Refeição Cultural
Osasco, 3 de abril de 2024. Quarta-feira.
Acaso 55
Por puro acaso cheguei aos cinquenta e cinco anos de existência.
Foi por acaso que antes dos cinquenta eu passei a controlar
a pressão arterial antes de infartar ou ter um acidente vascular cerebral. Poderia
já ter morrido antes não fosse isso. Na época das bebedeiras era tão ignorante
que comia sal na mão com cerveja.
Foi um acaso eu ter virado gestor de saúde e, como pessoa da
área, fazer os acompanhamentos primários e descobrir que era hipertenso e
passar a controlar a pressão, uma das doenças crônicas que agravam e matam boa
parte da população mundial.
Foi por acaso que ao ser convidado para disponibilizar meu
nome para compor uma chapa nas eleições de uma autogestão em saúde, como
candidato a diretor e encabeçar a chapa por entenderem que meu nome agregava,
eu tinha um diploma de graduação em Ciências Contábeis, exigência protocolar
para a inscrição da chapa.
Foi por acaso que eu me formei em Ciências Contábeis. Quando
terminei o segundo grau não estava pensando em fazer faculdade naquele momento
da vida. Um vizinho conhecido, um certo dia, me chamou para fazer um vestibular
na região, Osasco, e acabei escolhendo um dos três cursos disponíveis e fiz a
prova e entrei e me formei. Isso depois de organizar greve estudantil. Que orgulho
tenho ao lembrar que uma turma de cem alunos me escolheu para ser o orador.
Por puro acaso cheguei aos cinquenta e cinco anos de
existência.
Foi por acaso que fui parar em São Paulo antes dos dezoito
anos. Me lembro que discuti em casa e acabei indo embora. Mas tinha outros
motivos, penso eu. Não se conseguia trabalho em Uberlândia nos anos oitenta e
eu estava cansado de trabalhos braçais e humilhantes, eu estava a fim de uma
garota em São Paulo, apesar de saber que seria difícil conquistá-la. Soube que
teria um lugar pra ficar no início se fosse pra SP.
Foi por acaso que ao visitar familiares em São Paulo, fiquei
sabendo que haveria uma vaga na casa de minha avó após o casamento de um dos
primos que moravam com ela, em uma das casas de meu tio. Era uma espécie de
república, os primos dividiam as despesas da casa. Sairia um, entraria outro,
eu.
Foi por acaso virar bancário depois de uns serviços gerais
em Sampa. No começo, o trampo foi pesado, descarregar caixas de palmito de caminhões
com umas vinte toneladas e entregar por toda a grande São Paulo. Depois, fui caixa
de lanchonete no Itaim Bibi, a noite toda vendo a playboyzada na farra. Não me
lembro como, mas virei bancário do Unibanco.
Foi por acaso que dei atenção ao pessoal do sindicato e
passei a ajudar na organização de uma greve. E me sindicalizei e passei a
sindicalizar todo mundo. Por acaso mesmo, porque quase todo mundo trabalhava em
banco, como meus primos e primas e amigos, e nem por isso o pessoal dava bola para
o sindicato. Poderia ser um bosta bolsonarista décadas depois se não tivesse me
politizado com o sindicato.
Por puro acaso cheguei aos cinquenta e cinco anos de
existência.
Foi por acaso que não morri algumas vezes por aí,
alimentando estatísticas das mortes de homens jovens. Já dirigi um carro em
estrada por dezenas de quilômetros com curto na parte elétrica, sem luz
nenhuma, farol, lanterna, uma loucura irresponsável. E com muito sono. Por muito
tempo dirigi minhas motos alcoolizado entre os dezoito e os trinta anos. Coloquei
minha vida em risco inúmeras vezes. E por acaso fui vivendo.
Foi por acaso, imagino, as vezes em que quase morri mesmo
sem ter culpa ou fazer alguma loucura. A vida tem um quê de acaso. Ir e voltar
de moto para Mogi das Cruzes por meses, de moto, com chuva, de noite, naquelas
curvas da estrada, cento e cinquenta quilômetros por dia, foi uma sorte da
porra sair ileso disso. Foram tantas finas e tantos sustos. Puta merda!
Foi por acaso, talvez, me levarem para o hospital quando morava
sozinho e estava me desmanchando em vômito e diarreia após uma intoxicação
alimentar, salmonela se não me engano, e quando acordei de madrugada no
hospital me disseram que foram horas no soro para recuperar minha pressão que
chegou a 8x3 ou coisa do tipo.
Não sei se foi por acaso, mas tem o acaso nisso, ter passado
tantos anos de minha vida querendo morrer e não ter morrido. Cheguei a pensar
em interromper a vida e cheguei a falar essa merda para a minha mãe. Anos depois,
fui entender que provavelmente passei a adolescência e uma fase de adulto com
uma forte depressão sem nunca ter tratado isso um dia sequer. Sobrevivi.
Aí já é uma viagem dessas quase místicas, ou do acaso bem
acaso, que após meus pais não conseguirem ter filhos porque minha mãe perdia em
abortos espontâneos, uma gravidez acabou vingando, a gravidez da qual nasci. E um
dia eu iria dizer àquela mãe que não queria mais viver... os filhos são foda
algumas vezes nesse mundo dos humanos.
Por puro acaso cheguei aos cinquenta e cinco anos de
existência.
De acaso em acaso fui vivendo. Imaginem, depois de uma adolescência
dura num país miserável e violento, percebi após os trinta anos que a cor
branca de minha pele fez a diferença nas estatísticas, os jovens pretos e
pardos morriam em número muito acima da média nas estatísticas das mortes de
brasileiros. Os de pele branca já nasciam “com o cu pra lua” por causa da cor
da pele. Minha irmã negra sobreviveu, mas comeu o pão que o diabo amassou. Nunca
saberei o que uma pessoa preta sofre por causa da cor da pele.
Foi por acaso que escolhi o Banco do Brasil e não a CET ao
passar nos dois concursos ao mesmo tempo no início dos anos noventa. O fato de
ter sido bancário por dois anos no Unibanco e o fato de a jornada de trabalho ser
de seis horas fizeram toda a diferença. Eu me lembro que odiava trabalhar, trabalho
para mim era a lembrança de humilhação e cansaço e falta de tempo para fazer o
que eu gostaria de fazer. Voltei à categoria por acaso.
Foi por acaso que aconteceu tanta coisa na minha existência
que ficaria aqui, de vereda em vereda, avaliando os caminhos que trilhei e fui
sobrevivendo.
Por puro acaso cheguei aos cinquenta e cinco anos de existência
Foi por acaso que virei sindicalista, foi por acaso que
escolhi fazer Letras após um amigo do Banco do Brasil me convidar para assistir
aulas de ouvinte na USP. No entanto, foi com muito esforço que estudei pra
passar na Fuvest. E foi com escolhas difíceis que priorizei a representação sindical
em prejuízo do curso de Letras.
Foi por acaso que entrei numa faculdade de Educação Física, me
apaixonei pelo curso e não pude terminar porque não tinha dinheiro para pagar a
mensalidade. Uma das maiores tristezas da vida. Nunca me esqueci das aulas de
anatomia, biologia, da turma e do contexto que me levou à faculdade.
Foi por acaso que vivi amores, esses acasos, os do coração,
são os melhores acasos da vida humana. Foi por acaso que me tornei pai. Foi por
acaso que me humanizei e a fúria diminuiu.
Foi por acaso que viajei e fiz as melhores aventuras de
minha vida. Sempre o acaso colocou uma vereda que me levava à natureza, ao
rapel, à cachoeiras, cavernas, ao paraquedismo, aos acampamentos e regiões de mato
– que adoro -, às praias e biomas diversos.
Por puro acaso cheguei aos cinquenta e cinco anos de
existência
Foi por acaso que conheci a Itália e a Espanha. Foi por puro
acaso que me peguei nos Estados Unidos a trabalho. Foi por acaso o convite para
ir a Cuba.
Por acaso fiz a habilitação em espanhol. Me encantei com a
língua durante o Ciclo Básico. Entrei na USP pensando em fazer inglês. Aliás,
aprendi a falar inglês para o gasto porque queria ir embora do Brasil como
muitos jovens queriam na época.
Foi por acaso que me humanizei num dos momentos mais duros
da vida, tempos de fúria, tempos de revolta. Aí virei sindicalista e a formação
política me salvou, talvez tenha salvo a sequência de minha existência após os
trinta anos.
Por puro acaso cheguei aos cinquenta e cinco anos de existência.
Foi por acaso que entrei como cotista numa cooperativa e
comprei a tão sonhada casa própria, um apartamento em Osasco.
Foi por acaso que passei a vida ouvindo mais música
estrangeira do que música brasileira. Não posso me culpar por isso. Minha origem
foi diferente da origem da maioria dos sindicalistas que conheci. Enquanto muitos
cresceram em ambientes de militância, eu vivia num bairro miserável na adolescência
sem ninguém de esquerda na família.
Acasos e esforços... e agora?
Passei o dia do aniversário pensando na vida, no passado que
não me pertence, no futuro que não existe, só se eu acordar amanhã, e no presente,
que passei pensando na vida no dia 3 de abril, pensando nas veredas que
trilhei, nas que não pude trilhar, no que fiz e no que não fiz. Na lista do que
queria e não quero mais.
Lembrar de tantos acasos na minha existência não diminue meu esforço honesto e muitas vezes quase impossível para superar as merdas da sobrevivência
que quase nos fazem desistir de seguir. A partir dos acasos, tenho a clareza
que teve muito esforço de minha parte, muito. Não me diminuo. Sei o meu valor.
Sei do esforço de voltar à construção onde passei a manhã
quebrando concreto no primeiro dia de ajudante de encanador. Sei do esforço de
não desistir quando tinha que furar aquelas latas de palmito podre.
Sei do esforço de não desistir quando o cansaço me fazia
chorar e eu seguia. Fiz o que tinha que ser feito desde muito jovem. Passar em
vestibulares de faculdades privadas e públicas, concursos públicos, todo guaraná
em pó que tomei pra ficar acordado teve sua importância.
E sei que por ser branco tive vantagem em relação aos meus
pares da classe subalterna à qual pertencíamos, classe trabalhadora explorada. Minha
irmã sofreu as consequências da falta de oportunidade por ser negra. E as
mulheres sempre foram preteridas por serem mulheres, tive vantagem nisso
também. No Brasil, já é sorte nascer homem e branco por causa de nossa história
violenta e miserável. Absurdo isso! Sorte ou azar por ser homem ou mulher,
branco ou preto...
Me lembro da dona da escola de idiomas onde trabalhei me
dizer para não contratar mulher porque mulher só dava dor de cabeça, menstruava,
tinha enxaqueca, filhos, faltava muito etc. Dona Glória não era uma mulher
naquele contexto, era uma capitalista. E o gerente do BB que me fez aprender
serviço de funcionário sendo eu estagiário porque ele dizia que não iria
ensinar nada para a colega do banco porque ela era mulher... que safado fdp!
Eu não posso escrever tudo o que pensei durante o dia. Não posso
escrever muita coisa que penso, que sinto ultimamente, neste momento.
Nunca imaginei na minha vida, quando olho para trás, quando
me vejo antes dos vinte, entre os vinte e os trinta, e até depois disso, mesmo
tendo mudado como ser humano, nunca imaginei chegar aos 55 anos de idade.
Espero ter vivido dignamente a maior parte de minha
existência, de ter feito coisas boas e de não ter feito merdas que tenham
prejudicado pessoas. Se prejudiquei alguém, peço desculpas.
Sem pertencimento
Estou num momento de reflexão e de procura, algo muito
pessoal, de muita solidão. Mas sou politizado e a consciência me ajuda hoje a
seguir adiante. Tenho uma leitura pessimista do futuro da humanidade, mas não é
algo determinista, que imobilize a ponto de deixar as coisas como estão.
O ser humano é um animal fantástico e poderia e pode mudar
as coisas de uma hora para outra, se quiser e se realizar um conjunto de
coisas. Educação pode mudar as pessoas e as pessoas mudarem o mundo. Como diz Paulo
Freire, só se educa gente!
Minha mente está como um caleidoscópio de imagens e coisas. Eu
poderia fazer muita coisa pela experiência que adquiri nesta caminhada de 55
anos de acasos e esforços. Poderia, mas percebi que o melhor que fiz, por
acaso, foi ser sindicalista dos bancários. Me perdi depois disso.
Não sei se farei alguma coisa ainda. Mas estando por aqui,
estou cuidando dos meus. E não fazendo mal a ninguém, espero.
william