terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Leitura: Lula, o filho do Brasil (2002) - Denise Paraná



Obra histórica e estudo denso realizado por Denise Paraná.

Refeição Cultural

"Havia uma dinâmica na categoria. À medida em que a categoria ia exigindo você ia... Na medida em que nós fizemos uma opção de que o sindicato não seria o tutor da categoria, mas seria uma espécie de caixa de ressonância da categoria, cada vez que os trabalhadores exigiam, ao invés da gente represá-los, a gente soltava. Então eles queriam mais boletim, era mais boletim; mais atividade, era mais atividade; mais curso de formação política, era mais curso de formação política. Eles queriam que a gente radicalizasse mais, a gente radicalizava mais. A gente passou a viver muito por conta do próprio crescimento da categoria. Por isso que eu digo sempre que eu sou o fiel resultado do crescimento de minha categoria. Nem mais, nem menos. À medida em que ela avançava eu avançava, na medida em que ela não avançava eu não avançava..."


Terminei há instantes a leitura da obra monumental de Denise Paraná - Lula, o filho do Brasil, publicado no final de 2002. Depois de ficar por anos seguidos com a leitura inacabada, retomei com decisão neste feriado de Carnaval e li e reli cerca de duzentas páginas. 

É um documento histórico dos mais valiosos para a classe trabalhadora brasileira, por causa das entrevistas orais colhidas por Denise Paraná entre os anos de 1993 e 1994, tanto de Lula quanto de seus familiares, incluindo todos os irmãos e irmãs vivos, além de Dona Marisa e Lambari, amigo de infância e irmão da primeira mulher de Lula.

A segunda parte do livro, com estudos sociológicos e psicológicos por parte da autora, com grande aprofundamento acadêmico, citação de diversas obras e autores conceituados, foi de grande reflexão para mim e ganhei grandes inspirações e aguçou minhas interpretações da realidade social de meu País e do contexto em que nos encontramos.

As teses levantadas sobre a "Cultura da pobreza" e a mudança para uma "Cultura da transformação" a partir da conscientização política e compreensão da questão de classe é muito interessante e abre várias linhas de possibilidades e retomadas nas lutas sociais, na minha opinião.

Para ser direto, eu gostaria muito que os segmentos sociais de onde sou oriundo, em termos sindicais, abrissem este livro em grupos de estudos, e fizessem um roteiro de debates analisando o nosso passado recente, pensando o contexto brasileiro dos anos de chumbo, o surgimento do "Novo Sindicalismo", as estratégias utilizadas por Lula e seus companheiros entre os anos sessenta e oitenta, bem como os reflexos dessas estratégias ao chegar ao poder nos anos dois mil e fazer o Brasil avançar em prol dos trabalhadores, lenta e gradualmente, ao jeito "Lulista" (para lembrar a tese de André Singer).

Seria muito interessante os sindicalistas conhecerem as estratégias adotadas por Lula durante todo o período de exceção e sem liberdades democráticas, compreenderem também os contextos históricos, e em grupos de estudo com lideranças sindicais e dos movimentos sociais traçarem iniciativas e tipos de reação ao estado atual de destruição dos direitos sociais brasileiros no pós golpe de Estado em 2016.

Quando li todas as entrevistas de Lula, anos atrás, eu já havia me identificado demais com elas. Lula, a Central e o Partido não tinham as características das esquerdas comunistas e socialistas tradicionais. Era algo diferente que surgia ali. Ao estudar e conhecer esta história, busquei aplicar aquela concepção e prática no meu fazer político e sindical e nos contatos com a base social que representei em cada momento. Ainda hoje faço um mandato de representação baseado nas bases sociais que represento e vejo os representados como meus pares.

Com o término desta obra densa e inspiradora, fecho também as leituras no mês de fevereiro. Após ler ou terminar 12 livros em janeiro, li ou terminei 5 livros neste mês.

Meu sentimento de emergência segue me dando gana e energia para ler, estudar e buscar compreensão e inspiração para as lutas que lidero e as tarefas que tenho pela frente como um membro da classe trabalhadora.

Eu recomendo muito a leitura desta obra para os homens e mulheres que se encontram neste momento com algum tipo de mandato, principalmente de representação sindical - as entrevistas de Lula e os estudos de Denise Paraná -, para compreenderem o que tem de original na construção da CUT e do Partido dos Trabalhadores, em relação ao que havia de experiências em partidos e movimentos sindicais em países ocidentais, tanto europeus quanto americanos. Esses rachas e cisões no seio do movimento sindical é a nossa derrota certa!

É através do conhecimento do passado e dos processos históricos que podemos corrigir rotas e seguir avançando enquanto classe trabalhadora.

É isso.

William
(fui dirigente sindical entre 2002 e 2015)

Leitura: A morte de Ivan Ilitch (1886) - Lev Tolstói



Esta edição é traduzida diretamente do russo. Recomendo.

Refeição Cultural - Mortes que não importam aos outros

Me peguei pensando a respeito da morte. Eu estava para postar um comentário sobre minha terceira leitura de uma das mais famosas obras de Tolstói - A morte de Ivan Ilitch (1886). Cada releitura em nossa vida é uma nova leitura porque o leitor é outro, é um novo leitor. Eu era um em 2008, era outro em 2012 e sou este que vos fala neste momento em 2017.

Em 2008 ainda fervilhava em mim o mundo das Letras por ter sido por tanto tempo aluno da FFLCH-USP. Em 2012 eu já estava bastante envolvido com a formação sindical no ramo financeiro (Contraf-CUT) e iria assumir as negociações nacionais do Banco do Brasil como coordenador da Comissão de Empresa dos Funcionários (COE-Contraf). Hoje sou gestor de operadora de saúde no modelo de autogestão e conheço relativamente bem como opera o setor de saúde no Brasil e conheço alguma coisa em relação aos modelos no mundo.

Nesta releitura de Tolstói, me incomodou muito o descaso das autoridades médicas com o paciente, o sistema de saúde vigente à época do senhor Ivan Ilitch, na Rússia czarista da segunda metade do século 19. A forma como o paciente é tratado me incomodou sobremaneira. 

Das outras vezes, já havia me incomodado com o tratamento frio e pouco humano dos profissionais de saúde, mas também ficou martelando em mim a forma como todas as pessoas ao redor do senhor Ilitch se comportavam de forma hipócrita e com interesses absolutamente pessoais em levar algum tipo de vantagem com a morte daquele ser humano.

Então... eu reli o livro porque meu filho me perguntou se eu conhecia esta obra e se poderia dar de presente para ele. Fiquei feliz com o pedido e aproveitei para reler também.


French 87th Regiment Cote 34 Verdun 1916 -
Foto de domínio público sobre a 1ª GM,
autor desconhecido.

Hoje, assisti a um documentário encontrado na internet por puro acaso. Era a respeito da 1ª Guerra Mundial. O programa de pouco mais de uma hora era apresentado por um jovem youtuber chamado Castanhari, em um site chamado Canal Nostalgia. O jeito como o rapaz se comunica é bem interessante para a geração atual.

Enfim, eu sou um apreciador de história. Estudar história para mim é algo do prazer, do autoconhecimento e uma forma de melhorar minha compreensão de mundo. Foi bom rever o tema "guerras mundiais".

Estamos passando por um momento mundial de grandes riscos para a humanidade. As mudanças políticas e econômicas nas Américas, na Europa, no Ocidente e Oriente, podem caminhar no próximo período para novas guerras de extermínio de milhões de pessoas.

Aí fiquei pensando a respeito da morte, das mortes que não importam para os outros. Eu aprendi a valorizar a vida de cada ser humano, de cada ser vivo neste Planeta. É muito duro vermos o sofrimento da personagem Ivan Ilitch sem o devido respeito e atenção por parte dos profissionais de saúde e das pessoas ao seu redor. 

Mas durante um período de guerras, ou quando a maldade é a nova ordem e a vida humana perdeu o valor e os novos valores não incluem o foco no ser humano, o que vemos é não valer nada centenas, milhares e até milhões de vidas humanas.

Numa guerra, numa disputa de grupos rivais, sociedades rivais, sem a política para mediar e permitir o espaço do outro, vemos o que ocorreu nas guerras trágicas de nossa história mundial. Cada batalha morria-se 400 mil pessoas, depois mais 200 mil, depois mais um milhão...

Chega! Pensar em guerras e pensar em mortes é uma merda.

Eu gostaria de ver novamente a democracia restabelecida em meu País, o respeito às diferenças prevalecendo, e o mundo e as sociedades vivendo sob a égide da paz com mais solidariedade e valores humanos em alta, em detrimento do dinheiro e do poder absoluto de uns poucos sobre as imensas maiorias.

William (será que estou sonhando alto?)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Leitura: A corrosão do caráter (1998) - Richard Sennett





Olá prezad@s leitores e amig@s,

Um dos livros que li neste mês de fevereiro, ou melhor, que concluí a leitura iniciada há muito tempo, foi o livro de Richard Sennett, A corrosão do caráter, consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo (1998).

Tenho andado com certo sentimento de urgência, de emergência, na realização das leituras que tenho como objetivos de vida, tanto as literárias quanto as de outras linhas de conhecimento. Sempre tive pouco tempo para ler em função de uma vida com jornadas de trabalho e estudos nos 3 períodos do dia e desde a adolescência.

A solução para ler obras que desejo e que estão na fila tem sido pegar meus livros nos instantes em que não estou com minhas tarefas de gestão na Cassi e ler ler e ler.

Estamos no feriado de Carnaval e além de descansar um pouco o corpo, porque estou extenuado por causa do trabalho, aproveitei para ler e refletir sobre diversas questões da existência e da vida em sociedade.

A postagem é sobre este estudo de Sennett, analisando as mudanças comportamentais dos trabalhadores americanos entre as décadas de 1970 e 1990.

Meus dias deste feriado foram de leitura dedicada a terminar um livro profundo de Denise Paraná - Lula, o filho do Brasil (2002). É mais uma obra que fiquei anos lendo e nunca terminei. São mais de 500 páginas. Decidi terminar a leitura nestes dias. Amig@s, de sábado para hoje, segunda-feira, reli alguns capítulos e as análises em mais de 150 páginas e deixei o gran finale para amanhã, terça. O estudo sociológico e psicanalítico de Denise é fan-tás-ti-co!

Ambos, o de Sennett e o de Denise, nos deixam pensando muito sobre a nossa classe trabalhadora em seus contextos sociais.

Segue abaixo pequenos excertos sobre a obra de Richard Sennett. Não teria como eu fazer uma longa postagem crítica e analítica por falta de tempo para isso. Eu realmente recomendo a leitura desta pequena obra pela atualidade conceitual para compreender o efeito nefasto nas novas gerações em relação à visão de curto prazo e seu efeito sobre as relações pessoais, profissionais e sociais.


O NOVO CAPITALISMO E O CARÁTER

"Talvez o aspecto da flexibilidade que mais confusão causa seja seu impacto sobre o caráter pessoal. Os antigos anglófonos, e na verdade escritores que remontam à antiguidade, não tinham dúvida sobre o significado de 'caráter': é o valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e às nossas relações com os outros. Horácio escreve que o caráter de alguém depende de suas ligações com o mundo. Neste sentido, 'caráter' é um termo mais abrangente que seu rebento mais moderno 'personalidade', pois este se refere a desejos e sentimentos que podem apostemar por dentro, sem que ninguém veja".


CARÁTER E A RELAÇÃO COM O LONGO PRAZO

"O termo caráter concentra-se sobretudo no aspecto a longo prazo de nossa experiência emocional. É expresso pela lealdade e o compromisso mútuo, pela busca de metas a longo prazo, ou pela prática de adiar a satisfação em troca de um fim futuro...".

Imaginem vocês, amig@s leitores, o efeito da visão de curto prazo para sistemas mutualistas como saúde e previdência... é uma tragédia, se as pessoas não conseguirem compreender que para saúde e previdência estamos falando de décadas, quiçá séculos.


Ao longo do estudo, Sennett compara a visão de mundo e comportamento dos trabalhadores nos anos noventa em relação aos seus pais ou geração anterior, nos anos setenta. A mudança no emprego e no comportamento é muito grande.

Nos anos setenta, o mundo do trabalho ao longo de uma vida (e os trabalhadores eram sindicalizados) apresentava uma perspectiva linear e criava certa segurança no amanhã. O criar os filhos, comprar a casa, aposentadoria etc. 


E HOJE?

"Como se podem buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo? Como se podem manter relações sociais duráveis? Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e fragmentos? As condições da nova economia alimentam, ao contrário, a experiência com a deriva no tempo, de lugar em lugar, de emprego em emprego. Se eu fosse explicar mais amplamente o dilema de Rico (o jovem trabalhador analisado), diria que o capitalismo de curto prazo corrói o caráter dele, sobretudo aquelas qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros, e dão a cada um deles um senso de identidade sustentável...".


O autor nos conta da desgraça que foi a terceirização nos Estados Unidos e os efeitos nocivos gerados para os trabalhadores por esta estratégia capitalista de exportar os empregos americanos para outros países de mão de obra mais barata. 

Imaginem vocês o que nos espera com a pauta "Terceirização" total sendo uma daquelas de destruição do mundo do trabalho e dos direitos sociais no Brasil após o golpe de Estado consubstanciado em 2016 por uma camarilha de ladrões que tomaram conta de todas as instituições do Estado Nacional?


O "NÓS" E A DEPENDÊNCIA MÚTUA

"No início do capitalismo, como mostrou Albert Hirschmann, a confiança nas relações comerciais surgiu pelo franco reconhecimento da dependência mútua..."

e

"(...) Uma visão positiva dos próprios limites e da dependência mútua parece ser mais da área da ética religiosa que da economia política. Mas a vergonha da dependência tem uma consequência prática. Corrói a confiança e o compromisso mútuos, e a ausência desse laços ameaça o funcionamento de qualquer empreendimento coletivo..."


ENFIM...

Caros leitores e leitoras, o livro é muito importante para nossa reflexão, consciência do estado atual das coisas e para pensar estratégias de como lidar com o novo comportamento humano e do mundo do trabalho.

Como gestor de autogestão em saúde, modelo mutualista solidário intergeracional, para cuidar de pessoas por décadas e décadas, eu tenho que desenvolver estratégias de congregar pessoas para o longo prazo, para as coisas coletivas, com base na confiança e na solidariedade.

É isso. Eu já conheço do tema e lido com ele. Mas temos que estudar muito e associar pessoas em nosso sistema de saúde e previdência, como deve ocorrer com os sistemas públicos e complementares, como ocorre no caso da comunidade Banco do Brasil, que tem a Cassi e a Previ.

Abraços,

William Mendes

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Diário e reflexões - 260217



Quero acabar a leitura desta obra
muito interessante de Denise Paraná.

Domingão. Chuva cai, chuva para, chuva volta. Brasília parada. Feriado de Carnaval.

Eu cheguei ao feriado tão cansado, tão esgotado, que neste sábado e domingo, meu corpo não responde a quase nada. Quero correr, mas o corpo diz não. Quero ler, mas o olho pesa e o sono atrapalha. Saudades do filho, longe de casa. Saudades dos pais, lá nas Minas Gerais.

Tive duas semanas de trabalho na Cassi que me esgotaram completamente. Essa vida de três jornadas por dia desde o início do mandato não é brincadeira. Mas tenho a consciência política de saber que a única chance que teria em fazer algo do que planejamos na defesa da Caixa de Assistência e dos associados contra o sistema hegemonizado tanto pelo patrão patrocinador na gestão, quanto pelo total desconhecimento do corpo social, era empreendendo uma jornada continental de fortalecimento das bases sociais a partir de mais participação e informação. Deu e dá muito trabalho, mas sei que faço algo diferente e necessário ao estar com as lideranças do funcionalismo do Banco e associados da Cassi pelo Brasil afora.

Pensei em escrever neste feriado alguns textos sobre a leitura de três livros. Até agora só fiz um deles, sobre um romance de ficção de autor alemão, Patrick Süskind. Terminei a obra O perfume, a história de um assassino (1985). Na sexta-feira à noite, aproveitei e vi a adaptação cinematográfica da estória. Achei bem legal. Ler comentário AQUI. Mas ainda queria escrever sobre outras duas leituras feitas neste mês: A corrosão do caráter, de Richard Sennet, e A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói. Mas e o sono?

Outra coisa que mentalizei para o feriado do Carnaval foi retomar e terminar a leitura do livro de Denise Paraná - Lula, o filho do Brasil (2002). Tenho o livro desde 2011. Ao retomar no sábado a leitura, vi que era necessário reler alguns capítulos anteriores. Revi a entrevista de 1994 com Dona Marisa. Ler comentário AQUI. Hoje, reli a apresentação de Antonio Candido e a introdução de Denise Paraná, explicando os porquês da obra e a metodologia utilizada por ela. Nisso já foram mais umas 40 páginas. Era necessária a releitura porque as partes seguintes às entrevistas orais que já havia lido são justamente as análises sociológicas e psicanalíticas que fecharão os estudos feitos por ela no final dos anos 90.


ONDE ESTÁ A UNIDADE DE CLASSE E A FORMAÇÃO POLÍTICA?

Enfim, eu fico refletindo sobre a situação de cisão e ruptura em que se encontram os movimentos social e sindical brasileiro, do qual fiz parte por praticamente duas décadas, e fico triste ao saber que a desunião entre as principais lideranças e entidades representativas dificulta sobremaneira a resistência urgente à destruição de nosso Brasil e dos direitos sociais por parte da camarilha de golpistas empresários e burguesia vira-latas e lesa-pátrias que tomaram de assalto as instituições oficiais do País.

Assim como aprendi através de estudos concentrados no início dos anos dois mil a compreender o que era o movimento do qual participei, a Central Única dos Trabalhadores, o Partido dos Trabalhadores e a corrente política em que me peguei fazendo parte, eu tenho a convicção que se fosse feito um esforço conjunto de unidade entre os grupos e lideranças do movimento social e percursos formativos urgentes com história e origem de nossas lutas e conquistas, seria possível uma reação. Mas... e a vaidade e os corporativismos? Quem abriria mão neste mundo, mundo, vasto mundo em que estamos neste século do individualismo?

É isso, fim da reflexão. (ai que sono, que cansaço...)

William

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Tudo acabou bem - Entrevista com Marisa Letícia (maio de 1994)



Capítulo que contém a entrevista de 1994 com Dona Marisa.

Refeição Cultural

Estamos no feriado de Carnaval do ano de 2017.

Estou numa sanha emergente de retomar leituras de livros inacabados. Comecei em 2011 a leitura do livro de Denise Paraná - Lula, o filho do Brasil -, lançado em 2002 (minha edição é de 2009). Já li e reli várias vezes alguns capítulos, porque além de um livro de história do nosso País, é um livro de formação política ao ler as entrevistas com Lula e seus familiares entre 1993 e 1994. Já li mais de trezentas páginas, mas ainda tenho umas duzentas pela frente.

O último capítulo que havia lido quando deixei de lado o livro foi justamente a entrevista com Dona Marisa Letícia, falecida neste mês de fevereiro, em decorrência de um AVC.

Estamos vivendo um novo momento histórico do Brasil. Eu escrevi muito a respeito do que vivemos em 2016, o ano do Golpe de Estado que tirou a Presidenta Dilma Rousseff do poder de forma ilegítima e colocou o País na mão de uma gangue de corruptos lesa-pátrias e que estão condenando o presente e o futuro deste gigante sul-americano e seus mais de duzentos milhões de habitantes.

Após reler o capítulo com a entrevista de Dona Marisa, vamos ver se vou até o fim da obra, que entra agora na fase de estudos sociológicos de Denise Paraná. Chama a atenção, na entrevista, o amor, tão em baixa no novo Brasil posterior ao Golpe. Agora, é o ódio que domina o temperamento do povo, um ódio plantado pelos organizadores do movimento golpista.

Abaixo, alguns instantes de Dona Marisa, lá em 1994.


PLANEJANDO E EDUCANDO

"No tempo que me sobra das Caravanas da Cidadania, das viagens que eu faço com o Lula, eu fico em casa mesmo. Não assumo nada, quero ficar perto dos meus filhos, conversar um pouco, orientar os meninos. Para no dia de amanhã eles não serem desorientados, uns meninos contra a luta do pai. Ou achar que nós os abandonamos e gostamos mais de estar na rua do que estar junto com eles. Eu quero que eles entendam, para não dar problema mais tarde..."


PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

"Ele tinha que usar a nossa casa para contatos, para reuniões. Ele começou a usar a nossa casa como escritório. Era tudo concentrado na nossa casa. E eu deixava, não achava ruim. Ele estava ali, estava fazendo o que precisava fazer...

(comentário: esse é um de meus lemas na atual circunstância de minha vida política, na área em que atuo)

"Mas eu comecei a me integrar muito mais ainda quando as reuniões eram aqui dentro da minha casa. Em algumas reuniões e eu participava, sabia o que estava acontecendo. Eu comecei a entender um pouco melhor as coisas...."


PAI BANDIDO?

"O Marcos chorava para ir para a escola e eu insistia para ele ir. Falava que tinha que ir e não podia faltar. Aquela coisa de mãe. Mas ele não me contava nada, porque já via o meu sofrimento, acho. E ele ia para a escola porque a mãe queria e chegava lá era uma tortura! Criança jogava aviãozinho nele e a professora colocava o Marcos de castigo. Caía tudo em cima dele. Ele foi muito torturado naquele ano. Quando eu descobri, tirei o Marcos da escola. A terceira série ele acabou não fazendo.

Quando foi no outro ano eu fui na escola, que era vizinha da minha casa. Eu fui lá e conversei com a diretoria e conversei com quem seria a nova professora dele. E essa professora se tornou muito minha amiga. Eu falei pra ela, falei pra diretoria: 'Eu não quero que meu filho caia na classe de tal fulana, porque ele sofreu muito no ano passado com ela. Meu marido não é um marginal e está lutando pelos direitos dos trabalhadores'. Contei toda a história que tinha se passado..."


PASSEATA DAS MULHERES

"Eu tinha medo do Lula não sair da prisão, de acontecer algo pior com ele. Eu vivia apavorada. Eu não conhecia lei nenhuma. Nós mulheres resolvemos fazer uma grande passeata aqui em São Bernardo. Eu peguei a frente desse movimento pelos maridos presos. Fizemos. Passeata sai, não sai, briga para sair, tem polícia para todo lado, aquela coisa toda. Nós estávamos dentro da igreja matriz de São Bernardo. Foi em 1980. Tínhamos resolvido comprar rosas, para sair em passeata com as rosas e as crianças. Eu estava toda emocionada, tinha muita gente. Nunca pensei que ia tanta mulher no movimento..."


VIVER A VIDA

"Quando o Lula saiu da prisão, eu pensei: 'Agora acabou. Tomaram o sindicato dele. Não tem mais retorno'. Pensei: 'Agora ele faz um acordo com a fábrica em que ele trabalha, arruma um outro emprego'. Queria que arrumasse um outro emprego, montasse qualquer coisa. Eu só não queria que ele voltasse para as atividades sindicais. Pensava que graças a Deus ia ficar em paz, viver a vida mesmo. De repente, o Lula cisma de formar o partido. O pior é que eu também, muito eficiente, digo: 'Sim! Vamos montar esse partido!'. Mas jamais imaginava que ia tomar todo o tempo dele..."

(...)

"Mas nunca pedi para o Lula parar, nunca. Eu sempre dou incentivo. Acho que o Lula se sente seguro comigo, muita gente já me falou isso. O Ricardo Kotscho, que convive muito com a gente, sempre fala: 'Marisa, você dá segurança para o Lula'. Porque eu nunca falo não. Quando eu falo não a coisa não dá certo. Geralmente quando eu falo não conta comigo, não vou, sou contra, não dá certo. Então, eu não tenho a visão de marido e mulher nesse caso. Tenho uma visão de militância. Não é a visão de querer agradar o Lula, mas sim do que é bom para ele. Eu acho que essa minha postura dá certo..."


SEM DESLUMBRAMENTO

"Eu não tenho desejo de poder. Acho que minha cabeça não vai mudar muito, não, se o Lula for presidente... Ele já foi presidente do sindicato, um dos maiores do país. Eu era tratada como primeira-dama do sindicato. Mas eu só queria ficar junto, conversar nas rodinhas, conviver com o pessoal. Eu nunca quis ser algo diferente das outras pessoas. Para a minha cabeça, ser mulher do presidente da República não vai me fazer mudar..."


Comentário final

Pois é, leitores amig@s, eu havia lido este capítulo em março de 2016, já no auge dos ataques orquestrados pelos golpistas contra o governo Dilma e contra a família de Lula, principalmente pela Lava Jato/PIG, e fui reler agora, após o falecimento de Dona Marisa.

Sinto uma tristeza tão grande em meu coração por tudo que está acontecendo com o nosso País, com a nossa classe trabalhadora, com lideranças que deram a vida em defesa do povo e da soberania nacional, como Lula e sua grande companheira Marisa.

Por outro lado, por duas vezes neste capítulo, fica uma lição que eu carrego comigo na minha militância e nos mandatos em nome de trabalhadores: a gente faz o que tem que ser feito.

Abraços,

William


Bibliografia:

PARANÁ, Denise. Lula, o filho do Brasil. Apresentação de Antonio Candido. Editora Fundação Perseu Abramo. 1ª edição: dezembro de 2002. 3ª edição, 3ª reimpressão: julho de 2009.

Leitura: O perfume, história de um assassino (1985) - Patrick Süskind



A nossa edição do livro.

Refeição Cultural

Terminei neste mês de fevereiro a leitura do livro de Patrick Süskind - O perfume, a história de um assassino (1985). O livro é de minha esposa e ela ganhou na adolescência esta edição que temos. Eu comecei a leitura dele lá em setembro de 2014... como faço com dezenas de livros. Li a primeira parte da obra até outubro daquele ano. Aí fiz como Jean-Baptiste Grenouille quando hibernou por sete anos no maciço de Auvergne, em uma caverna: fiquei sem pegar no livro por mais de dois anos. Quando foi dia 8 de fevereiro, para aliviar o estresse do trabalho, retomei a leitura em voo para Natal, RN. Consegui embalar e terminar as outras três partes da ficção em quatro dias.

Como tenho escrito neste Blog de cultura, entrei neste ano de 2017 com certa urgência em acabar leituras iniciadas e nunca finalizadas, urgência em ler e ler para buscar compreender tudo o que tenho visto e vivido em nosso mundo. A sensação em meio às crises e golpes contra nós povo trabalhador é que não sabemos sobre o amanhã, sequer sobre nossas vidas. Por mais que saibamos que a vida humana é dádiva, é instável e que se extingue num segundo, o fato concreto é que o momento político, econômico e social é de desconstrução de direitos sociais e de más perspectivas para a nossa classe, a trabalhadora.

Para entrar no período de descanso do feriado brasileiro de Carnaval, iniciei meu ciclo cultural assistindo ao filme baseado na obra de Süskind. O filme tem o mesmo nome da obra, é de 2006 e foi dirigido por Tom Tykwer. Uma coisa que gosto em adaptações para o cinema de obras literárias é quando o roteiro e direção mantêm o fio condutor da obra sem viajar demais nos gostos pessoais de adaptação, fugindo ao original. Nunca me esqueço de uma cena do filme "O poderoso chefão" ao ver um detalhe em uma personagem que guardei da leitura da obra de Mário Puzo. Um dos filhos do chefão teve o nariz quebrado ao ser espancado e nunca mais deixou de ter coriza. Quando vi o filme respeitar essa característica na personagem, achei muito legal.

Eu não tenho um olfato apurado. Durante a leitura do livro, fiquei refletindo sobre esse dom de perceber de forma intensa os odores do mundo. É provável que eu tenha perdido um pouco da sensibilidade olfativa por causa de alguns trabalhos braçais que fiz na infância e adolescência. Trabalhei de ajudante de encanador, quebrar concreto e mexer em esgoto e merda dos outros. E o pior trabalho que fiz quando era ajudante de depósito de palmitos foi me colocarem num canto isolado para abrir latas estufadas e podres de palmito para jogar fora. É o pior fedor do mundo! Nunca esqueci. Imaginem se havia uso de material de proteção nos anos oitenta... nem hoje usam como deve. Já lidei com os piores cheiros do mundo. Também estudei corpos em laboratório de anatomia, cheiro de corpos com formol.

Gostei do livro e gostei do filme. Eu os recomendo para aqueles que querem fugir um pouco de suas rotinas de trabalho e vida. Vou deixar alguns excertos abaixo que me chamaram a atenção, não muitos porque daria muito trabalho transcrever, mas fiquei pensativo sobre as descrições daquele mundo do século 18 em odores.


O filme baseado na obra de Süskind.

Excertos...

O COMEÇO (IMAGINEM OS ODORES DA ANTIGA PARIS...)

"No século XVIII viveu na França um homem que pertenceu à galeria das mais geniais e detestáveis figuras daquele século nada pobre em figuras geniais e detestáveis. A sua história é contada aqui. Ele se chamava Jean-Baptiste Grenouille e se, ao contrário dos nomes de outros geniais monstros como, digamos, Sade, Saint-Just, Fouché, Bonaparte etc., o seu nome caiu hoje no esquecimento, isto certamente não ocorreu porque Grenouille tenha ficado atrás desses homens das trevas mais famosos em termos de arrogância, desprezo à raça humana, imoralidade, ou seja, em impiedade, mas porque o seu gênio e a sua ambição se concentravam numa área que não deixa rastros na história: o fugaz reino dos perfumes.

Na época de que falamos, reinava nas cidades um fedor dificilmente concebível por nós, hoje. As ruas fediam a merda, os pátios fediam a mijo, as escadarias fediam a madeira podre e bosta de rato; as cozinhas, a couve estragada e gordura de ovelha; sem ventilação, salas fediam a poeira, mofo; os quartos, a lençóis sebosos, a úmidos colchões de pena, impregnados do odor azedo dos penicos. Das chaminés fedia o enxofre; dos curtumes, as lixívias corrosivas; dos matadouros fedia o sangue coagulado. Os homens fediam a suor e a roupas não lavadas; da boca eles fediam a dentes estragados, dos estômagos fediam a cebola e, nos corpos, quando já não eram mais bem novos, a queijo velho, a leite azedo e a doenças infecciosas. Fediam os rios, fediam as praças, fediam as igrejas, fedia sob as pontes e dentro dos palácios. Fediam o camponês e o padre, o aprendiz e a mulher do mestre, fedia a nobreza toda, até o rei fedia como um animal de rapina, e a rainha como uma cabra velha, tanto no verão quanto no inverno. Pois à ação desagregadora das bactérias, no século XVIII, não havia sido ainda colocado nenhum limite e, assim, não havia atividade humana, construtiva ou destrutiva, manifestação alguma de vida, a vicejar ou a fenecer, que não fosse acompanhada de fedor..."


A ESSÊNCIA DO PERFUME

"Grenouille ficou fascinado pelo processo. Se alguma coisa na vida conseguira entusiasmá-lo - é claro que não de modo externamente visível, mas em contido entusiasmo, a arder como em chama baixa - era esse trabalho, com fogo, água e vapor e uma delicada aparelhagem, de arrancar às coisas a sua alma aromática. Essa alma aromática, o óleo etéreo, era afinal o melhor que nelas havia, a única razão pela qual se interessava. Todo o resto - flores, folhas, cascas, fruto, cor, beleza, vida e tudo o que nelas mais houvesse de supérfluo - nada disso o interessava. Isso era apenas envoltório e peso morto. Tinha de ser eliminado..."


"PAZ OLFATIVA" (DO TEMPO DE HIBERNAÇÃO NA MONTANHA)

"(...) Pois suspeitava ainda encontrar em qualquer direção um escondido fragmento de cheiro humano. No entanto não havia nada aí. Havia apenas paz, e se assim se pode dizer, paz olfativa. Ao seu redor dominava apenas o odor homogêneo, soprando com leve sussurro, das pedras mortas, dos liquens cinzas e das gramíneas ralas, nada mais..."


O CHEIRO (MAU CHEIRO) DO SER HUMANO

"Ele queria apropriar-se, e mesmo que por enquanto fosse apenas um mau subproduto, do cheiro de gente, cheiro que ele mesmo não tinha. É verdade que não existe o semblante humano. Cada ser humano cheira de um modo, ninguém sabia disso melhor que Grenouille, que conhecia milhares e milhares de cheiros individuais e era capaz de distinguir pelo faro pessoas desde o nascimento. E no entanto havia um aroma humano essencial, aliás bastante simples: um tema básico, sudorento e gorduroso, de queijo azedo, um tema em si bastante nojento, que impregnava igualmente todos os homens e por sobre o qual flutuavam, mais refinadas e isoladas, as nuvenzinhas de uma aura individual..."


INGREDIENTES PARA REPRODUZIR O CHEIRO BÁSICO HUMANO

"Havia ali um montinho de merda de gato atrás do umbral da porta que levava ao pátio, ainda bastante fresco. Pegou meia colherinha disso, juntando-o a algumas gotas de vinagre e sal moído no garrafão de misturar. Debaixo da mesa da oficina encontrou um pedacinho de queijo do tamanho de uma unha, provavelmente resto de uma refeição de Runel. Estava bastante velho, começava a se decompor e emanava um forte odor. Da tampa do tonel de sardinhas, nos fundos de trás da loja, raspou algo como ranço de peixe, misturou-o com ovo podre e castóreo, amoníaco, noz-moscada, raspa de chifre e toucinho chamuscado, cortado em pedacinhos. A isso acrescentou uma quantidade relativamente alta de almíscar. Misturou esses horríveis ingredientes com álcool, deixou dissolver e filtrou numa segunda garrafa. O caldo tinha um cheiro devastador. Cheirava a cloaca pútrida, e quando se misturava a sua evaporação à brisa pura do movimento do leque, era como se se estivesse num dia quente de verão na Rue aux Fers, em Paris, esquina da Rue de la Lingerie, onde se encontravam os odores das galerias, do Cimitière des Innocents e das casas superlotadas..."


ENFLEURAGE (MODO DE CAPTURAR AS FRAGRÂNCIAS DAS COISAS)

"O resultado era ainda quantitativamente menor que na maceração. Mas a qualidade dessa pasta de jasmim obtida mediante enfleurage a frio ou a de uma huile antique de tubéreuse superava em finura e fidelidade o original de qualquer outro produto da arte da perfumaria (...) Mas, em todo caso, enfleurage a frio era o meio mais refinado e eficaz de captar fragrâncias suaves..."


Enfim, a ficção tem passagens interessantes. Em relação ao filme, algumas cenas são muito bem-feitas.

William


Bibliografia:

SÜSKIND, Patrick. O perfume, história de um assassino. Tradução de Flávio R. Kothe. 4ª edição. Editora Record.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Diário e reflexões - 160217




Madrugada de quinta-feira. Duas horas da manhã.

Estou em dias de muito trabalho intelectual na Cassi. Leituras de textos e relatórios complexos e para deliberação. Este ano de trabalho em nossa entidade de saúde é um ano muito definidor porque é um novo período pós-processo de negociação de quase dois anos por causa de desequilíbrio econômico-financeiro no plano de saúde dos trabalhadores. Os próximos três anos serão definidores para o futuro de nossa autogestão.

Estou dormindo pouco e estou estressado e, como consequência, vêm os efeitos sobre nosso corpo. Dor de cabeça, olho ardendo e... a pressão arterial voltou a subir. Nesta quarta-feira estive com pressão alta o dia todo. Acabei vindo para casa por volta de 19 horas para ver se descansava um pouco antes das leituras e estudos.

Tomei um chá. Dormi uns 40 minutos. A pressão baixou um pouco, foi de 14 x 10 para 13,5 x 9,5. Apesar do cansaço, busquei a outra alternativa para melhorar a pressão. Coloquei um tênis e calção às 22h e saí para correr. Ando me esforçando para correr, apesar de estar com cansaço muscular e nos tendões. Já no domingo, fiz uma corrida dedicada de 7 km em 45' no Eixão. Corri nesta noite cerca de 5,2 km em 35' num trote só focando a atividade aeróbica.

Valeu a pena. Fiquei feliz pela corrida. Consegui ler mais um pouco e vou dormir agora de madrugada com a pressão em 11,5 x 7,5.

Seguimos focados nos nossos compromissos e fazendo um esforço para não quebrar.

William

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Diário e reflexões - 120217



Anoitecer a partir do olhar do cidadão observando
 pela janela de voo vindo de Natal RN para Brasília DF.

Fim de noite de domingo e início da madrugada de segunda-feira.

Acabei neste instante a leitura de mais um livro. Desta vez, um romance de autor alemão, Patrick Süskind - O perfume, a história de um assassino (1985). A retomada desta leitura, que comecei em setembro de 2014 e interrompi após a primeira parte (118 páginas), foi dentro do sentimento de emergência que tenho sentido de retomar tudo que comecei a ler e não finalizei. São dezenas de livros nessa condição ao longo dos últimos anos.

O romance é interessante para se desligar do mundo real, que tanta infelicidade tem me causado devido ao momento que vivemos de destruição por parte dos golpistas de conquistas históricas do povo brasileiro, direitos sociais adquiridos ao longo de mais de um século de lutas.

É o terceiro livro que leio ou que termino a leitura em fevereiro. É o décimo quinto neste ano. Se tiver condições, faço postagem depois sobre ele porque tem umas passagens e momentos interessantes na estória.

Enfim, eu estou me sentindo muito infeliz em relação ao mundo. Mas isso não é algo doentio, porque estar feliz e estar triste faz parte da vida humana. Não é algo para se tomar remédio, como virou a tônica na sociedade medicalizada do século 21. Ou parecido com o procedimento padrão da sociedade distópica do Admirável mundo novo (1931), de Aldous Huxley. Em caso de tristeza, era só tomar um comprimido de Soma.

Além de tudo que nos traz tristeza do ponto de vista político e social, vendo a destruição do País que ajudamos a construir nas últimas décadas, temos ainda problemas insolúveis ou de difícil solução em relação aos entes queridos. Todos nós temos.

Nos últimos meses, tem sido difícil correr com a regularidade que gosto. Mas até que corri bastante em janeiro. Agora em fevereiro estou tentando, mas meus Tendões de Aquiles estão sensíveis. Fiquei feliz por ter conseguido correr hoje cerca de 7k no Eixão em 45'.

Bom, vamos nos preparar para mais uma semana de lutas pela missão a mim designada de gestor eleito de entidade de saúde de trabalhadores. Seguimos firmes nos propósitos e tarefas que são de nossa responsabilidade.

William

Artigos: A era da pós-verdade - Gabriel Priolli


Apresentação do Blog:

Olá prezad@s leitores amig@s,

Este é o segundo artigo que apresento aos amig@s leitores a respeito do conceito de pós-verdade. No primeiro que li e partilhei (ler AQUI), tivemos uma centena de acessos. Espero ter sugerido um bom texto para reflexão.


Eu fico pensando a partir da posição social que ocupo nesta aldeia global o que podemos fazer para disputar hegemonias na conformação da sociedade humana. Eu estou no campo da representação dos trabalhadores, e esta classe social que represento está situada numa sociedade sob a égide do sistema de exploração capitalista.

Por estudo e por experiência no enfrentamento ao sistema hegemônico ao qual me contraponho, tenho claro que a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, a classe dos donos do capital e proprietários de todos os meios de produção social, meios materiais e imateriais. Há alguns estudos demonstrando que 8 pessoas têm a riqueza da metade da população do Planeta. No Brasil seria o mesmo, 8 pessoas detêm a riqueza de metade do povo, 100 milhões de vidas.

Quais seriam as estratégias mais adequadas para enfrentar a máquina totalitária de divulgação da ideologia dos donos de tudo, os meios de comunicação de massa monopolizados pelas corporações desses empresários? (no brazil atual chamamos de Partido da Imprensa Golpista - PIG)

Além do ponto de vista do articulista, a matéria aborda o ponto de vista da revista The Economist. De certa forma, os donos dos meios "oficiais" de comunicação insinuam que a pós-verdade é por causa da velocidade e descontrole da internet e das redes sociais.


Eles são os empresários que por décadas decidiram sozinhos o que era "verdade" (porque publicado) ou o que não existia (ceifado da pauta), já que não se publicava e divulgava o que não interessava a eles, enquanto suas empresas de comunicação criavam a pauta que fosse de interesse político e econômico dos donos do poder. Agora temos o advento da rapidez das redes sociais e da rede mundial de computadores, e as empresas Facebook e Google, por exemplo, quase donas de nossos perfis humanos.

Eu entendo que uma das alternativas para construir alguma perspectiva de enfrentamento de mentiras que colam para disputas de hegemonia e destruição de reputações 
é um forte trabalho de base real, no caso da representação social. Falo isso como tentativa de defesa de fatos reais junto às bases, porque, ao final, as mentiras divulgadas em períodos de eleições, com prazos normalmente curtos para desfazer maledicências, podem prevalecer e levar ao poder segmentos que podem enfraquecer a política e não fortalecê-la. Pensem a respeito do artigo e da minha opinião sobre o trabalho de base.

William



(reprodução da matéria - não utilizei imagens originais)





Pinocchio by Enrico Mazzanti (1852-1910) - 1883,
 colorido por Daniel Donna - Wikipedia.


A era da pós-verdade


Por Gabriel Priolli

Fonte: Carta Capital — publicado em 13/01/2017

O Dicionário Oxford consagrou o termo neste ano em que a sociedade preferiu os boatos aos fatos


Uma nova palavra entrou para o léxico mundial em 2016 e fecha o ano em alta, frequentando as mais diversas bocas e páginas do mundo político e jornalístico. É a "pós-verdade", um elegante étimo composto que pode parecer fruto da mais refinada filosofia contemporânea, mas não vai muito além de “tucanar” a mentira, naquele antigo e consagrado sentido de falar difícil, com sotaque tecnocrático, o que pode ser dito de forma simples e direta.

A “pós-verdade” despontou para a fama graças ao Dicionário Oxford, editado pela universidade britânica, que anualmente elege uma palavra de maior destaque na língua inglesa. Oxford definiu a acepção e mostrou a evolução do termo, observando que ele não foi cunhado neste annus horribilis da história humana, mas seu uso cresceu 2.000% nele. O Google registra mais de 20,2 milhões de citações em inglês, 11 milhões em espanhol e 9 milhões em português, uma ideia de seu sucesso.

Na definição britânica, “pós-verdade” é um adjetivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.

Não seria então, exatamente, o culto à mentira, mas a indiferença com a verdade dos fatos. Eles podem ou não existir, e ocorrer ou não da forma divulgada, que tanto faz para os indivíduos. Não afetam os seus julgamentos e preferências consolidados.

O termo, diz a Oxford, foi empregado pela primeira vez em 1992 pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich, em um ensaio para a revista The Nation. Em 2004, o escritor norte-americano Ralph Keyes colocou-o no título de seu livro The Post-Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life. Mas quem mais contribuiu para a sua popularização mundial foi a revista The Economist, desde quando publicou, em setembro passado, o artigo “Arte da mentira”.

No texto de The Economist, o mundo teria entrado em uma era política de pós-verdade, especialmente depois que os britânicos ignoraram os alertas sobre o “Brexit” e votaram por deixar a Comunidade Europeia, e que os americanos desdenhavam das graves advertências sobre Donald Trump, estando prestes a colocá-lo na Casa Branca.

O semanário lamenta que o eleitorado dos dois países desconsidere fatos objetivos e prefira acreditar em lendas, como a de que refugiados turcos invadiriam a Inglaterra se o Brexit não fosse aprovado, ou de que Barack Obama não é americano e fundou o Estado Islâmico, e de que os Clinton assassinaram um assessor em 1993, como propalou Trump.

Republicado em diversos países, o comentário da revista britânica suscitou analogias e um vasto inventário de “pós-verdades”. Na Colômbia, o acordo de paz do governo com as Farc foi derrotado em referendo porque as igrejas, em especial as evangélicas, convenceram boa parte dos eleitores de que ele estimularia a dissolução das famílias e a homossexualidade das crianças. “O anticristo está na Colômbia”, disparou um pastor nas redes sociais, em comentário que viralizou.

Em meio às suas 297 páginas, o tratado de paz apenas propunha a equidade de gênero, “para garantir que mulheres e homens participem e se beneficiem em pé de igualdade da implementação desse acordo”. E fazia referência à “necessidade de ter em conta a comunidade LGBTI”.

Foi o suficiente para políticos ultraconservadores como Álvaro Uribe fazerem uma barulheira, muito conhecida dos brasileiros, sobre uma suposta e temível “ideologia de gênero”.

No Brasil, aliás, a “pós-verdade” é a linguagem da moda na política e não ocorre apenas nos delírios fundamentalistas. Como vários parlamentares admitiram, Dilma Rousseff não cometeu nenhum crime de responsabilidade na Presidência da República, condição indispensável para o impeachment, mesmo assim foi deposta pelo “conjunto da obra” e nada foi capaz de impedir.

A Operação Lava Jato mistura intencionalmente doações legais que empresas fizeram a candidatos nas eleições com propinas que pagaram a parlamentares, criminalizando a política como um todo, e o eleitorado conservador vai às ruas para apoiar o juiz Sergio Moro e seus cruzados da moralidade pública, sem fazer qualquer ressalva.

É um eleitorado capaz de jurar sobre a Bíblia que o “filho do Lula”, esse ser abstrato e afortunado, é dono da Friboi e de quase tudo no País. E que se preocupa seriamente quando a “musa do impeachment”, a advogada Janaína Paschoal, comenta sobre a possível instalação de uma base naval russa na Venezuela e diz que Vladimir Putin está prestes a invadir o Brasil.

Na tese de The Economist, endossada pela mídia tradicional de todos os países, a “pós-verdade” disseminou-se por culpa da internet e das redes sociais. “A fragmentação das fontes noticiosas criou um mundo atomizado, em que mentiras, rumores e fofocas se espalham com velocidade alarmante”, diz a revista. “Mentiras compartilhadas online, em redes cujos integrantes confiam mais uns nos outros do que em qualquer órgão tradicional de imprensa, rapidamente ganham aparência de verdade.”

É uma visão confortável que relativiza, quando não omite totalmente, a responsabilidade da própria mídia na eclosão do fenômeno. Se agora vivemos o reinado da “pós-verdade”, por dedução lógica teria havido antes uma época de pura verdade na mídia, na qual os cidadãos podiam confiar cegamente. Ignora-se em que parte do planeta tal era gloriosa teria ocorrido, que povo foi beneficiado e quais teriam sido os seus heróis jornalísticos.

“Os indivíduos e os veículos que mais alertam contra os perigos das ‘falsas notícias’ e da ‘política da pós-verdade’ são os maiores disseminadores delas”, resume o jornalista e blogueiro inglês Neil Clark. “É como ouvir lições da boca de Al Capone sobre a imoralidade do contrabando, ou o corcunda de Notre-Dame a exigir que todos sentem com as costas retas.”

Clark lembra das armas de destruição em massa no Iraque, que a mídia acreditou existirem e que justificaram uma invasão militar sanguinária, com milhares de mortos. Elas nunca apareceram. Lembra do pretexto amplamente noticiado para liquidar Muammar Kaddafi (e a Líbia junto), um suposto massacre que estaria na iminência de ocorrer em Benghazi, mas nunca se efetivou.

Lembra que a mídia ainda não apresentou prova dos ataques químicos que acusa Hafez al-Assad de cometer na Síria. Lembra, enfim, de verdades incômodas, que The Economist e a mídia pró-ocidental preferem não trazer ao seu cenário de “pós-verdade”.

O máximo que esses veículos admitem é que alguns mecanismos do jornalismo que praticam não funcionam. “A busca da ‘imparcialidade’ na veiculação de notícias com frequência cria um falso equilíbrio, à custa da verdade”, afirma The Economist. “Os cientistas da Nasa dizem que Marte, provavelmente, é desabitado. O professor Zureta diz que pululam alienígenas no planeta. Opinião por opinião, cada qual que escolha a sua.”

Expostos a uma mídia que cultiva o pensamento único, os brasileiros não têm essa opção. Não encontram uma segunda opinião para acreditar, visto que a prática basilar do jornalismo, de sempre ouvir o “outro lado” nos assuntos apurados, faz tempo que entrou em desuso por aqui.

Não é pelo excesso de versões, portanto, senão pelo seu exato oposto, que a opinião pública nacional desacredita dos fatos e se nutre de factoides imaginários, cevados na ignorância e no preconceito.

A “pós-verdade” talvez expresse, no plano da mídia, a mesma perda de credibilidade que afeta a política. Uma imprensa que se acredita “a serviço do Brasil”, “de rabo preso com o leitor”, que “faz a diferença”, que tem “tudo a ver”, padece hoje da desconfiança tanto do público de esquerda quanto daquele de direita.

Ambos sabem que essa imprensa lê o mundo pela ótica estrita de seus interesses – de classe, políticos, empresariais etc. – e que são eles que definem as notícias, não a importância dos fatos.

Se é assim, se a notícia é o que o veículo quer que ela seja, se a “verdade” é tão relativa e subjetiva quanto qualquer opinião, por que o espanto com a explosão da “pós-verdade”? O cidadão comum posiciona-se sobre um terreno movediço de informações, cada vez mais instável, e precisa angustiadamente da segurança das certezas.

Vai encontrá-la no próprio cabedal de ideias que lhe foram incutidas pela educação familiar, a formação escolar e o convívio social. Se os fatos se ajustarem a essas ideias, ótimo. Caso contrário, não virão ao caso.

À era da “pós-verdade”, portanto, corresponde um “pós-jornalismo”. Não é mais aquele que duvida, pergunta, reflete, busca interpretar a complexidade do mundo, mas que afirma peremptoriamente, sentencia, reitera, constrói a realidade conforme os lobbies que faz ou defende.

Na balbúrdia da vida digital, no caos informativo das redes sociais, ele é apenas uma fonte a mais de “convicções”, não uma bússola para a informação confiável. Mas, prepotente, prefere atacar o Facebook e demais distribuidores de conteúdos do que fazer a autocrítica dos próprios defeitos.

Em meio a tudo isso, o cidadão vai desanimando. Pesquisa da empresa de tecnologia Kaspersky apurou que 73% dos usuários brasileiros de redes sociais pensam em excluir seus perfis e só não o fazem para não ficar longe dos amigos e das recordações. No mesmo estudo, global, os americanos insatisfeitos são 78%.

O porquê da insatisfação? Todos consideram as plataformas uma perda de tempo. Estão saturados das meias-verdades e mentiras inteiras que alimentam indistintamente notícias ou delírios, em tempos obscuros de “pós-verdade”.

Fonte: Carta Capital

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Artigos: Onde está a (pós) verdade? - Antonio Luiz M. C. Costa


Apresentação do Blog:

Olá prezad@s leitores amig@s,

Tenho me interessado pela questão da pós-verdade. Nos encontramos num momento crítico da história mundial neste início de século 21. 

Para melhor compreensão minha mesmo e de alguns amig@s leitores, vou registrar no Blog alguns artigos sobre o tema, para depois poder refletir a questão em algumas de minhas análises sobre acontecimentos em nosso querido Brasil e também no meio em que atuo, a gestão em entidade de saúde dos trabalhadores, organizada em modelo assistencial contra-hegemônico de atenção primária e administrada em gestão compartilhada entre a empresa e os trabalhadores, que elegem a metade da governança.

Pensem comigo: vocês têm o hábito de replicar e reproduzir informações que lhes chegam no mesmo momento da recepção ou procuram ter um mínimo de dúvidas a respeito e procuram alguma outra fonte de informação para ter mais convicção sobre o fato? Replicar e difundir informações sem cuidado algum é muito ruim. Isso é muito sério!

Abraços fraternos,

William 


(reprodução de matéria - não utilizei as imagens originais)




Onde está a (pós) verdade?

Por: Antonio Luiz M. C. Costa
Fonte: Carta Capital - publicado em 19/12/16


Atribuir a vitória de Trump a Putin é absurdo, mas, de fato, há uma nova dinâmica de “notícias falsas” a ser observada


De Curitiba a Seul, o ano de 2016 foi rico em espetáculos políticos grotescos em todos os sentidos e todos os continentes, mas nenhum é tão estrambótico quanto o Kremlin ser acusado pela CIA e pelos democratas de ter interferido na eleição presidencial dos Estados Unidos a favor de Donald Trump, difundindo “notícias falsas” e espionando os democratas para vazar e-mails comprometedores.

Exceto, talvez, o próprio eleito dar de ombros e negar credibilidade ao serviço de inteligência que está prestes a dirigir. “São os mesmos que afirmavam que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa.”

Com razão, é preciso admitir. Nada melhor para demonstrar a mendacidade da comunidade de inteligência estadunidense do que lembrar o infame episódio no qual Bush filho, Tony Blair e seus respectivos serviços de inteligência forjaram a patranha que serviu de pretexto à invasão e à pilhagem do petróleo do Iraque ao custo de centenas de milhares de vidas, trilhões de dólares e a desestabilização irreversível do Oriente Médio.

Queixar-se da espionagem alheia é ainda mais hipócrita por parte do país que admitiu espionar até chefes de governo e de Estado de países ricos e aliados como Angela Merkel e François Hollande. E absurda do ponto de vista do Hemisfério Sul, onde é notória a interferência da CIA e de fundações estadunidenses nos processos eleitorais, na construção da opinião publicada e na derrubada de governos eleitos.

Entretanto, a noção ganha espaço também na Europa, onde o canal RT (Russia Today) teve suas contas no banco britânico NatWest subitamente encerradas em outubro. O Parlamento Europeu aprovou em novembro, por 304 votos a 179, uma resolução proposta por conservadores tradicionais que, em tom de Guerra Fria, pede a Bruxelas para “responder à guerra de informação movida pela Rússia para distorcer a verdade, provocar dúvidas, dividir a UE e seus parceiros estadunidenses, paralisar o processo de tomada de decisão, desacreditar as instituições e incitar ao medo e à incerteza entre os cidadãos”.

Quanto aos populismos em ascensão, apesar de seu nacionalismo, festejam os sites russos RT e Sputnik, simpáticos a Vladimir Putin, tanto quanto o estadunidense Breitbart News, de Steve Bannon, decisivo para eleger Trump e prestes a lançar edições francesa e alemã para apoiar as campanhas de Marine Le Pen e Frauke Petry.

Na Itália, o Movimento Cinco Estrelas é acusado pelo BuzzFeed News de construir “uma rede em expansão de sites e contas em redes sociais para espalhar notícias falsas, teorias conspiratórias e histórias pró-Kremlin a milhões”, cujos núcleos seriam o blog pessoal de Beppe Grillo e o site TzeTze, que pertence ao partido.

Diferentes instituições escolheram como “palavras do ano” post-truth em inglês e postfaktisch em alemão, ambas traduzíveis como "pós-verdade". Trata-se de um nome novo para os embustes de sempre, de uma maneira de afetar sofisticação para desqualificar o ponto de vista adversário ou existe de fato alguma tendência nova a justificar o debate?

Como insiste o jornalista Glenn Greenwald em polêmicas públicas, “notícias falsas” é um termo tão maleável quanto “terrorismo” e igualmente passível de manipulação retórica. Pode significar desde desinformação consciente até teorias conspiratórias e mesmo informações verdadeiras obtidas de maneira tida como ilegítima, como os vazamentos do WikiLeaks, ou divulgadas de maneira parcial, como também frequentemente fazem as mídias “sérias”.

Falar da mentira como fenômeno político novo e associado a “ideologias exóticas”, como gostavam de dizer os ditadores do regime militar brasileiro, é falso. Antes de existirem sites e redes sociais, embustes eram divulgados pela mídia tradicional e boatos transmitidos boca a boca.

Quem viveu a campanha de 1989 ainda se lembra de como eleitores de classe média acreditavam piamente que Lula ia confiscar suas poupanças e obrigá-los a dividir seus apartamentos com sem-tetos e de como jornais e tevê relacionaram falsamente o sequestro de Abilio Diniz ao PT. A manipulação política dos boatos é tão antiga quanto a própria política, das acusações a Sócrates na Atenas clássica aos Protocolos dos Sábios de Sião do czarismo.

Dito isso, na medida em que o meio é (até certo ponto) a mensagem, há uma novidade. Empresas como Google e o Facebook facilitam a difusão de fraudes e as tornam mais atraentes. Por um lado, pelo ganho simbólico de popularidade nas redes sociais, tanto mais rápido e fácil quanto mais sensacionalistas forem as postagens. Por outro, pela remuneração em dinheiro.

Seus sistemas permitem aos autores dessas publicações embolsar certa quantia a cada clique ou visualização de anúncios a elas vinculados, frequentemente de empresas supostamente respeitáveis que parecem emprestar credibilidade ao conteúdo.

O Washington Post entrevistou um “empreendedor” que diz ter preferido Hillary Clinton, mas tirado 10 mil dólares mensais do AdSense (serviço de publicidade do Google) inventando histórias islamófobas e pró-Trump. Em Veles, cidade de 50 mil habitantes na Macedônia, centenas de adolescentes ganham milhares de euros por mês com o mesmo “trabalho”, com o apoio entusiástico da prefeitura.

Não que democratas, liberais e socialistas sejam imunes a crer em notícias falsas e reproduzi-las sem verificação, mas o fervor, o dogmatismo e o baixo nível cultural fazem dos partidários da direita populista excelentes multiplicadores de qualquer absurdo que pareça confirmar suas crenças.

Uma pesquisa da Ipsos mostra que 75% das notícias inequivocamente falsas mais notórias na campanha dos EUA foram acreditadas pelos pesquisados. Notícias verdadeiras foram acreditadas apenas um pouco mais: 83% das vezes.

O mais surpreendente é que, embora as pessoas acreditem mais em mentiras que confirmem suas ideias, frequentemente as aceitam mesmo quando as contrariam. Uma mistificação segundo a qual um agente que investigava Hillary havia sido encontrado morto foi acreditada por 85% dos republicanos e 52% dos democratas.

Não se sabe o quanto tais notícias influenciaram a eleição, mas é certo que inspiram muitos dos atos de intolerância contra minorias e mulheres pós-eleição e pelo menos um atentado. Em 4 de dezembro, um republicano fanatizado foi preso após disparar contra uma pizzaria em Washington, que, segundo falso boato difundido nas redes, seria sede de uma rede de pedofilia e tráfico de crianças comandada por Hillary e seu chefe de campanha.

A saturação do ambiente digital por fraudes de fato pode ter criado um clima no qual se torna impossível criar consensos sobre a realidade, mesmo quando respaldados pela maior parte da mídia tradicional. Ou pelo menos um ceticismo generalizado quanto ao valor da objetividade.

“É como no colégio, quando torcíamos para o nosso time vencer, mesmo quando era ruim”, disse um torcedor, digo, eleitor de Trump entrevistado pelo Boston Globe. E esse clima é cultivado pelo presidente eleito, para o qual parece irrelevante se suas declarações pelas redes sociais são verificáveis, de “o aquecimento global foi uma fraude inventada pelos chineses” a “eu venci no voto popular se deduzirem os milhões que votaram ilegalmente”.

Viu-se algo assim nos anos 1930, mas a internet permite mais agilidade e torna dispensável o controle totalitário explícito da mídia tradicional, gradualmente relegada à irrelevância enquanto tenta sobreviver à custa de amenidades caça-cliques.

É um fenômeno importante, mas atribuí-lo a Putin pelos rumos dos EUA e Europa é apenas mais uma notícia falsa de tipo mais tradicional e uma tentativa de criar um macarthismo às avessas. E que, ao atribuir-lhe tamanha onipotência, apenas lhe afaga o ego e talvez lhe reforce o prestígio ante russos e aliados.

Fonte: Carta Capital