Refeição Cultural
"No momento em que o primeiro escriba arranhou e murmurou as primeiras letras, o corpo humano já era capaz de executar os atos de escrever e ler que ainda estavam no futuro. Ou seja, o corpo era capaz de armazenar, recordar e decifrar todos os tipos de sensação, inclusive os sinais arbitrários da linguagem escrita ainda por ser inventados. Essa noção de que somos capazes de ler antes de ler de fato - na verdade, antes mesmo de vermos uma página aberta diante de nós - leva-nos de volta à ideia platônica do conhecimento preexistente dentro de nós antes de a coisa ser percebida. A própria fala desenvolve-se segundo um padrão semelhante. 'Descobrimos' uma palavra porque o objeto ou ideia que ela representa já está em nossa mente, 'pronto para ser ligado à palavra '. É como se nos fosse oferecido um presente do mundo externo (por nossos antepassados, por aqueles que primeiro falam conosco), mas a capacidade de apreender o presente é nossa. Nesse sentido, as palavras ditas (e, mais tarde, as palavras lidas) não pertencem a nós nem a nossos pais, aos nossos autores: elas ocupam um espaço de significado compartilhado, um limiar comum que está no começo da nossa relação com as artes da conversação e da leitura." (Uma história da leitura, Alberto Manguel, 1999, p. 50)
No capítulo "Leitura das sombras" Manguel nos conta a história dos estudos ao longo dos séculos para tentar entender essa capacidade extraordinária do ser humano de escrever e ler, já que somos seres falantes.
Vamos descobrindo o que a ciência de cada época humana foi apontando sobre a capacidade humana de falar, escrever e ler.
Achei muito legal a imagem final do capítulo: quando estou lendo é como se por trás de mim, lessem também as sombras dos leitores que vieram antes de nós, a ideia clara de que somos fruto de processos coletivos e compartilhados de cultura.
"(...) ao seguir o texto, o leitor pronuncia seu sentido por meio de um método profundamente emaranhado de significações aprendidas, convenções sociais, leituras anteriores, experiências individuais e gosto pessoal. Lendo na academia do Cairo, al-Haytham não estava sozinho; como se lessem por sobre seus ombros pairavam as sombras dos eruditos de Basra que haviam lhe ensinado a sagrada caligrafia do Corão na mesquita de Aristóteles e seus lúcidos comentadores, dos conhecidos casuais com quem al-Haytham teria discutido Aristóteles, dos vários al-Haythams que ao longo dos anos tornaram-se finalmente o cientista que al-Hakin convidou para sua corte." (p. 53)
Apesar de todas as convenções sociais e histórias anteriores de leituras do texto que você está lendo, sua leitura é única, é nova, é sua.
Pensa no poder disso! Pensa!
Por isso, nós leitores somos tão temidos por nazifascistas, manipuladores da fé, ignorantes em geral, governos autoritários, instituições e empresas, porque ler é poder!
William