente eleito em um sindicado da categoria bancária. Esse fato mudou minha vida completamente. Passei a ser outra pessoa, aprendi questões do mundo do trabalho que jamais aprenderia em uma faculdade ou somente lendo livros. Melhorei como ser humano. Me doei de corpo e alma, dei tudo de mim pela categoria que representava.

Durante a última década, produzi muitos textos em dois blogs, este de cultura e outro sobre a categoria bancária. Ao reler postagens, tenho a certeza que contribuí para as lutas da classe trabalhadora e para difundir conhecimentos gerais.

De toda a minha produção - cerca de 1800 postagens neste blog e 2500 no blog sobre a categoria bancária - analiso hoje que as postagens sobre minha atuação e representação no movimento sindical e depois na entidade de saúde em que atuei como diretor de saúde eleito foram as postagens mais relevantes porque foram publicações que não tinham semelhantes na internet. 

As mais de 600 postagens sobre o mandato na Cassi, por exemplo, são textos nunca feitos em lugar algum, nem na entidade, nem na categoria, nem na internet, e isso foi algo bom que fiz em minha vida, algo útil. No auge do mandato, cada postagem tinha de centenas a milhares de leitores: nós criamos um público leitor. Meu trabalho na Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil talvez tenha sido a melhor coisa que fiz na minha existência de trabalhador.

Neste momento, um momento novo em minha vida, diferente das últimas décadas, não tenho encontrado algo que se justifique publicar. Ao longo dos últimos meses não tenho escrito nada relevante, nada diferente e que já não se tenha aos montes na internet - com e sem qualidade - e isso ocorre desde que deixei de representar a classe trabalhadora e depois que me desliguei dos quadros da ativa do banco onde trabalhei por quase 27 anos. Hoje sigo na comunidade do Banco do Brasil como um beneficiário de nosso fundo de pensão, ainda com os direitos cidadãos que temos na comunidade BB não retirados pelo novo regime.

Para seguir escrevendo ou gravando vídeos como fiz dias atrás a respeito de literatura será preciso encontrar um sentido, algo que valha a pena, algo que seja diferente do que já se tem por aí; algo que seja útil para a sociedade humana ou ao menos para um segmento específico da sociedade. Algo que seja útil para mim também, que me dê prazer ou senso de contribuição com segmentos do mundo.

Não tem sentido seguir escrevendo coisas triviais, às vezes chororô das derrotas políticas, opiniões sobre as coisas da vida, mas que não chamem a atenção necessária porque já existem opiniões iguais e publicadas por gente importante e que já são pessoas influenciadoras e estão no auge em suas áreas. 

Eu não represento mais a classe trabalhadora, ou seja, um dos papéis centrais dos dois blogs que alimentei por tempos não existe mais: eu não presto contas de nada, nem tenho um público cativo para receber as informações que eu dava. Não influencio mais. Temos que ter uma leitura correta da realidade.

Ou faço algo novo, algo útil, algo que tenha ao menos um tom pessoal que agregue valor ao tema, ou não faço mais isso e desapareço das redes sociais e da internet. Isso é algo a matutar, a cismar e a preencher minhas buscas por algum sentido da vida.

William

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Análise do poema "Desfile" (1945), de Drummond



A rosa do povo, de Drummond.

Refeição Cultural

DESFILE
O rosto no travesseiro,
escuto o tempo fluindo
no mais completo silêncio.
Como remédio entornado
em camisa de doente;
como dedo na penugem
de braço de namorada;
como vento no cabelo,
fluindo: fiquei mais moço.
Já não tenho cicatriz.
Vejo-me noutra cidade.
Sem mar nem derivativo,
o corpo era bem pequeno
para tanta insubmissão.
E tento fazer poesia,
queimar casas, me esbaldar,
nada resolve: mas tudo
se resolveu em dez anos
(memórias do smoking preto).
O tempo fluindo: passos
de borracha no tapete,
lamber de língua de cão
na face: o tempo fluindo.
Tão frágil me sinto agora.
A montanha do colégio.
Colunas de ar fugiam
das bocas, na cerração.
Estou perdido na névoa,
na ausência, no ardor contido.
O mundo me chega em cartas.
A guerra, a gripe espanhola,
descoberta do dinheiro,
primeira calça comprida,
sulco de prata de Halley,
despenhadeiro da infância.
Mais longe, mais baixo, vejo
uma estátua de menino
ou um menino afogado.
Mais nada: o tempo fluiu.
No quarto em forma de túnel
a luz veio sub-reptícia.
Passo a mão na minha barba.
Cresceu. Tenho cicatriz.
E tenho mãos experientes.
Tenho calças experientes.
Tenho sinais combinados.
Se eu morrer, morre comigo
um certo modo de ver.
Tudo foi prêmio do tempo
e no tempo se converte.
Pressinto que ele ainda flui.
Como sangue; talvez água
de rio sem correnteza.
Como planta que se alonga
enquanto estamos dormindo.
Vinte anos ou pouco mais,
tudo estará terminado.
O tempo fluiu sem dor.
O rosto no travesseiro,
fecho os olhos, para ensaio.

INTRODUÇÃO

O poema "Desfile" faz parte de uma obra bastante densa do escritor e poeta Carlos Drummond de Andrade: o livro A rosa do povo, que foi publicado em 1945, contendo 55 poemas. É uma obra cujos poemas são marcados por um "tempo" - tanto histórico, quanto pessoal -, como nos conta o autor na apresentação da reedição do livro em meados dos anos oitenta. Em 1984, Drummond assina contrato com a Editora Record após 41 anos de parceria com a José Olympio. Sobre a reedição, ele diz:

"Quis a Record fazê-lo voltar à situação primitiva, como obra que, de certa maneira, reflete um 'tempo', não só individual mas coletivo no país e no mundo. Escrito durante os anos cruciais da II Guerra Mundial, as preocupações então reinantes são identificadas em muitos de seus poemas, através da consciência e do modo pessoal de ser de quem os escreveu.
Algumas ilusões feneceram, mas o sentimento moral é o mesmo – e está dito o necessário." (ANDRADE, 1998, p. 7)

O professor Antonio Candido nos ensina também em "Os elementos de compreensão" que: "Um poema revela sentimentos, ideias, experiências: um romance revela isto mesmo, com mais amplitude e menos concentração. Um e outro, valem, todavia, não por copiar a vida, como pensaria, no limite, um crítico não-literário". (CANDIDO, 1975, p. 34-36)

COMENTÁRIOS E ESCLARECIMENTOS

Algumas informações serão relevantes para complementarem a leitura do poema, leitura baseada na materialidade do texto. As informações podem fortalecer os argumentos utilizados na hora da construção das hipóteses propostas na leitura interpretativa.
Drummond estava com 43 anos quando publicou A rosa do povo, seu 5º livro de poesia. Antes, havia publicado Alguma poesia (1930), Brejo das almas (1934), Sentimento do mundo (1940) e Poesias, contendo o poema "José" (1942).
O escritor já tinha uma carreira sólida e reconhecida à época. Era casado, tinha uma filha e morava no Rio de Janeiro, capital da República. Era funcionário público no Ministério da Educação e Saúde Pública.
Dados sobre infância e adolescência do autor podem nos interessar na interpretação do poema em análise. Drummond nasceu em 1902 em Itabira do Mato Dentro (MG). Aos 13 anos, trabalhou alguns meses como caixeiro na casa comercial de Randolfo Martins da Costa.
Em "Drummond vida e obra", anexo presente ao final da 19ª edição de A rosa do povo, publicada pela Editora Record, uma informação nos chama atenção ao dizer que a casa comercial "em retribuição a seus serviços, lhe oferece um corte de casimira" (ANDRADE, 1998, anexo à obra). A transição entre fases da vida parece marco importante na vida do Eu lírico, vemos um traço disso no verso 33: "primeira calça comprida".
Aos 14 anos, Drummond vira aluno interno do Colégio Arnaldo, da Congregação do Verbo Divino, em Belo Horizonte. Ele interrompe os estudos por problemas de saúde.
Aos 16 anos, ele está novamente enclausurado no Colégio Anchieta, da Companhia de Jesus, em Nova Friburgo (RJ). O jovem poeta parece ter uma natureza indômita, nada dócil, pois ao fim do ano letivo de 1919 (17 anos) é expulso do colégio "em consequência de incidente com o professor de Português" (ANDRADE, 1998, anexo à obra).
No poema, o Eu lírico vai dizer nos versos 13 e 14: "o corpo era bem pequeno/para tanta insubmissão.".
Drummond muda-se para a cidade do Rio de Janeiro, então capital da República, em 1934, como chefe de gabinete de Gustavo Capanema, novo ministro da Educação e Saúde Pública. Já era casado, já tinha perdido um filho, que viveu alguns instantes ao nascer, e tinha uma filha, Maria Julieta, nascida em 1928.
Finalizando esta parte do comentário sobre seus dados biográficos até a publicação de A rosa do povo, temos o poeta e escritor residindo na capital federal, a cidade do Rio de Janeiro; já era um poeta reconhecido aos 43 anos de idade; após publicar por conta própria seus primeiros livros, teve o livro Poesias, custeado e editado pela Editora José Olympio, em 1942. A parceria duraria quatro décadas.
Algumas informações de época ou de léxico podem auxiliar na leitura do poema.
A palavra "derivativo", presente no verso 12, tem vários significados, segundo o dicionário de Aurélio Buarque de H. Ferreira. Destaco aquele que tem mais relevância para a leitura do poema: "ocupação ou divertimento para fazer esquecer, ou para atenuar, um pensamento triste, uma ideia fixa, ou para quebrar a monotonia de uma tarefa".
A palavra "Halley", que aparece no verso 34, remete à passagem do Cometa Halley, ocorrida em 1910. Segundo o jornal "O Paiz", edição do dia 19/05/1910, "a passagem causou grande comoção". A informação foi retirada do site da Biblioteca Nacional, na seção de "notícias", do dia 18 de maio de 2015.

A ESCOLHA DO POEMA

O professor Antonio Candido, nos ensina em O estudo analítico do poema que "O verdadeiro comentador experimenta previamente todo o encanto do poema, para em seguida aplicar-lhe os instrumentos de análise.". (CANDIDO, 1996, p. 14)
A leitura deste poema em sala de aula me deixou fascinado; minha identificação com o tema e com o Eu lírico foi imediata. Por isso escolhi este poema para análise.

LEITURA SINTÉTICA DO POEMA NO PLANO DA LINGUAGEM

O Eu lírico está deitado em seu quarto, acordado, e vê sua vida em imagens que vão fluindo diante de si, como se fosse um desfile a que assiste.
Primeiro lhe vêm imagens que simbolizam seus tempos de adolescência. Depois lhe vêm imagens anteriores, dos tempos entre a infância e a adolescência. Por fim, o Eu lírico volta ao presente, momento de avaliações e pressentimentos sobre o futuro. Feitas as reflexões, vai dormir.
O poema pode ser lido e compreendido a partir da materialidade que se apresenta aos leitores. No plano imediato da linguagem do poema, em um sentido mais literal, temos um primeiro nível de compreensão possível para o texto.
A partir do conhecimento de certos dados biográficos do poeta, é possível avançar no campo dos sentidos e captar sentimentos mais profundos no poema, sentimentos que podem ser sentidos ao lermos o conjunto de poemas que compõem A rosa do povo. Antonio Candido nos ensina em "Os elementos de compreensão" que:

"Quando nos colocamos ante uma obra, ou uma sucessão de obras, temos vários níveis possíveis de compreensão, segundo o ângulo em que nos situamos. Em primeiro, os fatores externos, que a vinculam ao tempo e se podem resumir na designação de sociais; em segundo lugar o fator individual, isto é, o autor, o homem que a intentou e realizou, e está presente no resultado; finalmente, este resultado, o texto, contendo os elementos anteriores e outros, específicos, que os transcendem e não se deixam reduzir a eles" (CANDIDO, 1975, p. 34-36)

Os comentários que incluímos nos darão suporte para a leitura que faremos de análise interpretativa.

LEITURA DO POEMA

O poema "Desfile" contém sessenta versos em estrofe única. É composto em versos livres com sete sílabas tônicas. O ritmo entre as sílabas tônicas e átonas irão variar de acordo com os blocos temáticos

PARTE 1. UMA REVISTA AO PASSADO

“O rosto no travesseiro,            01
escuto o tempo fluindo
no mais completo silêncio.”      03

A imagem de abertura do poema, construída pelo Eu lírico nesses primeiros três versos, concentra múltiplos sentidos, poderíamos chamá-la de abre alas para os diversos blocos temáticos que virão no decorrer do longo desfile de imagens que rememoram fases da vida do Eu lírico.
O Eu lírico está deitado e demonstra ao leitor - através do tempo verbal da enunciação, presente do indicativo: “escuto” -, que está consciente e chama atenção para a matéria do poema: a passagem do tempo e as fases da vida.
Como escutar no silêncio o tempo fluindo? Essa antítese cria uma imagem que nos remete a um marcador de tempo: pode ser um antigo relógio mecânico (tic tac) ou as batidas do coração; quando deitamos e nos pegamos no completo silêncio, um dos primeiros movimentos que percebemos é o do coração, do ritmo do coração.
As batidas tanto equivalem ao tempo passando, como também ao sangue fluindo a cada bater do coração. O bater do coração, o fluir do sangue: o alimento do corpo, a vida. Ou seja, no plano dos sentidos, a antítese se repete: o fluir do sangue no silêncio da batida do coração alimenta a vida, mas a vida passa, está passando; a cada batida, a cada fluir, a vida caminha para o fim.
A sonoridade do 2º verso é forte, com as consoantes /t/ e /d/ criando a sensação do bater do marcador do tempo que passa.

“Como remédio entornado    04
em camisa de doente;
como dedo na penugem
de braço de namorada;
como vento no cabelo,
fluindo: fiquei mais moço.      09

Na sequência seguinte de versos, que poderíamos chamar de primeiro bloco do desfile de imagens da vida do Eu lírico, após o abre alas, percebemos algumas questões nas imagens: movimento e ritmo.
Tanto as aliterações quanto o encadeamento de palavras nos passam uma sensação de harmonia imitativa: "Como", "como", "como"; as sequências de consoantes /m/, /n/ e /v/ e /f/ nos passam a sensação de tempo fluindo, quase ao som de murmúrios numa viagem rumo ao passado.
E assim como o bater do coração marca o ritmo do tempo e o movimento do sangue o fluir da vida, temos nessa sequência de versos, imagens de movimentos que envolvem um corpo de jovem, ou que remetem a acontecimentos frequentes na juventude: “como dedo na penugem/de braço de namorada;” e “como vento no cabelo,”.
Ainda sobre eventos comuns na juventude, poderíamos, inclusive, considerar “Como remédio entornado/em camisa de doente;”. Nesse caso, poderia ser um xarope para alguma moléstia passageira. Nos comentários, citamos a informação que o jovem poeta Drummond chegou a interromper os estudos por causa de uma doença que lhe fez sair do colégio.
Essas duas sequências de versos, do 1 ao 3 e do 4 ao 9, vão marcar a passagem do tempo e identificar o bloco em que estamos no desfile: “fluindo: fiquei mais moço.”. O Eu lírico utilizou o gerúndio do verbo fluir no 2º e no 9º verso para movimentar o cenário do momento presente “escuto” para o pretérito: “fiquei”.
Vamos ver na sequência outro bloco passar por nós no desfile de imagens rumo ao passado.

“Já não tenho cicatriz.         10
Vejo-me noutra cidade."      11

O Eu lírico está jovem neste bloco da passagem do tempo no poema. Algumas imagens nos dão as pistas desta fase da vida do Eu: "Já não tenho cicatriz.". O advérbio "Já" remete a uma alteração de condição: tinha e não tem mais. O que teria acontecido?
O uso dos tempos verbais por parte do Eu lírico auxiliam bastante o leitor na percepção de espectador do desfile de imagens da passagem do tempo.
Na sequência anterior, dos versos 1 ao 9, vimos o Eu lírico assistir de forma consciente, deitado e acordado, à passagem do tempo através de imagens fluindo do momento presente para o passado.
Há uma sequência de equivalências no encadeamento dos versos. Na sequência, nos versos 10 e 11, ficamos sabendo que os blocos temáticos de fases da vida do Eu se darão "noutra cidade", em outros lugares, diferentes do presente da enunciação.

"Sem mar nem derivativo,    12
o corpo era bem pequeno
para tanta insubmissão."      14

Na sequência do desfile de imagens do passado, o Eu lírico reforça a mudança de cidade, agora num lugar "Sem mar" e sugere a juventude do Eu, cuja energia jovem independe de compleição física; poderíamos dizer que os jovens são como as águas dos rios com correnteza, que não se dobram às margens; ao contrário, transbordam e ultrapassam limites.
As imagens do poema vão sugerir uma antítese entre ritmo mais acelerado e menos acelerado, mais fluido e menos fluido, ritmos relacionados aos tempos de juventude em contraponto com o ritmo da vida madura.
A fluidez e a busca por agitação e movimento, que vemos entre os versos 12 e 14 será inversa nos versos da etapa final da vida, já no presente da enunciação, quando o Eu lírico fala do tempo que passou e ainda passa, mas passa com ritmo diferente: "Como sangue; talvez água/de rio sem correnteza.".

"E tento fazer poesia,                  15
queimar casas, me esbaldar,
nada resolve: mas tudo
se resolveu em dez anos
(memórias do smoking preto).”    19

Entre os versos 15 e 19, segue a sequência do bloco de desejos de aventuras e diversões, e também inquietações, que marcam a adolescência; via de regra, nas cidades do interior são menores as oportunidades tanto para se divertir quanto para se realizar nas principais dimensões da vida social: profissional, pessoal, cultural.
A dificuldade de quebrar a monotonia da vida interiorana - “Sem mar nem derivativo,” - pode ser maior ainda, se o Eu lírico não tiver plena liberdade de ir e vir para o gozo dos namoros, encontros, festas e saraus. Isso era muito comum para os alunos que estudavam em regime de internato na primeira metade do século XX.
Nada como as utopias, os sonhos e os desejos de juventude para o Eu lírico querer “fazer poesia” e “me esbaldar”. É a agitação do bater do coração e do ritmo muitas vezes alucinante do sangue nas veias dos jovens que despertam para a vida.
Temos nova antítese no verso 17: "nada" e "tudo". O Eu lírico encerra os blocos de imagens da juventude, interrompe o fluir dos desejos e utopias da adolescência de forma abrupta, marca o fim de uma época com uma conjunção adversativa "mas" entre os extremos do "nada" e do "tudo" e com um verbo no pretérito perfeito "resolveu".
A passagem por esse bloco de imagens adianta o futuro conhecido pelo Eu lírico, o "smoking" sugere um momento posterior à formatura, pós fase dos impulsos de insubmissão, de procura das aventuras e amores; um emprego e talvez um casamento, passados 10 anos, tenham feito a vida fluir para outra etapa da existência: a maturidade do presente do Eu lírico.

"O tempo fluindo: passos     20
de borracha no tapete,
lamber de língua de cão
na face: o tempo fluindo."    23

Nesse bloco do tempo, as imagens sugerem ao leitor - e espectador - a infância do Eu lírico, quiçá os blocos estejam fluindo em imagens que abranjam momentos de uma década para outra da vida.
O Eu lírico saiu da idade madura no tempo presente, viu o desfile de imagens da adolescência que apontavam para uma fase posterior, depois da formatura, e agora segue avançando para a infância - regredindo no tempo -, com um alerta:

"Tão frágil me sinto agora."     24

O verso 24 sugere uma mudança de contexto no período da infância: é possível vermos uma fase de aconchego e bem-aventurança do lar, com família e animal de estimação, para uma fase de solidão, de isolamento, em meio a gente estranha.
No momento do aconchego do lar, a harmonia imitativa presente na aliteração do verso "lamber de língua de cão" traz nas consoantes /l/ da pronúncia "lamber de língua" uma espécie de sensação sinestésica da lambida amorosa do cão.

"A montanha do colégio.            25
Colunas de ar fugiam
das bocas, na cerração.
Estou perdido na névoa,
na ausência, no ardor contido."  29

Forte essa sequência de imagens. Fica clara a tensão e o contraste com a fase anterior, no aconchego do lar. O Eu lírico está perdido, sozinho, contém as lágrimas nas horas de solidão. A sugestão nos parece de um garoto ou adolescente longe da família, num colégio interno.

O mundo me chega em cartas.   30
A guerra, a gripe espanhola,
descoberta do dinheiro,
primeira calça comprida,
sulco de prata de Halley,
despenhadeiro da infância."       35

Como nos ensinou em sala de aula o Professor Ariovaldo Vidal, de Teoria Literária II, sobre os fundamentos da poesia, temos uma sequência de equivalências no poema. Confirma-se a solidão e isolamento do Eu lírico, que toma conhecimento do mundo por cartas. O cenário é dos anos dez ou pouco depois, época da comoção geral causada pela passagem do Cometa Halley (1910).
O Eu lírico parece ter chegado ao limite de suas lembranças; boa parte dos adultos se lembra de uma passagem da infância, cujas noites são martirizadas pelo pesadelo da queda sem fim na escuridão: "despenhadeiro da infância.".

"Mais longe, mais baixo, vejo     36
uma estátua de menino
ou um menino afogado.
Mais nada: o tempo fluiu."          39

Os versos de 36 a 39 vão encerrar as etapas do desfile, a revista ao passado, a passagem dos blocos temáticos da vida do Eu lírico: a juventude e duas fases da infância, uma no aconchego do lar a outra no isolamento do colégio.
Os versos 37 e 38 e a referência ao menino sugerem a infância mais longínqua, já mergulhada e cristalizada no passado sem volta: o que passou, é passado. Resolvido está o que se tinha que resolver: O Eu lírico já nos disse lá atrás que tudo "se resolveu em dez anos.".
Do presente (v.1 a 3) para as imagens do passado (v.4 a 39), vimos o desfile de imagens, eventos e sentimentos do Eu lírico; a cada bloco temático da primeira parte do poema, o verbo "fluir" está no gerúndio, indicando movimento. O pretérito perfeito do verso 39 marca o fim do movimento no tempo.

PARTE 2. REFLEXÃO SOBRE O ONTEM E O AMANHÃ

O poema ganha uma nova dimensão dos versos 40 a 60. O Eu lírico, no presente da enunciação, e após passar em revista o tempo passado através de imagens marcantes da vida, avalia e reflete sobre as conquistas e as perspectivas do futuro.

"No quarto em forma de túnel  40
a luz veio sub-reptícia."            41

A imagem explica-se por si mesma: no final do túnel metafórico da passagem do tempo havia uma luz, que guia, ilumina e serve de referência para a chegada da travessia.

"Passo a mão na minha barba.    42
Cresceu. Tenho cicatriz.
E tenho mãos experientes.
Tenho calças experientes.
Tenho sinais combinados."            46

A sequência dos versos 42 a 46 vão repetir a sequência de metonímias que vimos no primeiro bloco de imagens do passado, entre os versos 4 a 9. Temos também encadeamentos e repetições de palavras e sons: "Tenho" quatro vezes e "experientes" duas vezes. Aliterações com as consoantes nasais /m/ e /n/.
Aprendemos com o Professor Ariovaldo que sempre que algo surpreenda no poema, que saia de uma lógica esperada – uma sequência de equivalências -, devemos observar o movimento feito pelo poeta porque ele quis dizer alguma coisa, por contraste. Ao interromper as repetições de “mãos experientes”, “calças experientes” e escolher a palavra “combinados” para “sinais”, o poeta pode ter sugerido que além do acúmulo de experiências diversas na vida, ele adquiriu também os cacoetes, as características oriundas de sua posição e classe social, como lemos no poema “A flor e a náusea”, ao dizer “Preso à minha classe e a algumas roupas,”.
Vemos novamente o belo efeito poético das metonímias: na primeira parte do poema, temos as palavras "camisa de doente", "dedo" e "cabelo" simbolizando o jovem Eu lírico; agora temos na segunda parte as palavras "cicatriz", "mãos", "calças" e "sinais" simbolizando o Eu lírico maduro, experiente, vivido.

"Se eu morrer, morre comigo   47
um certo modo de ver."            48

Após passar em revista imagens do tempo vivido, vemos um Eu lírico com plena consciência de seu olhar de mundo. Aliás, uma questão que fica em aberto para os leitores, a partir de uma análise material do poema, é sobre a ocupação do Eu: talvez ele tenha por profissão alguma função vinculada à escrita ou que traga o ponto de vista dele sobre os acontecimentos do mundo.

"Tudo foi prêmio do tempo      49
e no tempo se converte."         50

Nesse momento de reflexão do Eu lírico sobre a passagem do tempo, podemos sentir uma espécie de resignação a respeito do presente. Ele confessou pouco antes ser pessoa de posses, através da repetição - "tenho" -; venceu na vida, tem bens materiais e posição social: "Tenho sinais combinados.".
No entanto, o Eu lírico sugere a efemeridade de todas as conquistas. Todas as posses e posição social podem não significar nada, esse "tudo" pode ser "nada", bastando para isso que ele deixe de existir. É forte a tensão do poema neste momento: "Se eu morrer, morre comigo".

"Pressinto que ele ainda flui.       51
Como sangue; talvez água
de rio sem correnteza.
Como planta que se alonga
enquanto estamos dormindo."     55

Assim como vimos movimento e ritmo fluírem de forma acelerada nas imagens da juventude, entre os versos 4 e 9, agora o Eu lírico constrói entre os versos 52 e 55 imagens condizentes com o movimento e ritmo mais lentos da maturidade. O tempo flui como água "de rio sem correnteza." e com o ritmo lento com que crescem as plantas em vasos domésticos.

"Vinte anos ou pouco mais,       56
tudo estará terminado."             57

Uma imagem da existência não só resignada, como poderíamos dizer melancólica. Se ao passar em revista as imagens da juventude, o Eu lírico usou o verbo "resolver" para avaliar que tudo "se resolveu" no sentido de ter vencido na vida no sentido material e social, a sugestão que fica ao olhar para o futuro é bastante pessimista: de que adiantaria tudo que se conquistou se o prêmio final é a morte?

"O tempo fluiu sem dor.            58
O rosto no travesseiro,
fecho os olhos, para ensaio."    60

A reflexão iniciada nos versos anteriores prossegue, e sugere uma certa falta de sentido na vida, muitas vezes vivida de forma mecânica e automática - "O tempo fluiu sem dor." -, com certo automatismo entre as etapas a serem superadas, principalmente na adolescência e fase adulta.
O verso 59 repete a imagem do 1º verso, numa espécie de moldura das cenas passadas em revista e o verso 60 fecha o desfile, conclui as reflexões sobre a vida.
A palavra que fecha o poema – “ensaio” – cria uma tensão e um contraste com a posição passiva de quem só assiste a tudo na vida; abre-se, assim, perspectivas para o amanhã, possibilidades de mudanças, de criação de algo novo. De esperança.

ANÁLISE DO POEMA 

O TEMPO PASSA; A PALAVRA CRIA E REGISTRA

"Tudo foi prêmio do tempo
e no tempo se converte."

O título metafórico do poema "Desfile" vai ficando claro ao leitor à medida em que ele avança verso a verso, bloco a bloco das imagens do tempo que passou; não há separação em estrofes, mas há blocos temáticos até que se chega ao final do desfile, quando o Eu lírico - e poderíamos dizer o espectador - volta ao presente da enunciação e se prepara para o ensaio final.
De forma consciente, o Eu lírico passou em revista sua vida, infância e adolescência, voltando ao presente. Momentos de alegria e aconchego na tenra idade: "lamber de língua de cão/na face"; depois fragilidade e solidão na ausência do lar: "Estou perdido na névoa"; a juventude em busca de aventuras, amores, carreira: "E tento fazer poesia,/ queimar casas, me esbaldar"; por fim, a maturidade resolvida: "mas tudo/se resolveu em dez anos".
O Eu lírico tem consciência que todas essas etapas foram vencidas, que tudo se resolveu, e que tudo é finito e fugaz, pois "Vinte anos ou pouco mais,/tudo estará terminado.".
No entanto, há uma inconformidade com o sentido de tudo isso. É uma reflexão sobre o sentido da vida e sobre o tempo, que passa para todos.
O último verso, porém, sugere algo muito interessante. A palavra ensaio e o verbo ensaiar, tanto podem significar treinar, exercitar, quanto experimentar algo novo, colocar em prática algo; um ensaísta cria textos e ideias novas.
Fica para nós uma esperança: a vida pode ser algo mais que a mecânica das etapas biológicas e sociais da infância, adolescência, maturidade e velhice. Nada como experimentar, criar o novo, o belo, algo que tenha uma existência em si mesma, como a própria produção poética e literária, bem como as produções artísticas, para lidarmos com a efemeridade de uma vida humana.
No poema “Desfile” podemos ler a mensagem simbólica sugerida a nós pelo poeta: o tempo passa, a palavra cria e registra.

ANÁLISE INTERPRETATIVA

A leitura que fizemos do poema "Desfile", baseada na materialidade do texto, nos permite atingir o objetivo primário da leitura de poesia, sentir a "emoção estética" como nos diz o professor Antonio Candido, em "Os elementos de compreensão".
Como está elencado no início do trabalho, o conhecimento de alguns dados biográficos de Drummond pode contribuir para complementar e ampliar a compreensão do poema e, inclusive, a própria declaração do poeta evidencia essa possibilidade, falando sobre A rosa do povo: a obra "reflete um 'tempo', não só individual mas coletivo no país e no mundo".
Como nos ensina Candido, ao considerar os elementos não literários, como o fator individual e os fatores externos e sociais, o texto, que é um resultado, "só pode ganhar pelo conhecimento da realidade que serviu de base à sua realidade própria".
Podemos claramente ver o poeta mineiro em diversas passagens do poema em análise. Drummond já vivia e trabalhava na cidade do Rio de Janeiro, no momento de aparecimento da obra, anos quarenta. Daí a imagem de sair de uma cidade litorânea para um local "Sem mar nem derivativo,".
A infância e adolescência se passou num ir e vir entre Itabira, Belo Horizonte e Nova Friburgo. Ele estudou no Colégio Arnaldo, na capital mineira, e interrompe os estudos por problemas de saúde. Poderíamos até ver essa passagem nos versos 4 e 5: "Como remédio entornado/em camisa de doente;".
Esteve mais tarde no Colégio Anchieta, em Nova Friburgo, de onde seria expulso por sua natureza "insubmissa" e "anarquista", como vemos neste poema, nos versos 13 e 14 - "o corpo era bem pequeno/para tanta insubmissão." - e também no "A flor e a náusea", do mesmo livro: "Ao menino de 1918 chamavam anarquista.".
Uma década depois, nos anos trinta, Drummond já estava casado, com uma filha, trabalhando no serviço público, para o governo federal: o poeta já estava "Preso à minha classe e a algumas roupas", como o Eu lírico afirma no 1º verso de "A flor e a náusea".
Enfim, a leitura do poema ganha um acréscimo de sentidos ao ligarmos a materialidade do texto aos fatores externos a ele, não literários. Candido diz: "a compreensão da obra não prescinde a consideração dos elementos inicialmente não-literários. O texto não os anula, ao transfigurá-los e, sendo um resultado, só pode ganhar pelo conhecimento da realidade que serviu de base à sua realidade própria". (CANDIDO, 1975, p. 34-36)
Vale a pena também, comentarmos o quanto a obra é repleta de poemas nos quais o Eu lírico aborda temáticas que aparecem e se repetem no poema “Desfile”. Uma das principais é a matéria "tempo", boa parte dos poemas tratam dessa temática. Vejamos essa sequência de poemas de A rosa do povo: "Nosso tempo", "Passagem do ano", "Passagem da noite", "Uma hora e mais outra", "Nos áureos tempos", dentre outros mais.
Apesar de vários poemas na obra e talvez o poeta mesmo parecerem melancólicos e pessimistas, há sempre nos poemas de Drummond uma luz, um toque de humor, uma possibilidade de leitura com esperança, como apresentamos na leitura da palavra "ensaio" ao final da análise geral do poema, no plano de sentidos mais literal.
O “Poeta do finito e da matéria”, como se apresenta em “Consideração do poema”, nos presenteou com um poema reflexivo, que nos põe a pensar na passagem do tempo, nas dificuldades e superações da vida, e nas perspectivas que se tem pela frente. A arte poética cria e registra e complementa a vida fugaz e passageira.

BIBLIOGRAFIA:

ANDRADE, Carlos Drummond. A rosa do povo. 19ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1998.
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª edição, revista e ampliada. 16ª reimpressão. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2006, p. 628-645.
CANDIDO, Antonio. "Os elementos de compreensão". Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 5. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, 1º vol., p. 34-36.
CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 3ª edição. São Paulo: Humanitas Publicações/FFLCH/USP, 1996.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

Site da Biblioteca Nacional: https://www.bn.gov.br/es/node/514