GRANDE SERTÃO: VEREDAS - JOÃO
GUIMARÃES ROSA
CLÁSSICO BRASILEIRO DE 1956
COMENTÁRIO:
Este é um
dos livros de maior relevância da literatura brasileira. Eu digo que a nossa
literatura tem Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa como
momentos decisivos de nossa cultura literária em relação aos romances.
Eu o li no início dos anos dois mil, depois
que entrei na USP.
Apesar de
ser um marco tão importante, acredito que pouca gente entenda o seu significado
real.
Após uma
longa construção histórica de nossa literatura tupiniquim, um autor colocou um
homem de nossa terra, comum, do povo, que não estava no circuito do poder – não
era homem branco, católico, capitalista, proprietário – para falar em primeira
pessoa.
O jagunço
aposentado com azia e reumatismo, Riobaldo Tatarana, conta sua história a um
visitante ilustre (em um certo mês de junho) e já avisa que visita na casa dele
são três dias, e a partir daí fala por seiscentas páginas sobre sua vida, suas
andanças, seus receios e angústias sobre Deus e o Diabo, sobre o sentimento que
nutria por um jagunço companheiro - Diadorim.
É um
monólogo, é um desabafo, é um apelo e um pedido de compreensão de si mesmo e da
vida dura e rude do povo brasileiro.
Eu afirmo
que é uma das experiências literárias mais prazerosas que um leitor possa ter. É
leitura para ser feita de forma lenta e sem pressa. De preferência em voz alta.
Respeitando todas as pontuações que a tornam lenta e refletida.
Cito abaixo
trechos que eu considero de uso para a vida toda.
AS SABEDORIAS DO HOMEM SIMPLES DO
SERTÃO
“O gerais corre em volta. Esses gerais são
sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é
questão de opiniães... O sertão está em toda parte.”
APOSENTADORIA
– ESTAR DE RANGE REDE
“Mas,
agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range
rede. E me inventei neste gosto, de especular ideia. O diabo existe e não
existe? (...) Viver é negócio muito perigoso...”
O DIABO NAS
COISAS
“Bem, o
diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até:
nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: ‘menino – trem do diabo’? E nos
usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes. ...O diabo na rua, no meio do redemunho...”
“Arre, ele
está misturado em tudo.” (o diabo)
TODO MUNDO É
BOM (PRA ALGUÉM)
“O senhor
ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz,
sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos!
Sei desses. Só que tem os depois – e Deus, junto. Vi muitas nuvens.”
“O senhor
não duvide – tem gente, neste aborrecido mundo, que matam só para ver alguém
fazer careta... Eh, pois, empós, o resto o senhor prove: vem o pão, vem a mão,
vem o são, vem o cão.”
“Ave, vi de
tudo, neste mundo! Já vi até cavalo com soluço... – o que é a coisa mais
custosa que há.”
SABEDORIA
“O senhor
saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu
sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas
desconfio de muita coisa.”
FIXAR EM
LEI QUE O DIABO NÃO EXISTE
“Olhe: o
que devia de haver, era de se reunirem-se os sábios, políticos, constituições gradas,
fecharem o definitivo a noção – proclamar por uma vez, artes assembleias, que
não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim, davam
tranquilidade boa à gente. Por que o Governo não cuida?!”
PODIA SER
PADRE, FUI SER JAGUNÇO
“Eu podia
ser: padre sacerdote, se não chefe de jagunços; para outras coisas não fui
parido. Mas minha velhice já principiou, errei de toda conta. E o reumatismo...
Lá como quem diz: nas escorvas. Ahã.”
QUERER O
BEM DEMAIS JÁ PODE SER QUERER O MAL
“Viver é
muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já
estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o
mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as
coisas dum seu modo.”
DEUS É
PACIÊNCIA
“o ruim com
o ruim, terminam por as espinheiras se quebrar – Deus espera essa gastança.
Moço!: Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja.”
NO SERTÃO
MANDA QUEM É FORTE
“Sertão. O
senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo,
quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal...”
PRIMEIRA
CITAÇÃO DE DIADORIM
“(contando
sobre uma fuga durante batalha) se aquele bicho irara tinha jazido lá, então
ali não tinha cobra. Tomei o lugar dele. Existia cobra nenhuma. Eu podia me
largar. Eu era só mole, moleza, mas que não amortecia os trancos, dentro, do
coração. Arfei. Concebi que vinham, me matavam. Nem fazia mal, me importei não.
Assim, uns momentos, ao menos eu guardava a licença de prazo para me descansar.
Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nele. Um João-congo cantou. Eu
queria morrer pensando em meu amigo Diadorim, mano-oh-mão, que estava na Serra
do Pau-d’Arco, quase na divisa baiana, com nossa outra metade dos
sô-candelários... Com meu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu ia-voava
reto para ele... Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma.
Estou contando fora, coisas divagadas...”
A MALDADE
JÁ FOI PIOR
“Vi tanta
cruez! Pena não paga contar; se vou, não esbarro. E me desgosta, três é bom de
coração. Isto é, bom no trivial. Malícias maluqueiras, e perversidades, sempre
tem alguma, mas escasseadas. Geração minha, verdadeira, ainda não eram assim.
Ah, vai vir um tempo, em que não se usa mais matar gente... Eu, já estou
velho.”
AS PESSOAS
NÃO ESTÃO TERMINADAS
“O senhor...
Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não
estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre
mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso
que me alegra, montão.”
AMOR VEM DE
AMOR (DIADORIM É MINHA NEBLINA)
“Queremos é
trabalhar, propor sossego. De mim, pessoa, vivo para minha mulher, que tudo
modo-melhor merece, e para a devoção. Bem-querer de minha mulher foi que me
auxiliou, rezas dela, graças. Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também
– mas Diadorim é a minha neblina...”
VENDER SUA
PRÓPRIA ALMA...
“Pois. Se
tem alma, e tem, ela é de Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não
queira. Não é vendível. O senhor não acha? Me declare, franco, pelo. Ah, lhe
agradeço. Se vê que o senhor sabe muito, em ideia firme, além de ter carta de
doutor. Lhe agradeço, por tanto. Sua companhia me dá altos prazeres.”
SERTÃO É...
“Em termos, gostava que morasse aqui, ou
perto, era uma ajuda. Aqui não se tem convívio que instruir. Sertão. Sabe o
senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder
do lugar. Viver é muito perigoso...
O LONGO
MONÓLOGO DO EX-JAGUNÇO (3 DIAS)
“Eh, que se
vai? Jàjá? É que não. Hoje, não. Amanhã, não. Não consinto. O senhor me
desculpe, mas em empenho de minha amizade aceite: o senhor fica. Depois, quinta
de-manhã-cedo, o senhor querendo ir, então vai, mesmo me deixa sentindo sua
falta. Mas, hoje ou amanhã, não. Visita, aqui em casa, comigo, é por três
dias!”
SAÚDE DO
JAGUNÇO APOSENTADO NÃO PERMITE ACOMPANHAR A VISITA PELA REGIÃO
“Mas,
então, para uma safra razoável de bizarrices, reconselho de o senhor entestar
viagem mais dilatada. Não fosse meu despoder, por azías e reumatismo, aí eu ia.
Eu guiava o senhor até tudo.”
SAUDADES
“O senhor
sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de ideia e
saudade de coração... Ah.”
DOIS
JAGUNÇOS DE AMIZADE DIFERENCIADA
“Diadorim e
eu, nós dois. A gente dava passeios. Com assim, a gente se diferenciava dos
outros – porque jagunço não é muito de conversa continuada nem de amizades
estreitas: a bem eles se misturam e desmisturam, de acaso, mas cada um é feito
um por si. De nós dois juntos, ninguém nada não falava. Tinham a boa prudência.
Dissesse um, caçoasse, digo – podia morrer. Se acostumavam de ver a gente
parmente. Que nem mais maldavam.”
“Por mim,
só, de tantas minúcias, não era o capaz de me alembrar, não sou de à parada
pouca coisa; mas a saudade me alembra. Que se hoje fosse. Diadorim me pôs o
rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. Sei como sei.
Som como os sapos sorumbavam. Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das
brasas. Quase que a gente não abria boca; mas era um delém que me tirava para
ele – o irremediável extenso da vida.”
O ÓDIO DE
DIADORIM
“E ele
suspirava de ódio, como se fosse por amor; mas, no mais, não se alterava. De
tão grande, o dele não podia mais ter aumento: parava sendo um ódio sossegado.
Ódio com paciência; o senhor sabe?”
O GOSTAR...
DIFÍCIL CONFISSÃO DE UM JAGUNÇO
“Tudo
turbulindo. Esperei o que vinha dele. De um acêso, de mim eu sabia: o que
compunha minha opinião era que eu, às loucas, gostasse de Diadorim, e também,
recesso dum modo, a raiva incerta, por ponto de não ser possível dele gostar
como queria, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a voz dele. Que mesmo,
no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar todas as folhagens, e eu
ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar,
as muitas demais vezes, sempre.”
PORQUE DO
RELATO DO JAGUNÇO AO FORASTEIRO
“O senhor é
de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o
estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito:
faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro
da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o
muito se fala?”
OS APELIDOS
DO DEMO
“E as
ideias instruídas do senhor me fornecem paz. Principalmente a confirmação, que
me deu, de que o Tal não existe; pois é não? O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão,
o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Côxo, o
Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o
Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos... Pois,
não existe! E, se não existe, como é que se pode se contratar pacto com ele?”
SAUDADE =
VELHICE
“Moço: toda
saudade é uma espécie de velhice.”
ÓRFÃOS – TÃO
COMUM
“Não me
envergonho, por ser de escuro nascimento. Órfão de conhecença e de papeis
legais, é o que a gente vê mais, nestes sertões.”
NOMES DOS
LUGARES – DEVIA SER PROIBIDO MUDAR
“Todos os
nomes eles vão alterando. É em senhas. São
Romão todo não se chamou de primeiro Vila
Risonha? O Cedro e o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro-Grande? Como é que podem
remover uns nomes assim? O senhor concorda? Nome de lugar onde alguém já
nasceu, devia de estar sagrado. Lá como quem diz: então alguém havia de renegar
o nome de Belém – de Nosso-Senhor-Jesus-Cristo
no presépio, com Nossa Senhora e São José?! Precisava de se ter mais travação.”
MEDEIRO VAZ
– O QUIXOTE DO SERTÃO
“Mas vieram
as guerras e os desmandos de jagunços – tudo era morte e roubo, e desrespeito
carnal de mulheres e donzelas, foi impossível qualquer sossego, desde em quando
aquele imundo de loucura subiu as serras e se espraiou nos gerais. Então
Medeiro Vaz, ao fim de forte pensar, reconheceu o dever dele: largou tudo, se
desfez do que abarcava, em terras e gados, se livrou leve como que quisesse
voltar a seu só nascimento. Não tinha bocas de pessoa, não sustinha herdeiros
forçados. No derradeiro, fez o fez – por suas mãos pôs fogo na distinta
casa-de-fazenda, fazendão sido de pai, avô, bisavô – espiou até o voejo das
cinzas; lá hoje é arvoredos. Ao que, aí foi aonde a mãe estava enterrada – um
cemiteriozinho em beira do cerrado – então desmanchou cerca, espalhou as
pedras: pronto, de alívios agora se testava, ninguém podia descobrir, para
remexer com desonra, o lugar onde se conseguiam os ossos dos parentes. Daí,
relimpo de tudo, escorrido dono de si, ele montou em ginete, com cachos
d’armas, reuniu chusma de gente corajada, rapaziagem dos campos, e saiu por
esse rumo em roda, para impor a justiça.”
CORAJOSO?
COMO SER VALENTÃO?
“Eu estava
meio dúbito. Talvez, quem tivesse mais receio daquilo que ia acontecer fosse eu
mesmo. Confesso. Eu cá não madruguei em ser corajoso; isto é: coragem em mim
era variável. Ah, naqueles tempos eu não sabia, hoje é que sei: que, para a
gente se transformar em ruim ou em valentão, ah basta se olhar um minutinho no
espelho – caprichando de fazer cara de valentia; ou cara de ruindade!”
AS
RUINDADES DOS CANGACEIROS – A ETERNA VIOLÊNCIA
“as
ruindades de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais: baleando,
esfaqueando, estripando, furando os olhos, cortando línguas e orelhas, não
economizando as crianças pequenas, atirando na inocência do gado, queimando
pessoas ainda meio vivas, na beira de estrago de sangues... Esses não vieram do
inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos, figuro que por
empreitada de punir os outros, exemplação de nunca se esquecer do que está
reinando por debaixo. Em tanto, que muitos retombam para lá, constante que
morrem... Viver é muito perigoso.”
OS GOSTARES
“Antes
palavras que picaram em mim uma gastura cansada; mas a voz dele era o
tanto-tanto para o embabo de meu corpo. Noite essa, astúcia que tive uma
sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo
gostar dele – os gostares...”
Bibliografia:
ROSA, João
Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Editora Nova Fronteira. 19ª edição.