quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Diário e reflexões - Agosto



Refeição Cultural - Agosto

Osasco, 31 de agosto de 2023. Quinta-feira.


Introdução

Criei neste ano aqui no blog uma categoria de postagem de final de mês para registrar alguma coisa que tenha me chamado a atenção naquele período. Quando olhar para trás relendo o blog, terei a memória registrada sobre minhas impressões do mundo no qual existo.

Vai terminando o mês de agosto. Pensando sobre o que me chamou a atenção, ou que fatos marcaram a minha vida ou a vida do mundo onde habito, ou ainda decisões que eventualmente tenha tomado, posso deixar registrado o seguinte:

1. 

É no mês de agosto que os sabiás aqui da região onde moro começam a sinfonia de cantos nas madrugadas afora. É algo fantástico! Mesmo estando numa zona urbana, ouvimos durante semanas a cantoria dos sabiás. Some a esse espetáculo a beleza da floração dos ipês rosas, amarelos e brancos, que se juntam às patas-de-vaca para deixarem nosso ambiente humano mais bonito. Nossos agradecimentos aos sabiás, aos bem-te-vis e aos joões-de-barro de nossa região!

2. 

Fiz a romaria entre Uberlândia e Água Suja neste mês de agosto. Deu tudo certo. Completei o percurso de quase 80 Km em 25 horas, e de forma admirável não tive nenhuma bolha nos pés, mesmo sem usar esparadrapos como faço há anos. Foi a 1ª vez que usei um aparelho que marca distâncias (um Huawei Band 8). Minha última romaria havia sido feita em 2019, antes da pandemia mundial de Covid. Cheguei a Uberlândia com muitas dúvidas na minha capacidade de ainda fazer a romaria. Tive medo de não conseguir. Meu corpo já não é o mesmo de antes. No entanto, o treinamento que fiz semanas antes da caminhada e a concentração no que estava fazendo durante o percurso foram fundamentais para que meu corpo ainda respondesse aos meus comandos. Mais uma vez, contei com a assistência de meu cunhado na estrada: ter alguém acompanhando o romeiro é um diferencial positivo na realização do projeto. A romaria foi um fato intenso em minha vida neste mês de agosto. Clique aqui para ler a postagem sobre essa experiência de peregrino.

3.

Aceitei neste agosto o fato de que algumas lideranças atuais da direção não me queriam mais na Articulação Sindical, tendência política da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Dediquei a maior parte de minha vida à militância política no movimento sindical bancário. Ao olhar para trás e ver as lutas realizadas e as etapas vencidas pela categoria, sei que deixei a minha contribuição em momentos importantes e decisivos de nossa história de luta de classes. Quanto mais estudo e busco conhecimento, mais claro fica para mim por que as coisas são como são e hoje tenho uma ideia melhor dos porquês de meu apagamento e cancelamento por parte de algumas lideranças da corrente política que ajudei a construir e fortalecer por cerca de três décadas - a CUT fez 40 anos e a Articulação quase isso, sou cutista há uns 35 anos. Fiz um texto de reflexões sobre essa decisão (ler aqui), aliás, as postagens sob a categoria "Memórias" é praticamente um livro publicado. É um momento de luto para mim, apesar de não significar nada para a corrente e a política atual. Nunca consegui colocar nada pessoal nas minhas prioridades, as prioridades do meu viver sempre foram as causas sociais e políticas que o movimento dos trabalhadores tinha na agenda. É um luto. Mesmo vivendo um duro processo de cancelamento por quase 5 anos, reconhecer o fim de meu pertencimento à Articulação é um desafio pessoal. Vou sobreviver a isso e vou me reinventar.

4.

O que sou no mundo neste momento, neste agosto? Não tem sido fácil viver sem função social definida. Se é frescura ou cacoete ser "útil" no mundo, não sei, mas o aculturamento enfiado em meu cérebro cobra que alguém seja algo. Apesar de nunca ter exercido profissão nas graduações que fiz - Ciências Contábeis e Letras - até pouco tempo eu era um "trabalhador", vendia meu corpo - as horas de meu dia - e minha força de trabalho para sobreviver, era bancário, era dirigente político, e isso alimentava minha psique formada através das décadas de existência num canto do mundo chamado Brasil... De repente, entre 2018 e 2019, me peguei sem resposta ao ser questionado sobre o que andava fazendo, quem eu era e coisas do tipo. "E aí, tá onde? Que anda fazendo? O que você faz? Qual sua ocupação?". O que sou no mundo neste momento? Nem "aposentado" sou, haja vista que pagarei a previdência pública até a morte pelo andar da carruagem. Avaliei que talvez seja razoável preencher essa resposta com algo parecido à função de "escritor". Eu escrevo. Estudo e escrevo a partir das reflexões que faço sobre o que leio e estudo. Eu escrevo. Em tese, quem escreve pode ser considerado um "escritor". Não tenho nenhum livro publicado. Mas poderia dizer que existem alguns livros nas quase duas décadas de textos publicados em meus blogs. São mais de 5 mil postagens e mais de 2 milhões de acessos. Talvez eu possa me identificar como um escritor...

5.

Tive um agosto de poucas leituras. Este foi o primeiro mês do ano no qual não li um livro por inteiro. Estou lendo alguns livros, dentre os quais cito Os miseráveis - Victor Hugo, Os mortos vivos - Peter Straub, Cuba insurgente - Maria Leite, Vaga Música - Cecília Meireles, mas as leituras seguem em ritmo lento. Sendo assim, li até o momento 23 livros no ano. As leituras que fiz até agora me fizeram refletir muito sobre a vida e o mundo. Isso é bom. Calculo que diminuirei o ritmo de leitura de livros nos próximos meses. Decidi lançar novos desafios ao meu cérebro, já que tenho andado preocupado com a alta incidência de problemas mentais na população mundial. As doenças degenerativas do cérebro têm aumentado assustadoramente. O que posso fazer para postergar alguma doença ou falência de meu cérebro eu tento fazer. Atividade física aeróbica, atenção no que como com frequência, e estímulos ao cérebro. Vou fazer um experimento comigo mesmo: vou adicionar uma carga diária de estudos de línguas e linguagem para estimular meu cérebro, ver se recupero e melhoro minha memória, e ver se realizo um sonho juvenil de saber algumas línguas. Aliás, gostaria de saber a gramática de nossa língua, pois nunca soube. Escrevo desde jovem com qualidade razoável por causa daquilo que chamamos de gramática internalizada da língua, por ser leitor e escritor praticante. Em resumo, vou ler menos livros e estudar linguagem e línguas.

6.

O mês de agosto na política pode ter sido bom ou pode ter sido ruim, depende do ponto de vista do observador. Decidi já faz algumas semanas usar menos tempo de meu tempo ocioso com o acompanhamento da política nacional. Eu não sou mais dirigente político e não consegui entender isso nos últimos cinco anos. O que falo ou penso ou escrevo sobre política não tem relevância alguma, sou um nada nessa área da política e não quis entender isso. O mundo atual vive uma esquizofrenia total. Um sujeito ou uma sujeita qualquer abre um perfil em alguma rede social, faz alguma coisa que dê relevância a ele ou ela, passa a ter milhões de seguidores e vira influenciador(a), e sem saber tecnicamente nada de porra nenhuma passa a ser a pessoa que faz milhões de pessoas pensarem como ele ou ela. Enquanto isso, um cientista ou profissional com uma vida de dedicação e estudos a determinada área de saber não consegue ser visto nem por centenas de pessoas, não influencia ninguém e ainda pode ser cancelado se contrariar um mané desses com milhões de seguidores. Uma esquizofrenia total. Postar opinião sobre as merdas de decisões do novo ministro do STF indicado por Lula? Falar da eterna impunidade dos caras que destruíram o país e o povo? Comentar sobre uma pauta política bombando na semana? Que diferença faria um comentário meu sobre isso? Se eu tiver o cuidado necessário, me informo rapidamente sobre as coisas e foco meu tempo ocioso em estudar algo que definir como relevante a mim. Tenho que ter a sabedoria de me colocar no meu lugar no mundo neste momento da vida e da história.

7.

E assim, fecho o registro do mês de agosto. Neste último item coloco um desafio que seria bobo anos atrás, mas que agora é um desafio grande para mim. Me inscrevi na 98ª Corrida de São Silvestre. Depois de 10 participações, não corro a prova faz alguns anos. Neste momento, não tenho condições de correr 15 Km, não tenho condicionamento físico para isso. Tenho 4 meses para me preparar. Minha condição de saúde atual para correr um percurso desses é ruim. Ontem mesmo, fiz um trote de 5K e sempre fico com dores no dia seguinte, principalmente nas minhas estruturas musculares e esqueléticas. Vamos ver o que programo para esses meses. Enquanto estiver treinando e me preparando, estarei ajudando meu coração e meu sistema respiratório e circulatório. Meu cérebro também agradece por isso.

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O que é a vida?

A vida é oportunidade. Estar vivo é estar no mundo e estar no mundo é uma chance de poder aprender algo novo e criar e estar sob o imponderável a cada momento, a cada manhã que acordamos. Então, felizes ou tristes, com muitas ou poucas dificuldades, penso que temos que viver, e penso que temos que viver não de qualquer jeito, temos que viver com ética, com caráter, com solidariedade, com humanismo e com consciência social de que não somos nada sozinhos, somos seres sociais e precisamos das pessoas que estão no mundo como nós estamos. Somos natureza! Somos parte da natureza, não estamos acima dela em escala hierárquica. Nossa potência de fazer esbarra na impotência de não poder intervir em tudo. É isso que penso neste momento do meu viver.

William


Post scriptum: minha reflexão sobre julho pode ser lida aqui.


terça-feira, 29 de agosto de 2023

Os miseráveis - Victor Hugo (XI)



Refeição Cultural 

Osasco, 29 de agosto de 2023. Terça-feira fria. (Havia escrito calor infernal - invernal - quando comecei a postagem na quinta-feira passada...)


Vamos retomar a leitura do clássico de Victor Hugo. Desde a última leitura, caminhei dezenas de quilômetros pensando na vida e na sociedade humana. A leitura anterior do livro de Hugo (ler comentários aqui) me fez refletir muito.

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PRIMEIRA PARTE - FANTINE

LIVRO 3: NO ANO DE 1817

I. O ano de 1817

Muito interessante o panorama de época descrito pelo narrador.

Em um parágrafo de 4 páginas ficamos atualizados sobre a França no ano de 1817.

Tem até descrições irônicas, como esta a seguir:

"(...) Cuvier, um olho no Gênesis e outro na natureza, esforçava-se por agradar à reação carola, pondo os fósseis de acordo com os textos bíblicos e fazendo com que os mastodontes lisonjeassem Moisés..." (p. 159)

E o narrador termina o capítulo com um ensinamento histórico:

"Eis, ao acaso, o que confusamente acontecia no ano de 1817, hoje esquecido. A história negligencia quase todas essas particularidades, e não pode fazer de outro modo, ou seria invadida por um infinito delas. Esses detalhes, que chamamos erradamente de pequenos - não há pequenos fatos na humanidade, nem pequenas folhas na vegetação -, são úteis. É da fisionomia dos anos que se compõem a feição dos séculos." (p. 160)

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II. Duplo quarteto

Neste capítulo nos são apresentadas Fantine e suas amigas - Favourite, Dhalia e Zéphine -, e seus namorados: Tholomyès, Blachevelle, Listolier e Fameuil, respectivamente. Elas são operárias da costura.

"(...) Tinha o nome que agradou ao primeiro que a encontrou, pequenina, andando descalça na rua. Recebeu um nome, como recebia na fronte a água das nuvens quando chovia. Chamavam-na de pequena Fantine. Ninguém sabia mais nada sobre ela. Essa criatura viera assim ao mundo. Aos dez anos deixou a cidade e foi trabalhar na casa de uns sitiantes dos arredores. Aos quinze foi para Paris, 'em busca de fortuna'. Fantine era bela e conservou-se pura o máximo que pôde. Era uma linda moça loira e com belos dentes. Ouro e pérolas eram seu dote, mas seu ouro estava nos cabelos e suas pérolas na boca." (p. 162/163)

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III. Quatro a quatro

É muito interessante a técnica narrativa, é muito moderna. 

O narrador, entendo ser Victor Hugo, dialoga com os leitores no tempo presente, 1862, ou seja, 45 anos após os fatos da história de Fantine, de Jean Valjean e dos demais personagens, 1817. 

O narrador descreve ainda a beleza da jovem Fantine.

"Fantine era bela, sem ter muita consciência disso (...) Aquela filha das sombras possuía nobreza de raça..." (p. 167)

É dito que Fantine é a personificação da alegria e do pudor. 

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IV. Tholomyès está tão alegre que canta uma canção espanhola 

O narrador nos conta a história como se estivesse na nossa presença numa narrativa oral... doido isso!

"Depois do almoço, os quatro casais foram ver, no que então se chamava canteiro do rei, uma planta havia pouco chegada da Índia, cujo nome nos foge agora, e que, naquela ocasião, atraía Paris inteira a Saint-Cloud..." (p. 169)

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V. No restaurante Bombarda

Neste capítulo, um chefe de polícia relata ao rei que a gente pobre dos arredores de Paris é "gente inofensiva", que não é perigosa, e que as pessoas até diminuíram de tamanho e corpo em 50 anos. 

"Os chefes de polícia de Paris não acreditavam ser possível um gato transformar-se em leão; todavia, acontece; esse é o milagre do povo de Paris..." (p. 172)

O narrador alerta, entretanto, que o povo parisiense não é um gatinho não. Tem encarnado a "Liberdade" em si, é um povo "indolente" e de admirável fúria quando visa a glória.

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VI. Capítulo em que todos se adoram

Neste capítulo ameno, uma das personagens - Favourite - cita o sentimento de spleen dos ingleses, ao falar de certa chatice das coisas, das dificuldades. 

Spleen é uma palavra inglesa usada para o sentimento de melancolia e pessimismo.

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VII. Sabedoria de Tholomyès

O personagem Tholomyès é o destaque no capítulo. Faz discursos enaltecendo o prazer e a vida.

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VIII. Morte de um cavalo

Em um certo momento do capítulo, de devaneios dos quatro casais, o narrador nos descreve o esgotamento e morte de uma égua que puxava uma carroça pesada.

"(...) Era uma égua de Beauce, magra, velha, digna de um équarrisseur*, puxando uma charrete muito pesada. Chegando em frente ao Bombarda, o animal, cansado e extenuado, recusou-se a ir mais adiante. Esse incidente fez juntar muita gente. Mal o charreteiro, zangado e praguejando, teve tempo de dizer, com a energia conveniente, a palavra sacramental arre! reforçada por uma implacável chicotada, o animal tombou para não mais se erguer." (p. 181)

Cena triste e que poucos se importaram. Só Fantine se sensibilizou.

Eu me lembrei na hora do personagem de Tolstói, Kholstomer... que história triste de um cavalo!

*A palavra me lembrou mais ainda o personagem de Tolstói: équarrisseur é uma espécie de açougueiro que abate animais impróprios ao consumo para tirar-lhes o que ainda é aproveitável. 

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IX. Alegre fim da alegria

No capítulo final deste livro 3, os quatro rapazes namorados das garotas, simplesmente inventam uma surpresa e abandonam as quatro, deixando uma carta dizendo que foi bom enquanto durou o namoro deles. Agora eles teriam que voltar para suas famílias abastadas para serem figuras importantes na sociedade francesa...

Só neste momento nós leitores ficamos sabendo que Fantine tinham em casa uma criança...

"Uma hora depois, porém, ao entrar em seu quarto, chorou. Como dissemos, este era seu primeiro amor, dera-se a Tholomyès como a um marido, e a pobre moça tinha uma criança." (p. 185)

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Comentário

Gastei quase uma semana para ler essa parte de Os miseráveis. Estou um pouco travado nas leituras. É meu psicológico nesses dias.

Aliás, este mês de agosto é o primeiro mês do ano no qual não li nenhum livro por completo. 

Andei muito, fiz uma romaria de uns 80 Km, tive um pouco de contato com algumas formas de cultura como, por exemplo, o estudo de línguas e linguagem, mas não li obra literária completa.

Até cheguei a começar uma peça de Shakespeare da coletânea de mais de vinte peças que tenho dele, mas não dei sequência.

É isso, seguimos as leituras, mesmo que lentamente, mas seguimos.

William


domingo, 27 de agosto de 2023

Diário e reflexões (27/08/23)



Refeição Cultural

Osasco, 27 de abril de 2023. Domingo.


Comecei a escrever este texto de reflexões no domingo passado, quando caminhei sob um sol prazeroso por ruas repletas de ipês amarelos, brancos e rosas, patas-de-vaca e demais flores da época. Pensava na minha vida, no meu viver. Parei o texto porque não quis escrever mais. Hoje, o domingo está frio, nublado. Vou tentar retomar a reflexão e se vou conseguir ir até a conclusão, eu não sei.

Desde que iniciei longas caminhadas, tenho andado muito reflexivo. Fiz a romaria de quase 80 Km dias atrás, deu tudo certo. Durante a romaria, acabei focando só na superação do percurso e no atingimento daquela meta. O pensamento foi todo focado em administrar um corpo exposto a uma carga enorme de esforço. Um corpo que já não é mais o mesmo... a natureza! Não pude digerir as coisas que vão dentro de mim. 

Depois da romaria, sigo pensando e sei que preciso de mudanças. Devo viver e pra isso preciso de mudanças. 

Só eu mesmo para definir a minha existência. Ou seja, é verdade que não temos controle e domínio de absolutamente nada na vida, nada. Isso está dado. Um tiro, um infarto, uma doença degenerativa, um tombo, um vírus invisível... e pronto, já éramos. Mas a atitude de seguir todo dia e a forma de seguir todo dia é somente minha e de mais ninguém.

Para sobreviver nesses tempos, será necessário retomar os desafios estabelecidos para o meu cérebro, a essência do que sou, meu eu. Sou materialista. Não tenho mais visão mágica da existência do mundo e dos seres vivos que o habitam. O corpo que me carrega é natureza, é frágil, é instante. Se minha personalidade se perder com algum tipo de falência das funções de meu cérebro, já não serei eu mesmo andando por aí. E todas as pessoas com problemas de saúde devem ser acolhidas e tratadas com respeito, é o que nós humanistas defendemos.

Após muitas reflexões posteriores à vida que tive como jovem e depois adulto vendendo minha força de trabalho e depois como dirigente da classe trabalhadora, cheguei à conclusão que tive um cérebro flexível e muito adaptado às suas funções de manutenção da vida do organismo que coordena e governa. Brinco que sou um homem de sorte, e imagino que meu cérebro esteja por trás de um pouco dessa "sorte" por ter chegado até aqui.

Já faz muito tempo que minha vida mudou. De forma satisfatória ou não, passei os últimos cinco anos tentando manter vínculos com minha vida passada, com a condição que me fez ser o que sou. Me esforcei por estar disponível a contribuir com o conhecimento que acumulei nas diversas funções que exerci em nome da classe trabalhadora. Qualquer pessoa honesta intelectualmente seria testemunha que mantive um pertencimento de lealdade canina com o meio político no qual passei décadas de minha vida: a Articulação Sindical da CUT. Sempre estive disponível para o que precisassem de mim. Tive alguma utilidade até o início de dezembro de 2021, dali em diante, não mais.

Custei a entender que não querem mais nada de mim, nada. Durante todo o tempo no qual contribuía com a formação da militância, explicava para as pessoas que elas tinham que aprender a ler os contextos, as mensagens nas entrelinhas, ler o que não estava escrito. Política é assim. Por pertencimento e talvez até por amor, eu me negava a praticar a leitura de mundo que eu mesmo ensinava à militância política.

Como nunca participei de nenhum fórum que pautasse a minha saída da corrente política à qual passei a maior parte de minha vida, nunca soube por que motivo fui relegado, cancelado, proscrito da terra onde me criei politicamente pelas lideranças atuais da corrente. Segui à disposição... em vão.

Pelas circunstâncias, decido por conta própria a partir de hoje não pertencer mais formalmente à Articulação Sindical, corrente política da Central Única dos Trabalhadores. Isso não tem reflexo algum em nada. Minha decisão é somente um ato de amor-próprio, de respeito comigo mesmo. É uma espécie de morte, e com a morte vem o luto e com o luto vem a vida, que segue para quem fica.

Quanto ao Partido dos Trabalhadores, vou seguir filiado por enquanto, admiro muito a história do partido e de inumeráveis lideranças e militantes comuns que estão por aí em cada canto do país.

Como disse a mim mesmo a vida toda, não me vejo em nenhuma outra força política, meu sangue vermelho é todo composto dos princípios, concepções e práticas da Central Única dos Trabalhadores e do Partido dos Trabalhadores.

Tenho que inventar no meu mundo atomizado um novo existir. Não tenho que dar palpite ou me posicionar sobre a vida política do país como fazia quando era representante de classe. Não é fácil perder o cacoete. Quando vê, a gente quer falar disso ou daquilo...

Tenho que arrumar novos desafios para o meu cérebro seguir ativo. Fiz isso algumas vezes na vida. 

Nem era isso ou dessa forma que iria se desenvolver o texto que comecei domingo passado. Mas entendo que essa morte e esse luto precisam começar logo. Senão é o meu corpo que vai e ainda tem gente que precisa de mim.

William


sábado, 26 de agosto de 2023

Vendo filmes (VI)


 

Refeição Cultural

FILMES

Chocolate (2000) - Filme dirigido por Lasse Hallström e estrelado por Juliette Binoche, Johnny Depp e demais atores e atrizes. Vianne Rocher (Binoche) e sua filha Anouk (Victoire Thivisol) de 6 anos chegam a uma pequena vila francesa, Lansquenet-sous-Tannes (ficcional), vila conservadora e controlada com mãos de ferro pelo prefeito local, um conde, e decidem abrir uma chocolateria. O prefeito não gosta da ideia por achar que aquilo era uma tentação para as pessoas e diz que Vianne teria que fechar o estabelecimento e desistir, inclusive porque eles estão na quaresma. A partir daí a estória se desenvolve.

COMENTÁRIO: gostei do filme. A começar pela participação de Juliette Binoche, encantadora como sempre. Ela é uma espécie de cigana com ares de magia e seus chocolates mudam a vida de todas as pessoas do vilarejo. Ela é movida pelo vento do norte e isso parece uma sina de família, sua mãe também teve uma vida parecida. Mãe e filha não param em lugar nenhum, e de repente vão embora sem fixar residência. A estória aborda questões comuns da sociedade como preconceito, religião dominadora, violência contra mulheres e xenofobia. Minha esposa ficou muito tempo querendo que eu visse o filme. Finalmente vi. Gostei.

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Os doze macacos (1995) - Filme dirigido por Terry Gilliam e estrelado por Bruce Willis, Madeleine Stowe e Brad Pitt. Num cenário distópico do mundo em 2035, a raça humana foi quase toda extinta por causa de uma epidemia de vírus entre 1996/1997. Os humanos sobreviventes vivem no mundo subterrâneo e os animais voltaram a dominar a natureza lá em cima. James Cole (Willis) é forçado a voltar ao passado - 1995 - para tentar descobrir informações sobre um grupo chamado "Os doze macacos" e ver se com isso consegue algo que possa ajudar a humanidade no presente.

COMENTÁRIO: gostei do filme. Tinha visto o filme muito tempo atrás. Vê-lo após a pandemia mundial de Covid-19 dá outro sentido à estória. Apesar de não acreditar que um dia a espécie humana possa desenvolver alguma tecnologia de viagem no tempo (o tempo é uma percepção resultante da abstração humana). Sobre o fim do mundo como o conhecemos hoje, vejo probabilidades reais de isso acontecer, já que estamos inviabilizando a vida no planeta por causa da destruição descontrolada dos biomas da Terra. O ser humano é o maior vírus que o planeta já produziu. Bom filme! A interpretação de Brad Pitt como maluco é um atrativo a mais no filme.

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Papa Hemingway in Cuba (2016) - Filme com direção de Bob Yari e estrelado por Adrian Sparks (Hemingway) e Giovanni Ribisi no papel do jornalista norte-americano Denne Petitclerc- no filme o personagem Ed Myers - que tem em Hemingway uma referência de vida e de escritor e jornalista.

COMENTÁRIO: Assistir ao filme depois de estar em Cuba por duas semanas e depois de conhecer a finca onde Hemingway viveu por muitos anos em Havana foi um momento de nostalgia. Tenho também um grande apreço pela obra de Hemingway. Já li 5 livros do autor, incluindo os clássicos Por quem os sinos dobram (1940) e O velho e o mar (1952). O filme foi rodado em Havana e nós estivemos no Floridita, lugar muito frequentado pelo escritor. O filme reproduz com qualidade o drama da depressão e do alcoolismo de Hemingway, problemas comuns em nossa sociedade humana. O enredo também coloca os espectadores no cenário de Cuba no momento central de embate entre o regime ditatorial de Batista, apoiado pelos Estados Unidos, e os revolucionários cubanos, liderados por Fidel Castro, entre os anos de 1956 e 1959. Um filme para ver e rever e uma história que nos convida a conhecer a obra de Hemingway e a história de Cuba, antes e depois da revolução libertária de 1959. Até pouco tempo atrás, eu não tinha a clareza de que Hemingway havia vivido em Cuba justamente durante esse período da revolução e libertação da Ilha em relação ao novo colonialismo, o dos Estados Unidos.

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- Bacurau (2019) - Filme dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, com Sônia Braga e um grupo excelente de atores brasileiros e alguns atores estrangeiros. Bacurau é um vilarejo localizado em algum lugar do sertão brasileiro, lugar abandonado pelo governo local e que de repente passa a nem constar dos mapas de localização virtual. Logo após o enterro de uma liderança local, Dona Carmelita, coisas estranhas começam a acontecer: o caminhão que traz água potável é alvejado por tiros, estrangeiros começam a circular pelos arredores do vilarejo e drones sobrevoam a região. Assim que moradores começam a ser assassinados de forma brutal, a população percebe que está sendo atacada e unidos organizam a defesa de si próprios.

COMENTÁRIO: gostei muito do filme quando o vi no cinema. Ao rever o filme em casa, anos depois, sigo gostando de Bacurau. A estória nos envolve e é impossível não torcer pela população local contra os invasores estrangeiros. O enredo tem um quê de romances de José J. Veiga, um dos maiores escritores brasileiros de contos fantásticos: os enredos de Veiga e de Bacurau têm a seguinte estratégia narrativa: de repente, tudo muda numa comunidade pacata e tradicional por causa de acontecimentos externos. Bom filme!

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É isso!

William


Post Scriptum: aqui está o comentário anterior sobre filmes que vi.


sábado, 19 de agosto de 2023

54. Os mortos vivos - Peter Straub (1979)



Refeição Cultural - Cem clássicos 


(leitura em andamento)

Uma das lembranças que tenho da leitura deste livro de suspense e terror é que eu sentia medo ao lê-lo. Me lembro do medo. 

Este leitor que vos fala tinha na época da leitura menos de 17 anos e era uma pessoa de seu tempo e ambiente social (anos 80), tinha crença religiosa.

Ainda morava em Uberlândia e a edição que li foi a de meu primo Jorge Luiz, que me emprestava livros de ficção e romances. Era uma edição com capa dura do Círculo do Livro, se não me falha a memória.

Décadas depois, quis ter o livro em casa. Comprei pela internet a edição malconservada que tenho. Quase joguei ela fora quando a recebi. Acabei colocando ela num canto.

Semanas atrás, acabei pegando o velho livro e comecei a ler lentamente a estória, antes de dormir, na maioria das vezes. Já li 200 páginas e agora não paro mais, vou até o fim da ficção de Peter Straub.

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OS MORTOS VIVOS

A impressão que tive até agora, ao ler 2/5 da obra, é que o enredo se desenvolve muito lentamente, ao estilo dos antigos romances. Foram duzentas páginas lidas e me parece que os acontecimentos principais talvez só irão acontecer lá no final, daqui mais duzentas e tantas páginas.

Na cena inicial do prólogo - "Seguindo para o sul" -, um personagem está com uma criança no carro. Tudo indica que ele sequestrou a criança, uma garota. O leitor já viu a criança ser amarrada por Donald Wanderley. Ele até chegou próximo a ela com uma faca, enquanto ela dormia. É assim que temos o contato inicial com a estória. A cena final do prólogo é um diálogo estranho entre a garota e o sequestrador. O leitor vai agora voltar ao começo da estória... o começo foi in media res, como se diz na literatura, no meio da ação.

O prólogo se estendeu por trinta páginas. Agora o leitor chega à Parte Um - "Depois da festa de Jaffrey". Os eventos se passam numa cidade ficcional chamada Milburn. Conhecemos a Sociedade Chowder, cujos componentes são 4 homens idosos - Frederick Hawtorne (Ricky), Sears James, John Jaffrey e Lewis Benedikt - um quinto membro morreu um ano antes de forma estranha - Edward Wanderley -, durante uma festa na casa de Jaffrey.

A Parte Dois se chama "A vingança do Dr. Rabbitfoot". Um dos 4 amigos - o Dr. John Jaffrey - acaba por morrer de forma estranha também. Chega à cidade Donald Wanderley, sobrinho do 5º membro da Sociedade Chowder - Edward Wanderley -, falecido um ano antes numa festa na casa de Jaffrey. Donald chegou à cidade à convite do grupo.

É neste momento da estória em que estou. Minha curiosidade ao reler este livro é tentar voltar no tempo e imaginar como eu era, aquele leitor adolescente que leu o livro em meados dos anos oitenta.

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Me lembrei dos dois livros de terror que reli recentemente do norte-americano Jay Anson: Horror em Amityville, de 1977, baseado num caso real de evento sobrenatural (ler comentário aqui) e 666 O limiar do inferno, de 1981 (comentário aqui). Este último teve um enredo parecido com o do livro de Peter Straub, dezenas de páginas preparativas para um desfecho final.

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Por enquanto é isso. Volto à postagem para comentar o restante da leitura de Os mortos vivos, de Peter Straub.

(leitura em andamento)

Terminei a leitura do livro em novembro de 2023. Ler comentário final aqui.

William


quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Romaria a Água Suja (2023)



Refeição Cultural 

Uberlândia, Minas Gerais, Brasil. 


"Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás,
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar.
" (Antonio Machado)


Quando peguei a estrada na sexta-feira 11, por volta de duas horas da tarde, imaginei que passaria horas pensando na vida e no mundo.

Quando digo que cada romaria é uma experiência única, não é apenas por dizer uma frase de efeito. Cada experiência é única mesmo. 

Achava que faria longas reflexões sobre a vida e o mundo no qual existimos como parte integrante da natureza porque nas caminhadas preparatórias que fiz foi assim que ocorreu: pensei muito sobre muita coisa.

Na estrada (BR 365), naquele momento do início da caminhada, com aquele calor de fim dos tempos (e de agosto), senti que minha concentração em mim mesmo teria que ser total. Dominar meu corpo era a única meta até o fim. As elucubrações sobre a vida ficariam para depois.


E assim ocorreu. Ao longo de 70 Km foquei em cada passo dado, cada mensagem interna de meu corpo, cada mudança de piso, relevo ou luminosidade do ambiente, e fui indo, indo, indo. Por um instante, vi o efeito da displicência, e ela quase me tirou do caminho... (metáforas da vida) 

Sendo conhecedor antigo do trajeto entre Uberlândia e Água Suja, e sabendo os pontos de referência para possíveis paradas para descanso, fiz cada trecho ser uma etapa vencida da caminhada. Novamente, podemos pensar numa metáfora da vida com isso, etapas a superar, isso é o viver.


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NINGUÉM ANDA O MESMO PERCURSO DUAS VEZES...

Ninguém entra duas vezes no mesmo rio (como nos ensinou Heráclito), ou ninguém anda o mesmo percurso duas vezes... O rio muda, a estrada muda e nós mudamos.

Já faço essa caminhada entre Uberlândia e Água Suja desde os anos oitenta, desde adolescente. Os motivos e as condições nas quais fiz a romaria já foram os mais diversos. Já fiz a romaria sendo muito religioso e a caminhada é um tipo de experiência.


Hoje faço a romaria com outros propósitos como, por exemplo, viver um momento de introspecção intensa. E a experiência também é algo para muito além da razão, pois não se anda 70 Km em um dia só de forma racional, não se anda. O componente emocional e psicológico é fundamental para uma pessoa andar dezenas de quilômetros.

O rio Araguari continua lindo, mas os relevos mudaram ao longo do caminho. Continua-se vendo grandes fazendas, mundo agro pop, muita terra de poucos donos (Brasil injusto e desigual). Quilômetros de desertos verdes, eucaliptais que não acabam nunca. Poucos bichos, pouca diversidade.

Só as sombras são parecidas...

Os caminhantes nunca são os mesmos. A caminhada nunca é igual, nem pra quem está acostumado. O rio e os caminhos nunca são os mesmos, os caminhantes também.

Este caminhante que reflete sobre a experiência é outro, tudo foi diferente das vezes anteriores. A começar que nunca tive tanto receio de não completar o percurso, receio de passar mal, medo de descobrir que não poderia mais fazer o que estava acostumado a fazer. A natureza está em mudança acelerada. Sou natureza.

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OS PREPARATIVOS PARA O CAMINHO

Cheguei a Uberlândia determinado a fazer a romaria até a cidade de Água Suja. Nas semanas anteriores, administrei meus receios e medos de não ter condições de percorrer todo o caminho. 

Na preparação física e psicológica, fiz umas caminhadas progressivas: andei 10 Km, depois andei 20 Km, depois 30 Km e, por fim, na semana anterior, andei 48 Km, o que seria equivalente a chegar até a Antena no caminho de Água Suja. Na última caminhada, decidi qual tênis seria usado.

Trabalhei mentalmente a hipótese de só conseguir chegar até a Antena e ter que voltar de lá. Uma de minhas preocupações era ter queda de pressão e algum apagão por desidratação ou cansaço extremo. Ou até o quadril com desgaste me impedir de seguir adiante.

Um homem na estrada...

Uma peregrinação como essa é uma boa metáfora da vida: é preciso inteligência para ler a realidade e lidar com ela. 

Antes de chegar a Uberlândia, havia planejado sair bem cedo, umas 9h30 da manhã, para andar o dia todo de sol escaldante estando descansado. Já que a caminhada leva cerca de 24 horas, no meu caso atual, achava melhor lidar com o calor intenso ainda descansado. É inevitável ter que andar um dia inteiro de sol e uma noite inteira.

No entanto, a realidade material e objetiva se impõe em nossas vidas. Treinei em SP andar sob um calor de 30º... só que bastou andar menos de 2 Km ao meio-dia de Uberlândia no dia anterior à romaria para perceber que seria loucura me expor ao sol ininterrupto do início da manhã ao fim do dia. O calor de 30º de lá é muito maior que o de onde moro. Imaginem na estrada... O corpo me avisou sobre isso.

Após definir o novo horário de saída - a vida é assim, traçamos objetivos, fazemos planejamentos, definimos estratégias e táticas - tinha outra questão a resolver: se iria sozinho ou se teria a assistência de alguém para me acompanhar de carro ao longo do trajeto e para voltar mais rápido quando chegasse a Água Suja.

Paisagens do caminho... ipês.

Até 2016, nunca tive assistência nas romarias. Saía sozinho e após percorrer o percurso e chegar à cidade, ainda tinha algumas horas pela frente para conseguir voltar a Uberlândia: esperar horas por um ônibus na rodoviária, achar uma van que estivesse oferecendo serviço etc. Numa romaria dessa a gente fica acordado 30 horas. Ir com alguém dando assistência na estrada é um privilégio, pois além de diminuir o peso da mochila, chega-se a cidade e volta para casa mais rápido.

Por saber das dificuldades pessoais de meu cunhado e irmã, que estão lidando com suas cronicidades, estava sem jeito para perguntar se meu cunhado poderia me dar uma assistência. Nas últimas romarias, ele nos fez essa gentileza, digo no plural porque ele já deu assistência até para meu filho e o amigo dele. Imagino que deva ser muito cansativo ficar num carro por 24 horas andando e parando, é cansaço pra todo mundo, pra quem anda, pra quem dá assistência. Mais uma vez, meu cunhado e minha irmã se colocaram à disposição e eu sou muito grato por isso. O receio de fazer o caminho diminuiu muito ao saber que seria acompanhado.

Agora era fazer o caminho e atingir meu objetivo. Na noite anterior à romaria, fiz um texto reflexivo sobre a experiência do caminho, anseios e expectativas (ler aqui).

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O CAMINHO

Neste ano, estava com um marcador de distâncias no pulso. Nunca tive muito entusiasmo por essas modas tecnológicas. Pra se ter uma ideia de como evito muitos aparatos tecnológicos, ainda levo nas romarias meu Aikman de 1987 e algumas fitas cassete. 

No entanto, ganhei da esposa um Huawei Band 8 e o trequinho é bem interessante. Na romaria deste ano, o aparelho contribuiu muito para minhas etapas a superar e no efeito psicológico. 

Nas etapas mais difíceis, cada vibração em meu pulso era um Km superado... gostei do aparelho.

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14,01 Km

Saí do Trevo para Araxá e andei até a ponte do Rio Araguari. Meus pais me levaram até o trevo. Que calor absurdo! A concentração na pisada foi total. Tinha que estabilizar meus pés dentro do tênis e evitar qualquer pisada forte com o pé cozido. Sabia que se não machucasse os pés nas primeiras horas, a tendência era ter pés sãos para a noite toda.



Na mochila levei muita água para não desidratar. Marquei de encontrar meu cunhado lá no Rio Araguari. Deu certo. Andei 3h15 e parei uns 30 minutos. Comi um pão com carne. Coloquei um esparadrapo no dedinho do pé, pois a costura da meia estava incomodando. Saí para a próxima etapa. Iria escurecer logo e queria andar bem na subida do rio.

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9,86 Km

Saindo do Rio Araguari, o romeiro enfrenta um longo percurso em subida na BR 365. Uns quilômetros adiante tem o Trevo de Miranda e 7,8 Km depois um antigo posto de gasolina desativado, que se chamava Posto Triângulo. Ali os romeiros param um pouco, encontram as assistências etc.


Fiz esse percurso em 2h36. O tempo que era marcado no relógio do pulso ao longo da caminhada acabou não sendo o tempo só andando porque com o cansaço a gente esquece de dar pausa quando para para urinar, para pegar uma sopa, um pão etc. Neste dia, tinha muita gente no acostamento dando água e outras coisas aos romeiros.

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8,81 Km

Saí do antigo Posto Triângulo por volta de 22h para andar até o Posto N. Sra. da Guia, este em funcionamento. Até lá eu já teria andado cerca de 36 Km pelas distâncias marcadas num antigo panfleto que carrego comigo.

Pelo relógio da Huawei, quase todas as distâncias tiveram alguma diferença em relação ao panfleto antigo. Andei por 2h10 até o ponto de referência que mentalizei. Meus quilômetros em pisada de romeiro foram entre 13' e 15' conforme o trecho.

A noite de 11 para 12 de agosto foi de breu total. A lua cheia havia sido na semana anterior. Sem um farol de carro indo ou vindo e sem uma luz de lanterna o peregrino não consegue visualizar onde pisa. É tenso! Imaginem só, basta somar o fator pisar no breu com o fator cansaço e talvez com o fator sono... resultado: risco.

DISPLICÊNCIA - O caminho da gente pode ser interrompido por um vacilo, um instante que defina uma vida. Na estrada quase não havia sinal da operadora do meu celular. Foi a 1ª vez que levei celular na romaria por causa dos receios que falei de minha condição atual. Então, andando naquele breu total, num trecho alto da estrada, o celular vibra várias vezes. Por impulso, tiro o celular do bolso e tento ver o que era. Fiz isso andando... em poucos passos, saí do acostamento e meu pé esquerdo caiu na valeta de uns 40 cm ou mais de profundidade... por pouco eu não me quebro todo! A caminhada poderia ter terminado ali. Sou um homem de sorte... I'm Lucky Man... valeu a lição!

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11,72 Km

Saí do Posto N. Sra. da Guia para andar até a barraca de ajuda aos romeiros na Antena pouco antes das duas horas da manhã. Não estava com sono. Fui tomando bastante café no caminho. Meus pés estavam bem. A noite estava incrivelmente quente.

Eu e o cunhado

Este foi o único trecho no qual o odômetro do Huawei marcou mais que a distância que estava registrada no panfleto. Quase um quilômetro a mais. No entanto, o fator psicológico de o relógio vibrar no pulso a cada 1 Km foi muito estimulante. Pensava ao andar: "daqui a pouco andei um terço", "daqui a pouco andei a metade", "faltam só x quilômetros". E o som rolando no meu toca-fita...

Andei 3 horas. Durante o percurso, entrei em algumas barracas de ajuda e comi alguma coisa, sentei uns minutos. 

Barraca da Antena.

Cheguei a Antena melhor do que imaginava. Que bom! Como havia muita gente e não tinha lugar nas mesas, tomei minha sopa em pé mesmo.

Para não acontecer de ficar mal durante o percurso seguinte, decidi ficar um tempo na Antena. Pensei em cochilar uma hora. Não deu certo, não cochilei mais que vinte minutos. Saí umas 7 horas da manhã sem tomar café direito porque o estômago estava embrulhando com qualquer coisa. Comi meio pão.

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A alvorada.

9,86 Km

O trecho até o Posto Santa Fé foi o mais surpreendente desta romaria. Saí 7 horas da manhã pensando em andar mais de 3 horas porque imaginava andar mais de 12 Km e, no entanto, tive a grata surpresa de numa das curvas da estrada ver o posto. Achei que era miragem (risos).

Deu menos de 10 Km pelo odômetro no pulso e eu estava relativamente inteiro. Andei por 2h23 e o calor estava ficando insuportável.

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8,77 Km

E quem disse que seria fácil?

Deste ponto em diante, após andar uns 55 Km, é que começa a etapa mais difícil da romaria entre Uberlândia e Água Suja, é aquele momento do sol escaldante, corpo extenuado, e cada quilômetro andado é mais difícil que vários andados anteriormente.

Antigamente, andávamos 6 Km até o Atalho no eucaliptal. Hoje ele não existe mais. O proprietário proibiu os romeiros de atravessarem por ali. Agora é pela estrada mesmo que se vai. Deu quase 9 Km. Gente, como foi difícil! Foi um esforço tremendo manter o foco para não ficar parando a cada Km.

Os peregrinos andam andam e andam e tudo o que veem é plantação de florestas de eucaliptos. Os pássaros que ouvi cantarem foram os pássaros-pretos. Pouca diversidade ali.

Grato pela galinhada, mas não
consegui comer... estômago ruim.

Cheguei na barraca de ajuda que fizeram para os romeiros na entrada da estrada de terra para a cidade. Estava bem cansado. Não consegui engolir a comida que peguei: uma tradicional galinhada mineira. Nossa, estava uma delícia, só experimentei! Tive que descansar uma meia hora e decidir sair sem comer. Apostei nas barras de cereais que tinha comigo pra não faltar carboidratos no fim.

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6,67 Km

O percurso final é sempre uma etapa à parte da romaria. É um misto de dor e alegria que se vive durante os quilômetros finais. O peregrino deve estar com o corpo repleto de hormônios por ter andado até ali e sua chegada à cidade e à igreja tem todo um componente psicológico.

O terrão vermelho do último trecho, misturado ao sol e ao suor, dão a imagem final ao romeiro ao chegar à cidade. 

Peregrinos chegam à Basílica de
N. Sra. da Abadia de Água Suja.

Depois daquela imensa descida e subida de terra e cascalho, não atravessamos mais o pasto que tinha antes da cidade. Os romeiros agora devem seguir pelas ruas de terra até entrar em Água Suja.

Mentalizei muito nesta etapa final. Administrei a energia vital já que não estava conseguindo comer. Fui bebendo líquidos e mastigando alguma coisinha.

Cheguei umas 15 horas. Completei o caminho. Pelo odômetro do Huawei, andei 70 Km. As maiores paradas foram de 1h30 na Antena e 1h no Santa Fé. Saí de Uberlândia, do trevo para Araxá às 14h20 e cheguei às 15h20. (o vídeo sobre o caminho pode ser visto aqui)

Incrível eu não ter tido nenhuma bolha nos pés. Pela primeira vez em décadas eu sequer fiz o preparo de meus pés com esparadrapos. Nenhuma bolha! Pisei por 70 Km como se fora uma pluma. Como se fora carregado por anjos ou por Deus. Nem vermelhos meus pés ficaram. 

Completei o Caminho.

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SE FAZ O CAMINHO AO ANDAR

A estrofe do poeta espanhol Antonio Machado que abre esta postagem é muito profunda para mim. É de uma simbologia incrível! Quase vejo a minha vida nela. 

Antes de iniciar o caminho, pensei comigo que iria refletir muito sobre a vida porque vinha fazendo isso antes de pegar a estrada para Água Suja. Escrevi que tinha umas coisas pra digerir e queimar dentro de mim.

Entretanto, a realidade do caminho se impôs e tudo o que fiz foi concentrar minha atenção em mim mesmo, dialogar com o meu corpo e fazer com que ele me levasse até o objetivo final. Consegui.

As coisas a digerir e queimar dentro de mim continuam aqui dentro do meu ser, do caminhante, do peregrino. Mas tudo bem. A vida é como uma romaria dessas que fiz. Vamos indo passo a passo até chegar no destino que mentalizamos.

E se não chegarmos, tudo bem. Tudo bem. Cada pessoa chega até onde dá. A vida também é assim.

Vou digerir as coisas que seguem entaladas no meu sistema digestório e que não me permitem sequer me alimentar direito certas horas. A comida não desce...

Aprendi muito nesta nova caminhada, aprendi sobre mim, sobre esse ser que sou neste momento. As coisas estão tão claras pra mim que até fico chocado.

Foi uma experiência muito importante para mim sair de Osasco, ter medo e receio de não conseguir fazer o que fazia antes, encarar meus medos, encarar minhas dores e dificuldades, e chegar!

É isso!

William


Post Scriptum: Ao analisar o aplicativo do aparelho Huawei Band 8, em relação às distâncias percorridas por mim na sexta 11 e no sábado 12, fiquei tentando entender por qual motivo o registro no aplicativo é de 34,73 Km + 44,58 Km, o que daria um percurso de 79,31 Km andados por mim. De fato, essa distância é mais condizente com a realidade do que os 70 Km computados por mim manualmente, pois posso ter deixado de registrar alguma distância percorrida por cansaço, por esquecimento etc. 

Quando eu começava uma etapa, eu clicava o início do "treino" de caminhada ao ar livre e o correto era sempre dar pausa quando parava. Acontece que com o tempo, o romeiro vai cansando, começa a parar e não dá pausa, ou o contrário, dá pausa e esquece de dar play novamente etc. Eu fiquei encafifado com o fato de dar mais de 2 Km de diferença entre a Antena e o Posto Santa Fé na distância que marquei no relógio. No antigo panfleto da Polícia Rodoviária Federal (PRF-MG) consta como 12,5 Km e no meu marcador manual deu menos de 10 Km. Cansado como estava, pode ser que tenha deixado de marcar algum momento do caminhar, em alguma parada que fiz.

Se as distâncias anotadas entre o Trevo para Araxá (saída de Uberlândia) e a igreja de N. Sra. da Abadia de Água Suja, pelo antigo Desvio ou Atalho, davam 73,5 Km e agora o romeiro tem que andar mais uns 3 Km até a nova entrada para a cidade e andar mais um tanto até onde se saía pelo Atalho e ainda seguir só pela estrada de terra até a cidade, o mais provável é que eu tenha andado uns 77 ou 78 Km mesmo e não "só" 70 Km como as marcações manuais que fiz.

É isso, o registro é mais para constar mesmo. Neste blog eu sempre trabalhei com as informações o mais fidedignas possíveis. Aliás, quando faço consulta no meu WIKIpedia do William, conto com a informação cuidadosa postada no blog.


sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Romarias a Água Suja

Santuário N. Sra. da Abadia de Água Suja, MG.

Refeição Cultural

Uberlândia, Minas Gerais, Brasil.


Vou pegar a estrada nesta sexta-feira 11 para tentar andar um percurso de quase 80 Km até a cidade de Água Suja, região do Triângulo Mineiro. Fiz essa romaria por décadas. A última vez que a fiz foi em 2019, antes da pandemia mundial de Covid-19. Estou cheio de incertezas ao iniciar essa caminhada porque não sei se chegarei ao destino final. No entanto, vou iniciar a caminhada com todo o cuidado e muita concentração em mim mesmo como sempre fiz ao realizar longas caminhadas.

Me lembro bem da primeira vez que fiz a romaria de Água Suja. Eu ainda morava em Uberlândia, ou seja, foi antes dos 17 anos de idade. Meu primo e eu decidimos fazer a romaria meio na porraloquice. Vamos? Vamos! E saímos pela estrada sem planejamento algum. Foi uma experiência dura! Antes de chegar ao Rio Araguari, primeiros 25 km saindo do bairro onde morávamos, já estávamos arrebentados, bolhas nos pés etc. Com muito sacrifício, consegui convencer meu primo a seguir até a Antena. De lá, ele desistiu e voltou. Eu só cheguei ao destino no domingo, tínhamos saído na sexta.

Depois da primeira experiência, passei a fazer a romaria sempre sozinho. Uma única vez, ao longo das décadas de caminhadas, fiz a romaria com um grupo de romeiros. Saímos de Uberlândia alguns primos e conhecidos. Foi diferente andar em grupo: interessante ver a reação de cada um durante o percurso. Um dos primos chegou na raiva (risos). Dizendo que nunca mais faria aquilo. Uma prima torceu o pé antes dos 10 Km e seguiu até a Água Suja, e nos ensinou que com fé tudo era possível. Mancou até lá, mas chegou. Como digo sempre, cada caminhada, cada vez, é única.

Até uns quarenta anos de idade, saí a maior parte das vezes da casa de meus pais, o que dá um percurso de quase 90 Km, uns 87 Km imagino eu. Algumas vezes saí do Trevo para Araxá, saída de Uberlândia. Mais recentemente, última década, sempre que faço a romaria, saio do trevo, o que dá uns 75 Km. 

Uma das experiências mais gostosas que tive foi fazer a romaria com o meu filho. Foi muito legal a energia mútua que trocamos durante o percurso.

O Atalho no eucaliptal.

Já teve vez que não tive bolha alguma. Já teve vez que tive tanta bolha e tão grandes que fiquei dias com os pés em recuperação. Já fiz os 75 Km em menos de 19 horas, já fiz os 87 Km em 21 horas. Com o passar do tempo, e nos últimos anos, tenho precisado de um dia todo para fazer o percurso saindo do trevo. E as paradas precisam ser maiores também. E isso não é uma questão de idade, é uma questão de condicionamento físico e saúde, que é algo muito particular, cada pessoa é única. O meu desgaste no quadril acabou com o meu barato nas corridas e caminhadas.

Quando eu comecei a fazer romarias eu era uma pessoa muito religiosa, tinha uma concepção de mundo exatamente igual à concepção de mundo do ambiente onde nasci e cresci: predominância da religião católica apostólica romana mesclada com o sincretismo religioso tão característico do nosso país. Ao mesmo tempo em que era cristão, frequentava centros espíritas e religiões de matriz africana. Fui assim até perto dos trinta anos de idade. Quando passei a ter outra concepção de mundo, materialista, passei a compreender melhor a cultura de meu país e por que as coisas são como são.

Assistência - Mais um registro sobre as romarias para Água Suja. Uma coisa que auxilia muito o romeiro é ele poder contar com uma assistência ao longo da viagem. Isso é muito comum na estrada. Um grupo ou uma pessoa sai para fazer a romaria e alguém acompanha de carro os peregrinos, levando as mochilas, as coisas para comer e beber, até colchões para algum descanso. Eu sempre tive que chegar à cidade e ainda ir procurar condução para voltar, ônibus normalmente. Isso acrescenta muitas horas a mais acordado. Desde que meu filho foi com um amigo, em 2015, passamos a ter a assistência de meu cunhado. Ele já nos ajudou muito nestes anos todos. Somos muito gratos a ele. Este ano, apesar das dificuldades que ele tem, Túlio vai me acompanhar na estrada. Solidariedade é uma das maiores lições que aprendemos nas romarias.

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É isso. Como disse em outro texto reflexivo (ler aqui), não estou em paz. No entanto, sigo perseverando todos os dias quando acordo e percebo que a vida está aí, somos natureza, e a vida é oportunidade.

É com esse espírito que vou acordar nesta sexta, tomar um banho, tomar um café, depois almoçar levemente e passar um dia andando e observando tudo dentro de mim e ao meu redor. Preciso queimar algumas coisas que estão me consumindo por dentro e preciso buscar sentidos para os dias do viver.

A vida não tem que ter sentidos, a vida simplesmente é (um pouco do que já ouvi do filósofo Ailton Krenak), contudo podemos dar valor e significação ao viver, é isso que estou procurando.

William

Um peregrino


Post Scriptum: correu tudo bem na romaria. Consegui completar o percurso em 25 horas, não tive bolha alguma nos pés, e mais uma vez a experiência foi única, me deixou cheio de reflexões sobre a vida e sobre o entendimento das coisas do mundo. O vídeo que fiz pode ser visto aqui e o texto relativo à romaria pode ser lido aqui.


terça-feira, 8 de agosto de 2023

Diário e reflexões de um andarilho



Refeição Cultural

Osasco, 8 de agosto de 2023. Terça-feira.


Durante as dezenas de quilômetros que tenho andado nas últimas semanas, tenho pensado em muitas coisas que poderiam ser base para textos reflexivos ou argumentativos, ou ambos, e, no entanto, os temas que martelam em meus pensamentos são temas espinhosos, que abordam questões incômodas para o próprio escritor e para eventuais leitores.

Já faz semanas que fico pensando na melhor forma de abordar o tema do alcoolismo ou dos problemas terríveis que o excesso do consumo de bebida alcoólica pode trazer para a pessoa que consome essa droga legalizada no Brasil e as consequências do consumo dessa droga para toda a sociedade. Uma das alternativas de abordagem talvez seja colocar a mim mesmo como exemplo. Bebi muito durante anos e me coloquei nas situações comuns e extremamente vulneráveis que pessoas alcoolizadas se colocam... ainda não consegui sentar e escrever de coração aberto sobre essa tragédia do consumo de álcool em excesso.

Outra preocupação que martela na minha cabeça é em relação às perspectivas de presente e futuro para as pessoas que estão chegando à sociedade humana neste momento e para os jovens e adultos. Tenho refletido sobre isso tentando me colocar no lugar dos jovens de hoje para tentar compreender por que as coisas estão como estão. Consigo me lembrar muito bem de como eu via o mundo e o que queria ou o que eu não queria para minha vida quando era adolescente. Consigo. Me lembro de como era meu estar no mundo nos anos oitenta e no início dos anos noventa.

Odiava trabalhar. Hoje entendo que odiava trabalhar por causa dos trabalhos braçais, insalubres e humilhantes aos quais eu me submetia. O conceito de trabalho para mim era aquele conceito clássico de que quem trabalha é o escravo e o servo e os proletários, todos se fodendo em benefício de uns poucos abastados donos do poder e das riquezas. Eu odiava do mesmo tanto trabalhar quanto odiava os ricos, entendendo hoje que meu ódio era contra essa elite canalha e abjeta do Brasil, que explora os pobres com prazer e sadismo. 

Não tenho mais o ódio como sentimento que me conduz, mas sigo de certa forma odiando essa gente desgraçada da casa-grande, hoje claramente parcela representativa do bolsonarismo. Também tenho outros conceitos em relação ao trabalho, afinal de contas foram décadas de viver e de estudos para compreender que o trabalho é o que nos diferencia enquanto animais humanos na natureza.

Eu tento me colocar no lugar de jovens entre quinze e trinta anos e imaginar como eu me comportaria neste mundo tendo exatamente a pouca consciência política que tinha entre meus quinze e trinta anos. Foda isso! Ao me colocar no lugar dos jovens hoje, talvez eu... Esse seria outro tema a desenvolver em um texto, com honestidade intelectual, e talvez o texto fosse chocante demais. É mais fácil escrever sobre o álcool e seus efeitos do que me imaginar jovem neste mundo de hoje.

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E eu mesmo?

Nas minhas andanças e também através das minhas leituras tenho refletido sobre a necessidade de me desligar de alguma forma das coisas que têm trazido muito sofrimento e muita dor ao meu ser. Dor e sofrimento. Esse viver martirizado está sendo um viver muito insatisfatório.

Já escrevi que o passado não nos pertence porque ele não existe mais. Só teríamos o presente. No entanto, pessoas que tiveram um passado de grandes feitos têm muita dificuldade de se desligarem do passado que não existe mais. Esse processo é doloroso e causa muito sofrimento quando vem junto um sentimento de ingratidão do mundo. A pessoa vira uma escrava da dor e do sofrimento.

Os seres humanos são seres sociais, somos no mundo através de nossas relações com o mundo, isso é claro para mim. Apesar dessa clareza, apesar de ser racional, tenho deixado que a dor e o sofrimento pautem o meu presente por não conseguir definir um projeto de vida na atual realidade de minha existência. 

Como fazer a vida valer a pena hoje, neste instante e da forma como cheguei até aqui? Eu arrumei muletas para andar pela vida estando cai não cai à beira de precipícios desde meus tenros doze ou treze anos de vida já intensa me submetendo a trabalhos de merda, bebendo e querendo explodir o mundo que eu achava injusto e um lugar ruim.

Fui vivendo e de vereda em vereda, e com uma sorte da porra, alcancei mais de meio século de vida.

Agora não consigo me desligar dessas veredas por onde passei, não consigo compreender que os caminhos que até ajudei a construir estão fechados e só me resta andar, andar e abrir novos caminhos de viver, já que não existem caminhos, mas que fazemos caminhos ao andar, como nos ensinou o poeta.

Talvez por isso eu precise tanto andar. Preciso encontrar um caminho, fazer uma trilha, achar uma vereda que me traga um pouco de paz, aliás, essa utopia "paz" era a última coisa escrita em uma lista-muleta que havia feito décadas atrás quando listei coisas a conquistar e assim ir vivendo.

Paz... que utopia da porra. Você anda e a paz anda também (risos) e você nunca alcança ela.

Não estou em paz, sequer comigo mesmo.

Andar, andar, andar, quem sabe uma hora vejo um caminho ou abra um e caminhe por ele.

William